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Uma das formas de se apagar a diferença qualitativa entre o presente do receptor e o passado épico, criando uma homogeneidade ideológica entre o passado heroico e o presente da elite que se pretende reconhecer nos poemas, é apagando a interferência de uma voz autoral clara e com autoridade, como He- síodo em Trabalhos e dias. Entretanto, a passagem com a menção mais clara da onisciência das Musas coloca em suspenso o conhecimento advindo da perfor- mance épica (Il. 2, 484-86): “Narrai-me agora, Musas que tendes casas olímpias, / pois sois deusas, estais presentes e tudo sabeis, / e nós só ouvimos a fama e nada sabemos” (Ἔσπετε νῦν μοι, Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ‘ ἔχουσαι - / ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα, / ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν). Homero (μοι, 484) se junta a um “nós” (486) que é contraposto, com ênfase, a um “vós” (485), ambos em posição inicial no verso.45 O poeta (μοι), portanto, não

se distingue dos que nada sabem (ἡμεῖς), ainda que, de alguma forma, esteja mais próximo das Musas. No capítulo sobre a “fama” (kleos), veremos que essa noção é ambivalente na poesia épica, de sorte que qualquer tentativa de circunscrever seu sentido nessa passagem é arriscada, sendo possível, portanto, postular para ela a evocação de certa desconfiança em relação ao conhecimento tradicional (kleos).46

A ênfase na presença das Musas nos eventos (sua “autópsia”, para usar a categoria que será central no discurso historiográfico) em contraste com a ignorância dos poetas e dos receptores, malgrado o conhecimento (duvidoso) proporcionado pelo kleos, confronta o receptor com o fato problemático de não ter acesso direto ao passado que lhe apresenta a poesia homérica, ou seja, de que o mundo representado nos poemas é, em alguma medida, uma construção, já que o contato com ele se dá por uma mediação. Por certo há uma ponte, mesmo

44 Werner (2013c) é uma primeira versão de parte desta seção.

45 Para Pucci (1998: 36), entre outros, “nós” refere-se a “poetas”; cf. também Nagy (1997:

188), para quem “such a ‘we’ can refer elliptically to a whole vertical succession of performers”. Para Chantraine (1953: 33), porém, o poeta se associa a seu público; cf. também Grandolini (1996: 42-48). De fato, um “nós” semelhante aparece em Od. 1, 10 (“de um ponto daí, deusa, filha de Zeus, fala também a nós”), novamente uma oposição que tem como um dos polos uma combinação entre receptores e poetas. Para uma defesa dessa combinação – mortais e poetas – também na passagem iliádica, cf. Heiden (2008: 133).

46 Contra Ford (1992: 77) e Crotty (1994: 108), para quem, graças à participação das Musas,

o que é simples “rumor” torna-se “fama” (“renown”). Para Pucci (1998: 38), por outro lado, “the text, accordingly, contains an ambivalence. While the textual indicators imply that kleos is not divinely inspired, the context suggests that heroes will receive a kleos that is divinely inspired”; cf. também Heiden (2008: 133-34).

que tênue, entre o passado e o presente, qual seja, o kleos, o conjunto sempre renovado de certos discursos que circulam entre os homens. Vale notar, além disso, que o que segue é um catálogo que sempre de novo foi utilizado pelos receptores para finalidades contemporâneas, sendo que já os antigos, por isso mesmo, eventualmente nele identificaram adaptações posteriores à composição por Homero, como no trecho sobre Salamina (Il. 2, 557-58), uma suposta in- terpolação por conta do conflito entre Atenas e Egina.47 Assim, quando Bakhtin

afirma que é infinita a distância entre o discurso épico e o discurso acerca do presente, o segundo, por definição, aberto para seus contemporâneos, ele dá conta de certa leitura retrospectiva do discurso épico mas não das arenas de conflito que também fazem parte da produção, transmissão e recepção desse discurso na Grécia Arcaica e Clássica.48

Bakhtin chama de “distância épica” a separação entre o rapsodo e seu público do mundo heroico, que se encontraria num plano de tempo e de valor completamente diferente e inacessível, com exceção parcial daquele da elite. En- tretanto, a aproximação da poesia homérica de tradições orais vivas ao longo do século XX, sobretudo a partir dos trabalhos de Parry e de seu discípulo Albert B. Lord, problematizou a posição de Homero como primeiro autor do cânone ocidental (implícita nas leituras que vão de Goethe a Bakhtin), com o que se criou uma tensão ainda não resolvida: Homero deve ser lido como precursor de Virgílio e Dante ou como poemas orais coletados ao redor do mundo sobretudo em sociedades nos quais o letramento é incipiente?49

Fez parte da mudança de paradigma na leitura dos poemas homéricos uma valorização da compreensão do que teria significado a apresentação de um poe- ma épico-heroico por um rapsodo diante de seu público, em especial, as marcas linguísticas e temáticas que essa relação teria deixado nos poemas. Para diversos autores antigos e modernos, o objetivo precípuo da performance épica era tornar vivo ou presente certo passado apresentado como tal e relevante para o público.50

Isso ainda não significa, porém, que a performance seria capaz de mesclar ou mesmo fazer dialogar o plano ocupado pelos heróis com aquele de seu público.

Os poemas homéricos tratam de ações de homens “melhores” (mais fortes, mais poderosos) que os que compõem o público dos poemas, ou seja, da linhagem, já extinta, dos heróis, bem como de façanhas divinas que interferem diretamente no mundo desses seres. Quanto à representação das ações dos heróis, Ilíada e

47 Autópsia na historiografia grega: Sebastiani (2016: 31-34); absorção de noções épicas nos

textos de Heródoto e Tucídides: Pires (1999). Salamina: Brügger (2010: 179).

48 Distância entre o passado épico e o presente: Bakhtin (2010: 405-7).

49 Poesia homérica como oral: Parry (1971), Lord (1960), Foley (1999) e (2002) e Malta

(2015b); dupla face de Homero: Haubold (2007).

50 Na crítica antiga, o termo principal para identificar esse processo era enargeia; para essa

Odisseia têm mais pontos em comum que diferenças entre si, mas, por outro lado,

contêm temas e apresentam estágios distintos de uma mesma história tradicional. A Odisseia nitidamente representa um mundo posterior à Guerra de Troia. Uma estratégia narrativa e ideológica da Ilíada para circunscrever seu mundo no contex- to maior da tradição heroica é ligar a representação da geração que, grosso modo, antecede aquela dos heróis que lutam em Troia com as lutas que extinguiram as criaturas que vieram a ser conhecidas como “monstros” na recepção dos poemas. Já na Odisseia, tais criaturas, nunca eliminadas em definitivo por Odisseu, são vinculadas a um espaço particular, aquele que afasta Odisseu de seu mundo, cujo centro é Ítaca. A estratégia da Odisseia acaba por reforçar a humanidade de Odis- seu, pois ele usa em Ítaca, onde reconquista seu status de chefe do oikos, estratégias homólogas àquelas que usou em espaços não humanos.51

Uma das designações para as personagens masculinas dos poemas ho- méricos é hērōs, termo que é apresentado como polissêmico nos dicionários e léxicos modernos quando se refere à Grécia Arcaica, mas, no contexto da poesia hexamétrica, refere-se em primeiro lugar aos homens de certa época e, portanto, potencialmente distintos dos homens do presente pela dimensão de suas qua- lidades, de forma que pode ser sempre traduzido por “herói”. Claro, é objeto de disputa se e quando, na Grécia Arcaica, o público dos rapsodos identificou essas personagens como pertencentes a uma categoria cultual ampla designada igualmente por “heróis”, entes ligados a um determinado espaço, que agiam no mundo dos vivos e recebiam culto. Uma reconstrução precisa o suficiente e segura das interligações entre a poesia épica e práticas cultuais, porém, ainda não parece possível para esse período histórico, não obstante as tentativas, entre outros, de Gregory Nagy.52

Ao passo que o culto aos heróis pressupunha uma ligação efetiva e eficaz entre o mundo presente e um ente do passado, nosso parco conhecimento das performances épicas na Grécia Arcaica, que se dá sobretudo por meio de sua idealização nos próprios poemas homéricos, torna bastante difícil avaliar quão distante ou próximo o receptor vivenciava o mundo representado.53 A passagem

a seguir costuma ser citada nessa discussão (Il. 12, 1-33):

51 Hiato entre a espécie dos heróis e o presente do receptor: Grethlein (2012: 15-20). Mun-

do pós-guerra de Troia na Odisseia: Graziosi & Haubold (2005: passim). “Monstros” na Ilíada: Mackie (2008: 22-59); para o autor, faz parte dessa estratégia conferir traços monstruosos a Aquiles. Zanon (2017) mostra o problema de se trabalhar com a categoria de “monstro” na discussão da poesia hexamétrica. Para uma discussão dos diversos modos pelos quais as relações entre poemas arcaicos (hexamétricos), no que diz respeito à sua recepção por espectadores coevos, têm sido estudadas, cf. Rutherford (2012), sobretudo página 154 a 155.

52 Polissemia de hērōs: verbete ἥρως de H. W. Nordheider no LfgrE. Culto heroico (e poesia

épica): Parker (2011: 103-23 e 287-92), Nagy (1999a: passim) e (2012) e Bonifazi (2012).

53 Mundo heroico totalmente separado do presente (não só na épica homérica): Murray

(2001: 22). Mundo heroico em Trabalhos e dias: Currie (2007) e Werner (2012b) e (2013c), com bibliografia suplementar.

Assim o bravo filho de Menécio tratava

o ferido Eurípilo na cabana, e os outros lutavam, argivos e troianos, um denso grupo. Não iria

mais contê-los o fosso dos dânaos e a muralha em cima, larga, que edificaram para os navios com o fosso em torno, sem dar hecatombes esplêndidas aos deuses para que ela a suas naus velozes e ao numeroso butim dentro protegesse. Foi feita malgrado os deuses imortais; por isso não ficou muito tempo firme. Enquanto Heitor estava vivo, Aquiles, encolerizado, e a cidade do senhor Príamo era inexpugnável, também a grande muralha dos aqueus ficou firme. Mas após perecerem todos os melhores troianos e muitos argivos – uns, subjugados, outros restaram –, a cidade de Príamo ter sido pilhada no décimo ano, e os argivos, rumado nas naus à cara pátria, então Poseidon e Apolo conceberam

aniquilar a muralha volvendo o ímpeto dos rios. Tantos quantos das encostas do Ida fluem ao mar, Reso, Heptáporo, Careso, Ródio,

Grênico, Esepo, o divino Escamandro e Simoeis, onde muitas adargas e elmos

caíram no pó, bem como a linhagem de varões semidivinos: Febo Apolo volveu a boca de todos ao mesmo lugar. Nove dias contra o muro lançou a corrente; Zeus chovia sem parar, para mais rápido por a muralha à deriva no mar. O próprio Treme-Solo, com o tridente nas mãos,

ia na frente, e às ondas enviou o fundamento

de troncos e pedras, que aqueus montaram com esforço, e aplainou a terra ao lado do caudaloso Helesponto. De novo cobriu com areia a grande costa,

a muralha tendo aniquilado; redirecionou os rios a seu curso, por onde antes corria a água belo-fluxo.

No futuro, a muralha construída pelos aqueus será varrida por um dilúvio que não deixará traços da “linhagem de varões semidivinos” (ἡμιθέων γένος ἀνδρῶν). Na Ilíada, essa é uma das passagens na qual se tematiza a separação entre o mundo do público e o mundo dos heróis, o que não quer dizer que, dentro de certos limites, o público – e não apenas aquele composto pelas elites – não reconheceria a si mesmo, seus valores e, até certo ponto, suas instituições na maior parte do poema em que a tematização de uma aproximação ou separação não é explicitada dessa maneira. A distância relativa entre os mundos de Dio- medes e o de seu pai Tideu (Il. 4, 370-400 etc.), por exemplo, serve de paralelo para aquela entre o receptor e o mundo dos heróis; por outro lado, a geração de

Belerofonte, Héracles e Nestor ainda combateu “monstros”, mas esse tipo de heroísmo, do ponto de vista da Ilíada, está no passado.54

Essa capacidade da Ilíada de tanto aproximar o mundo dos heróis daquele do público da performance como de apontar para um passado irremediavelmente perdido é acentuada se concordarmos com a interpretação de James Porter para o valor da muralha aqueia no poema, em especial, a narração de sua destruição no canto 12: além de signo de ficcionalidade do próprio poema, ela teria uma “identidade funcional com o enredo da Ilíada”, em particular ao corresponder à própria muralha de Troia. A fama da muralha aqueia persiste precisamente porque esta desapareceu, e a permanência de sua memória depende da fama do próprio poema.55

Nessa passagem, os mortais são eles mesmos responsáveis pela ruína do que construíram. Suas ações, porém, são familiares para o público. Não há elementos que as tornam radicalmente estranhas: na história de Troia, uma cidade deixa de ser inexpugnável, é destruída e quem a ataca retorna para casa. Não são criaturas portentosas os grandes obstáculos, do tipo que, na Odisseia, são transferidos para um espaço e um tempo que não são os da narrativa principal e, além disso, são apresentados por uma voz que não é a de Homero.56 Odisseu é um herói à

medida que sobreviveu a perigos inauditos que o público do poema não enfrenta, mas, ao utilizar virtudes ao alcance do receptor, como, por exemplo, a astúcia na caverna de Polifemo, ele diminui a distância entre o mundo dos heróis e o mundo dos receptores.

Um último exemplo é a destruição ou separação irremediável do mundo dos feácios decidida entre Poseidon e Zeus (Od. 13, 146-58):

E a ele respondeu Poseidon treme-solo:

“De imediato eu faria, nuvem-negra, como dizes; mas sempre respeito e evito teu ânimo.

Agora, porém, quero a bem bela nau dos feácios,

voltando da condução sobre o mar embaçado, 150

golpear, para que cessem afinal e abdiquem da condução de homens, e com grande morro encobrir sua urbe”. Respondendo, disse-lhe Zeus junta-nuvens: “Querido, isto ao meu ânimo parece ser o melhor:

quando a ela, prestes a atracar, já mirar todo o povo 155

a partir da cidade, torne-a pedra perto da terra, semelhante a nau veloz, para se espantarem todos

54 Diomedes e Tideu: Grethlein (2006: 55-58); “monstros” na Ilíada: Mackie (2008: 21-62). 55 Cf. Porter (2011: 21-24); a citação está na página 21.

56 Sigo aqui o esqueleto da interpretação de Bakker (2013) acerca da distinção fundamental

entre o canto de Homero e o discurso de suas personagens, em especial, de Odisseu diante dos feácios.

os homens, e que morro não encubra sua urbe”.

O motivo da discussão é a honra de Poseidon, pois o deus se sente lesado pela forma como os feácios honraram Odisseu (125-38). É curiosa a semelhança com a discussão entre Zeus e Poseidon no canto 12 da Ilíada, pois lá a honra do deus também se vincula à coletividade que o deus protege, o exército aqueu, em vista de uma ação que considera desabonadora – lá, a construção da muralha. Na Ilíada, Zeus garante a destruição da muralha; na Odisseia, o verso 158 é problemático.

“Não” (mē) é a leitura de Aristófanes de Bizâncio (e de boa parte dos edi- tores intérpretes modernos: ἄνθρωποι, μὴ δέ σφιν ὄρος πόλει ἀμφικαλύψαι) ao invês de “grande” (mega), a leitura preferida por Aristarco (e pela vulgata), que mantém o paralelo total com o verso 152 (ἀνθρώπων, μέγα δέ σφιν ὄρος πόλει

ἀμφικαλύψαι).57 Está em questão o destino feácio revelado por meio de uma

profecia ao pai de Alcínoo, Nauveloz (Nausítoo) (Od. 8, 564-71): Mas isto um dia eu ouvi dizer meu pai

Nauveloz: falava que Poseidon se irritaria conosco, pois somos seguros condutores de todos. Disse que, um dia, a engenhosa nau de varões feácios, voltando da condução sobre o mar embaçado,

golpearia e com grande morro encobriria nossa urbe. Assim falava o ancião; e isso o deus pode completar ou deixar incompleto, como for caro a seu ânimo.

Erbse defende que os oráculos fornecidos em um texto literário, via de re- gra, se realizam de forma completa.58 Contudo, a relação especial entre os feácios

e Poseidon, a insistência por parte de Alcínoo de que a realização desse oráculo pode estar em aberto (Od. 13, 172-83) e o sacrifício imediato a Poseidon apoiam

uma leitura menos determinista.59 E é assim que Homero nos deixa, sem nos

revelar o destino último dos feácios ao desviar bruscamente dos eventos na terra dos feácios para o destino de Odisseu em Ítaca (185-87): “E assim eles rezavam ao senhor Poseidon, / dirigentes e capitães do povo dos feácios, / de pé em volta do altar. E acordou o divino Odisseu (...)”.

Na antiguidade, uma das razões para a recepção positiva da leitura de

57 Exemplo de defesa de mē: Cook (1995: 124, n. 36); o manuscrito B lê meta (“depois”).

Discussão detalhada das interpretações da passagem em Marks (2008: 53-60).

58 Cf. Erbse (1972: 146).

59 Cf. Nagy (2001: 38). Parece, assim, haver uma diferença importante em relação ao

contexto da passagem iliádica. Por outro lado, Nestor, esse expert em coisas divinas na Odisseia (cf. o capítulo cinco infra), afirma que o ânimo dos deuses só se altera lentamente, mesmo – subentende-se – com sacrifícios (Od. 3, 141-47).

Aristófanes foi a identificação de Córcira como Esquéria. Portanto, as duas formas de transmissão do verso não apenas ilustram um problema central que acompanhou, desde muito cedo, a recepção dos poemas homéricos, qual seja, a moralidade divina – um Zeus que destrói os feácios de modo arbitrário não seria justo, portanto, não seria o Zeus junto ao qual está Dikē na poesia hesiódica (T&d 255-62). O verso em questão também revela como as plateias dos poemas vinculavam-nos à sua realidade, de um lado, e como o rapsodo se apoiava nesse diálogo entre passado e presente.60

II