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A dicção tradicional da poesia homérica: tema e fórmula

A tradição épica

2. A dicção tradicional da poesia homérica: tema e fórmula

Ao passo que a criatividade é necessária para a sobrevivência da tradição, ela também gera sua mudança, modificando a continuidade do passado no presente (…). Exatamente a energia criativa que modifica o cânone é exigida para manter-se a tradição viva. (Ben-Amos 1984: 113)

A partir da recepção do trabalho pioneiro de Milman Parry, desenvolvido nas décadas de 1920 e 1930, formou-se o consenso, entre os estudiosos de Ho- mero, de que a Odisseia e a Ilíada dão testemunho de uma linguagem poética tradicional. Antes de Parry, filólogos alemães já tinham se ocupado do caráter artificial da linguagem homérica. Kurt Witte, por exemplo, cujos artigos mais importantes foram publicados entre 1909 e 1914, postulou, com base na mistura dialetal verificada nos poemas, que uma linguagem artificial teria surgido graças à pressão da forma do verso; as exigências métricas também explicariam a uti- lização de fórmulas, isto é, combinações de palavras especialmente aptas para o uso em posições específicas do hexâmetro.87

A linguagem da tradição que definimos como épica na seção anterior, permeada por fórmulas e temas tradicionais, não foi, portanto, inventada por um único rapsodo, mas resultou do uso da tradição transmitida oralmente por diversas gerações de rapsodos. Parry definiu com agudeza inédita a noção de poesia ou tradição poética oral. “Tradição” e “criatividade”, nesse viés, não são noções antagônicas. Entretanto, com a aceitação crescente da interpretação oral dos poemas homéricos, seus críticos passaram a insistir que a suposta qualidade de Homero, já sacramentada na Poética de Aristóteles, o distinguiria da tradi- ção à qual pertenceu, já que ele teria sido o primeiro a utilizar a escrita para a composição de um poema monumental. Mesmo para boa parte dos oralistas, Homero, um dos últimos bardos de uma tradição de composição oral, deve ter, pelo menos, ditado seus poemas a um escriba.88

Meu propósito aqui não é formular uma hipótese sobre como teria se dado a composição e transmissão primeira dos poemas que chegaram até nós, até

87 Parry (1971) é uma edição de seus textos, incluindo a tradução para o inglês de Parry

(1928). Para uma discussão dos pressupostos de sua abordagem e do trabalho de seus precur- sores, cf., entre outros, Holoka (1991), Lamberterie (1997), Haubold (2007) e Bakker (2008b). Precursores alemães: Latacz (1979: 60-117) e (2009: 17-26).

88 Tradição e criatividade: Combellack (1959). Poemas ditados por “Homero”: Lord (1953:

133) e Janko (1998); escritos por ele: West (2001). Crítica das teorias que pressupõem o uso da escrita em um primeiro estágio de produção e/ou transmissão dos poemas: Nagy (1996a) e González (2013: 15-110).

porque é pouco provável que um dia haja uma proposta que satisfaça a todos. A discussão depende, em boa parte, de uma história e uma sociologia da escrita na Grécia Arcaica, para o que a quantidade de fontes é irrisória. Ainda assim, para discutir como a Guerra de Troia é utilizada na Odisseia, é preciso examinar alguns elementos da forma de comunicação que se estabelecia entre um rap- sodo e seu público na apresentação de um poema da tradição épica na Grécia Arcaica. Desde já, quero salientar que, muito embora o rapsodo pressupusesse certo conhecimento da tradição pelo seu público, isso não quer dizer que seria indispensável para um desempenho bem-sucedido que todo receptor tivesse um extraordinário conhecimento da linguagem tradicional nem que todo rapsodo utilizasse as mesmas expressões tradicionais.89

Na base da concepção da linguagem homérica de Parry está uma ideia

de linguagem próxima daquela de Ferdinand de Saussure.90 Em ambos, o que

predomina é o sistema, portanto, uma análise sincrônica, cujo objetivo, no caso de Parry, é apontar para uma técnica de composição que um bardo herdaria de outros. Parry notou que palavras e frases são recorrentes, via de regra, em uma posição fixa no verso, tendo dado destaque, em seus primeiros trabalhos, ao exa- me da combinação de epítetos com os substantivos aos quais se referem, como “Odisseu muita-astúcia” (Od. 2, 173 etc.). Assim, define fórmula como “um grupo de palavras empregadas regularmente sob as mesmas condições métricas para expressar uma ideia essencial dada”. “Ideia essencial” é o que permanece após se retirar tudo que, na expressão, se deve apenas ao estilo; no exemplo citado, a ideia essencial seria “Odisseu”.91

De acordo com esse modelo, o poeta faz sua seleção por critérios de versifi- cação, não de sentido. Fórmulas são sintagmas ancorados metricamente, criados para facilitar a tarefa da composição extemporânea. Portanto, muito pouco nos poemas não seria dicção formular. Não demorou muito, porém, até que outras definições cada vez mais amplas de fórmula tornassem a noção menos eficaz para a compreensão da poesia oral homérica.

Outra noção tão importante – e difícil de definir – quanto a de fórmula é a de tema. Walter Arend mostrou, de forma independente de Parry, que muitas cenas homéricas são “típicas”, isto é, seguem um mesmo modelo ideal, como, por exemplo, as cenas de sacrifício.92 Albert B. Lord, um discípulo de Parry

que desenvolveu sua análise em um contexto comparativo, também utilizando

89 Crítica histórico-sociológica do uso da escrita na Grécia Arcaica em vista da produção e

transmissão da épica: González (2013: 15-110). Conhecimento parcial do receptor para uma performance oral bem-sucedida: Scodel (2002a: 1-41).

90 Na discussão sobre a noção de fórmula de Parry, além de Parry (1971), sigo sobretudo

Russo (1997) e Bakker (2008b).

91 Definição de fórmula: Parry (1971: 272). 92 Cf. Arend (1933).

a tradição épica oral serbo-croata como o mestre, definiu tema como “grupos de ideias usados regularmente na narração de uma história no estilo formu- lar dos cantos tradicionais”. Para Lord, deixando de lado a discussão sobre a unidade do poema, um tema tem uma vida semi-independente e uma forma múltipla – temas são multiformes. Lord sugere que se pense o tema no contexto das práticas de um único cantor, que o desenvolve a partir de diversas canções que vai incorporando a seu repertório. Em uma performance, o tema existe, ao mesmo tempo, por ele mesmo e para todo o poema, nunca se manifestando por meio de uma forma pura, seja para o cantor individual, seja na tradição: o tema é essencialmente multiforme. Assim, ao se desenvolver um tema em um poema tradicional, manifesta-se um impulso em duas direções, um, na da canção que está sendo cantada, outro, na dos usos prévios do tema. A tradição, de um ponto de vista diacrônico, é eminentemente fluida, de sorte que não se deve falar em uma forma e suas variações, mas em multiformas.93

Para Lord, um tema não é um conjunto fixo de palavras, mas um agrupa- mento de ideias; além disso, ele defende que um poeta pensa seu canto a partir de seus temas mais amplos. Isso confere à noção de tema uma amplitude salutar, pois fica claro que, em um mesmo poema – isso vale em particular para poemas monumentais como a Ilíada e a Odisseia –, um mesmo tema pode aparecer com- primido ou bastante desenvolvido.94

Outras tentativas de se analisar o estrato temático dos poemas homéricos chegaram às seguintes categorias:95

- cena típica: “bloco recorrente de narrativa com uma estrutura identificá- vel e amiúde com uma linguagem idêntica, descrevendo ações recorrentes da vida cotidiana”. A principal cena típica da Odisseia, por exemplo, é a de hospitalidade;96

- motivo: “unidade narrativa mínima recorrente”. Um exemplo, na Odisseia, é o motivo do teste: uma personagem testa outra para determinar se vivenciou realmente o que afirma ter sido o caso;

- tema: “tópico recorrente que é essencial para a narrativa como um todo”. Essa noção só tem o nome em comum com o conceito de Lord. O tema da astúcia em oposição à força, por exemplo, é fundamental na tradição épica.97

93 Tema: Lord (1960: 68-98); a definição citada encontra-se na página 68. Multiformidade:

Lord (1960: 100-102 e 120).

94 Cf. Lord (1960: 69 e 95).

95 As definições que seguem estão em de Jong (2001: xvii-xix).

96 Esses são os padrões examinados por Arend (1933), que fala em typische Szene. O termo

typical scene é usado, entre outros, por Foley (1999); type-scene, por Edwards (1992).

O valor heurístico dessas categorias é evidente, mas é necessário ter cuidado, como Lord já notou, com a tendência de se categorizar em excesso e pressupor uma forma de pensar que deveria ser estranha ao cantor, para quem temas (a noção de Lord) e fórmulas estão sempre em associação e tendem a ser indissoci- áveis da própria canção apresentada.98

Lord mostrou que “grandes temas” (major themes) são interligados à medida que solicitados pelo desenvolvimento da ação; assim, permanecem costurados tanto pela lógica da narrativa – algo que Aristóteles percebeu na Poética, em- bora em um contexto teórico distinto, ao discutir cenas de reconhecimento na

Odisseia – como pela força da associação tradicional. O enredo da Odisseia, uma

história de retorno após uma longa ausência, incorpora o disfarce, relatos que vi- sam a enganar o interlocutor (“mentiras”) e reconhecimentos. Esse agrupamento deve ser esperado já que a narrativa principal segue uma forma tradicional, uma história de retorno.99

Podemos chamar esse agrupamento de “história-padrão”, tradução de

story-pattern, termo que Lord assim definiu em um artigo de 1969: “padrões

narrativos que, por mais que as histórias construídas em torno deles pareçam variar, têm uma grande vitalidade e funcionam como elementos organizacionais na composição e transmissão de textos de histórias orais”.100 Em alguns aspectos,

os temas mais amplos (ou uma combinação deles) e os poemas (ou partes mais longas deles) revelam o mesmo esqueleto, ambos resultantes de certa combinação tradicional de ideias, que, portanto, parece ser bastante estável. Em uma tradi- ção oral, porém, temas e histórias-padrão são fluidos, seja no caso de a mesma história ser contada por um mesmo poeta, seja no caso de poetas distintos.

Além disso, poetas e seus receptores não operavam com uma única versão canônica de uma história, a não ser no que diz respeito a seus traços muito ge- néricos. A história da Guerra de Troia – ou as histórias ligadas ao ciclo troiano, noção que se discutirá na sequência – não é composta por elementos que se tornaram todos canônicos ao mesmo tempo. Mesmo ao longo do lento processo por meio do qual a Ilíada e a Odisseia se tornaram canônicas, a tradição no seio da qual os poemas se originaram e que deve ser pressuposta quando se pensa em seus receptores na Grécia Arcaica continuava bastante multiforme.101

Na esteira dos trabalhos de Parry e Lord, diversos autores têm procurado aperfeiçoar o modelo oralista. No que diz respeito à fórmula, um marco nessa

98 Essa inteligente formulação (Lord 1960: 95) mostra como oralistas da geração seguinte,

sobretudo Nagy e Foley, que veremos na sequência, devem ao mestre.

99 Cenas de reconhecimento na Odisseia: Duarte (2012). Odisseia como história de retorno:

Foley (1999: 115-68).

100 Apud Foley (1999: 86). Foley (1999: 15) a define como “a compositional ‘word’

coextensive with the entire epic narrative”.

reavaliação da abordagem oral foi o livro Archery at the dark of the moon de Nor- man Austin, no qual o autor demonstra que a seleção de epítetos não opera apenas por critérios métricos e relaciona a repetição à mimesis: “onde palavras são meras ferramentas, a repetição perde seu valor, mas onde as palavras são

mimesis, essa repetição é valorada em si mesma”.102 Outro trabalho seminal foi

a defesa de Gregory Nagy da estreita conexão entre tema e fórmula: diacroni- camente, o regulador primeiro do epíteto homérico e da fórmula seria o tema tradicional mais que o metro.103 Nesse sentido, fórmulas não devem ser pensadas

como meras ferramentas de composição, mas como ferramentas fundamentais de comunicação: uma fórmula comunica um tema, algo mais complexo que a “ideia básica” de Parry.

A fórmula, como meio expressivo que compõe a linguagem particular dos poe- mas homéricos, também pode ser concebida como um recurso utilizado pelo rapsodo para tornar presente uma realidade ausente, ou seja, uma fórmula não é apenas um meio de expressão, mas também de performance, na formulação lapidar de Bakker. Ela permite que se evoque o mundo dos heróis, que não existe mais, mas ainda guarda relações importantes com o presente. De modo mais estrito, fórmulas cons- tituídas por um nome acompanhado de um epíteto evocam uma realidade especial que tem um sentido determinado no e pelo contexto épico: “Atena olhos-de-coruja” é e não é a deusa Atena cultuada em uma cidade grega específica. Trata-se de uma entidade reconhecida por todos os gregos para quem a poesia épica é relevante, ou seja, no politeísmo grego, independente do meio que permitia a aproximação com o mundo divino, o deus tinha um caráter único e plural.104

Na formulação de John M. Foley, a arte da poesia tradicional é “uma arte imanente, um processo de composição e recepção no qual uma parte simples, con- creta, vale por uma realidade complexa, intangível: pars pro toto”.105 Um tema ou

uma fórmula, em cada uma de suas utilizações, pressupõe uma camada adicional de sentido que não é da responsabilidade de um rapsodo único, ou seja, de um único contexto, e constitui sua ressonância tradicional.106 O referente de uma “palavra”,

ou melhor, de uma unidade expressiva, é definido metonimicamente pela tradição – dinâmica, sempre em mutação – como um todo, de forma que ele carrega um sentido que lhe é conferido, conotativo. Vejamos como isso funcionava na prática.

102 Citação em Austin (1975: 66).

103 Nagy (1990a: 18-35); cf. também Nagy (1999a: 3) e Watkins (1995: 17).

104 Fórmula como meio de performance: Bakker (1997) e (2005). O deus único e plural do

politeísmo: Versnel (2011). Uma primeira formulação, algo distinta, deste parágrafo está em Werner (2014a: 97-98).

105 Cf. Foley (1997: 63), um texto que resume as ideias principais desenvolvidas pelo autor

alhures, por exemplo, Foley (1991), (1999) e (2002).

106 “Traditional elements reach out of the immediate instance in which they appear to the

fecund totality of the entire tradition, defined synchronically and diachronically, and they bear meanings as wide and deep as the tradition they encode” (Foley 1991: 7).