• Nenhum resultado encontrado

Penélope, Fêmio e a fama de Odisseu (O d 1, 325-44)

faz presente

2. Penélope, Fêmio e a fama de Odisseu (O d 1, 325-44)

O complexo encontro entre Atena e Telêmaco, ao qual se voltará no capítulo seis, é o contexto necessário para se compreender a representação de Penélope no canto um, quando, em sua primeira aparição no poema, busca firmar a pre- sença virtual de Odisseu em sua propriedade.189 Com efeito, Penélope é tema

importante do diálogo entre Telêmaco e Atena, sendo que ambos acentuam que a rainha tem o próprio destino nas mãos (Od. 1, 249-50 e 275-76). A imagem que o receptor constrói de Penélope, porém, se torna mais complexa quando seu sofrimento, acompanhado de um curto mas bem articulado discurso, é mostrado diretamente.

Após a partida de Atena, Homero traz, para o centro da narrativa, o canto do aedo Fêmio, que já começara a soar, como um pano de fundo, logo no início do diálogo entre a deusa e o jovem (325-30 e 336-44):

Entre eles cantor cantava, bem famoso, e, quietos, sentados ouviam. Dos aqueus cantava o retorno (nostos) funesto (lygros), que, desde Troia, impôs-lhes Palas Atena. Em cima, compreendeu no juízo seu inspirado canto a filha de Icário, Penélope bem-ajuizada;

e a elevada escadaria de sua morada desceu (…)

Aos prantos, então dirigiu-se ao divino cantor:

“Fêmio, sabes muito outro feitiço que age sobre os mortais, ações de varões e deuses que cantores tornam famosas (kleiousin); desses canta um, sentado junto deles, e, quietos,

bebam vinho. Mas interrompe esse canto funesto, que sempre, no peito, meu coração tortura, depois que assaltou-me aflição inesquecível.

De notável pessoa tenho saudade, lembrando-me (memnēmene) sempre do varão cuja fama (kleos) é ampla na Hélade até o meio de Argos.

Trata-se de uma passagem complexa com vários aspectos a serem explora- dos. Nesta seção, se discutirá sobretudo o que implica a lembrança de Penélope mencionada no final da citação.

189 Uma primeira versão dessa análise dos efeitos possíveis do canto de Fêmio e da reação de

Uma contraposição indireta entre a reputação pan-helênica de Odisseu (344)190 e o tema do canto de Fêmio, o destino funesto daqueles aqueus cujo

retorno foi dificultado por Atena (326-27), embasa o pedido da rainha ao aedo. Fêmio, por sua vez, não deve estar cantando uma história que contenha o fim de Odisseu, já que o herói, de acordo com a perspectiva em Ítaca no presente, como já informado ao receptor, tem destino desconhecido (Od. 1, 234-38). O canto do aedo, portanto, deve abarcar apenas o destino funesto daqueles heróis que se sabe que não chegaram em casa, como Ájax Oileu, que morreram em casa assim que chegaram, como Agamêmnon, ou que vagaram muito tempo, como Menelau. Trata-se, portanto, do conteúdo das histórias que serão narradas para Telêmaco e Odisseu nos cantos três, quatro e onze. Além disso, como Atena se mostra bastante favorável a Odisseu e sua família desde o início da Odisseia, a indicação de uma atuação da deusa com consequências funestas separa, para o receptor, o canto de Fêmio daquelas histórias nos quais a deusa está ao lado de Odisseu, como a conquista de Troia em sua versão canônica.191

As histórias do canto de Fêmio, porém, evocam, para Penélope e para o receptor, um fim sinistro análogo para Odisseu, e assim podem sedimentar nela a crença de que o marido está morto. Entretanto, como Penélope, ao mesmo tempo, ainda aguarda o retorno de Odisseu, cumpre-lhe cultivar a memória do marido, ou seja, torná-lo, de alguma forma, presente no mundo de Ítaca e, sobre- tudo, em sua propriedade, e usar sua argúcia para combater tudo que vá contra essa sua estratégia, como por exemplo tal canto de Fêmio. O perigo do canto não é nem tanto ser capaz de fazê-la desviar-se de sua dor presente gerada pela falta de Odisseu, ou seja, um desejo dolorido já que marcado pela ausência do marido (potheō, 343). Para os habitantes de Ítaca, o canto de Fêmio pode tornar a perda do dia de retorno de Odisseu algo verossímil e também necessário, para usar o par que marca um bom enredo (mythos) segundo a Poética de Aristóteles. Na perspectiva em que se encontra Penélope, o canto sobre o “retorno funesto” reforça a ausência de Odisseu, pois ela e os demais podem imaginar uma história na qual Odisseu nunca mais retornará a Ítaca, ou seja, consolidar sua ausência. Todavia, outros cantos, como aqueles que tornaram Odisseu famoso por toda a Hélade, ainda podem torná-lo presente.

A performance do canto de Fêmio é controlada pelos pretendentes (153-54): “lira muito bela um arauto pôs nas mãos / de Fêmio, que cantava aos pretendentes, obrigado”.192 Sobre Penélope, esse canto parece ter um efeito dis-

190 Para a interpretação do verso 343, cf. West (1988: 118-19).

191 É possível defender que os momentos nos quais Atena se mostra particularmente próxi-

ma de Odisseu na Ilíada ou bem evocam material cíclico – cantos 2 e 23 – ou bem pressupõem a Odisseia ou uma versão dela – canto 10; cf. Haft (1990) e Laser (1958).

192 Para Svenbro (1976: 18), trata-se de um exemplo extremo do controle social sobre um

tinto daquele do aedo de Agamêmnon mencionado por Nestor (Od. 3, 263-75). Em Micenas, Clitemnestra foi assediada por Egisto, cujas palavras sedutoras enfrentaram o bloqueio representado pelo caráter da rainha: “ela, no início, rejeitava a ação ultrajante, / divina Clitemnestra, pois tinha um juízo valoroso” (265-66). Além do caráter da rainha, Nestor também menciona um aedo que Agamêmnon, ao partir para Troia, deixou como guardião da esposa: “ao lado havia um varão cantor, a quem muito pediu / o filho de Atreu, indo a Troia, que guardasse a consorte” (267-68). A tarefa do aedo não é precisada, mas outras passagens (Od. 24, 191-202) sugerem a performance de cantos que celebrariam a excelência de heróis e suas mulheres, tornando-os tão presentes para Clitemnes- tra que somente com o afastamento físico do aedo, levado para uma ilha deserta, foi possível a Egisto atingir seu objetivo. Os pretendentes, ao invés da supressão do aedo, forçam cantos que se coadunam com seus propósitos.193

Penélope, a seu turno, propõe a Fêmio que cante outro canto, ainda que esse, por conta da pressão dos pretendentes, não possa tratar dos feitos que Odisseu realizou em Troia, os quais são responsáveis pela sua “fama ampla” e compõem as histórias que reaparecem, geralmente de forma elíptica, nos primeiros 11 cantos do poema. De fato, a Odisseia não é o canto de “Odisseu” – de toda sua vida composta pelas mais diversas gestas heroicas –, mas do retorno de Odisseu, como já assinalou Aristóteles em outro contexto na Poética.194

Penélope, portanto, não está afirmando que não suporta o canto de Fêmio porque tem saudade de Odisseu, saudade essa que seria acentuada por meio de um canto que reforça a ausência (definitiva: a morte) do marido. O pedido de Penélope não é causado, em primeiro lugar, pelo sofrimento que o canto lhe causa, mas pela análise que faz do canto, portanto, por uma atividade crítica. “Compreendeu seu canto” (328) é syntithemai aoidēn, que implica um processo particular de conhecimento marcado pela síntese. O sentido do verbo nesse tipo de construção está ligado à compreensão e retenção de uma informação e implica certo esforço por parte do receptor.195

Por um lado, Penélope afirma que é o canto de Fêmio que lhe causa “aflição inesquecível” (340-42). A expressão penthos alasthon, que também aparece na

Ilíada (Il. 24, 105), marca uma forte comoção, via de regra, em um contexto

de luto, sendo que penthos indica o ritual público do lamento fúnebre e é uma contraparte constituinte da fama do varão morto.196 O canto de Fêmio, porém, 193 Para uma discussão mais detalhada do episódio, com bibliografia suplementar, cf. Werner

(2005b: 179-81).

194 Odisseia como o canto do retorno de Odisseu, não de suas façanhas em Troia: Nagy

(2007: 69-70).

195 Outros exemplos da construção com syntithemai: Od. 15, 27; 18, 129; 16, 259; 17, 153;

19, 268; 20, 92; 24, 265. O verbo implica esforço: Walsh (1984: 17). Halliwell (2011: 80) insiste que Penélope é uma intérprete ativa, não uma receptora passiva.

não canta, diretamente, a morte de Odisseu. Essa expressão, por outro lado, indica que Penélope não pretende se comportar como Andrômaca e as outras mulheres que embasam a fama de Heitor no último canto da Ilíada por meio de um viés feminino, já que a rainha não se vê, em todas as consequências, como uma viúva. O que costuma (“sempre”, 343) fazer é, por meio das histórias que tratam de façanhas de Odisseu (343-44), garantir a presença do herói. Ainda que sofra com essa memória, consegue que Odisseu, paradoxalmente, continue vivo, pelo menos, para si mesma. Ao passo que a aflição (penthos, 342) marca a ausência potencialmente permanente, o desejo que vem com a lembrança (ποθέω μεμνημένη αἰεὶ, 343) aponta para algo que pode ser tornado presente em ausência. Entretanto, só pode estar presente na memória de Penélope e da- queles que ouvem tais narrativas. Ouvir uma narrativa que celebra a heroicidade de Odisseu torna-o mais presente que um canto que alude à sua morte; essa diferença Penélope percebe ao analisar o canto de Fêmio.

O discurso de Penélope, ao se apoiar no desejo, aqui não expresso, de que o marido volte, garante que seu retorno, ao contrário daquele do marido de Clitem- nestra, seja bem-sucedido, de sorte que Agamêmnon poderá proclamar o elogio do outro casal no Hades (Od. 24, 192-96):

Afortunado filho de Laerte, Odisseu muito-truque, deveras, com grande excelência, conquistaste esposa: quão valoroso juízo teve a impecável Penélope, filha de Icário, quão bem se lembrou de Odisseu, seu varão legítimo (…).

Não por acaso, o elogio de Agamêmnon baseia-se em uma versão do re- torno, feita pelo pretendente Anfínomo, em que a participação de Penélope na vingança de Odisseu é ainda mais efetiva que aquela que transparece na super- fície dos fatos contados por Homero.197

Defendo, portanto, contra a interpretação canônica, que Penélope não interrompe Fêmio simplesmente porque quer evitar o sofrimento exacerbado pelo canto que agrada aos pretendentes.198 Grosso modo, com ou sem o canto,

sua dor permanece semelhante; o choro é, há muito, seu estado habitual. O próprio Homero não explicita a razão por que Penélope desce. Ao propor uma mudança de tema para o canto, ela busca uma estratégia que, direta ou indireta- mente, sustente certa memória de Odisseu, aquela ligada às façanhas realizadas em Troia, não a que o vincula aos retornos gregos fracassados. Nesse sentido, Penélope se aproxima e se diferencia de Homero, a instância poética que indica à Musa de onde ela deve começar a Odisseia: por um lado, ela quer uma história

197 Discuto a passagem e seu contexto na segunda seção do capítulo sete. 198 Halliwell (2011: 2) é um exemplo da opinião canônica.

de sucesso para o marido, assim como Homero; por outro, essa história não pode ser composta pelas façanhas que Odisseu realizou em Troia. Penélope evita ao máximo aparecer diante dos pretendentes; pedir um outro canto de Fêmio é uma tentativa não só de demonstrar o pouco de autoridade que ainda lhe resta mas, sobretudo, de não perder aquela que parece ser a base dessa autoridade, a memória de Odisseu.199

199 Em outra chave e com argumentos algo distintos, Pucci (1995: 198-201) também mos-

tra o papel positivo, ainda que parcialmente equivocado, de Penélope em relação ao autor da

Odisseia. A relação entre a autoridade de Penélope e a de Odisseu é um tema elusivo do poema