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O discurso etnográfico (O d 4, 78-91 e 219-32) Perambulação, nada pior existe entre os mortais.

Gêneros de discurso

4. O discurso etnográfico (O d 4, 78-91 e 219-32) Perambulação, nada pior existe entre os mortais.

(Od. 15, 343)

Nesta seção, abordarei um tipo de discurso que chamarei de etnográfico. Se seguirmos Joseph E. Skinner, que, baseando-se em James Clifford, define etnografia, em seu sentido mais amplo, como “uma coleção de ‘modos diversos de pensar e escrever sobre a cultura’ a partir da perspectiva de alguém de fora (‘outsider’)”, então a origem múltipla do gênero deve ser buscada bem antes do século V a.C., inclusive nos poemas homéricos, os quais atestam uma intensa experiência de contatos interculturais que voltou a ser familiar aos gregos pelo menos desde o século VIII ou mesmo, como defendeu Irad Malkin, nos séculos IX e talvez X.436 Para esse último autor, “mitos, especialmente (…) os mitos

gregos dos retornos de Odisseu e de outros heróis, foram usados para mediar e conceitualizar etnicidade e identidade de grupo” entre os habitantes da Albânia, da Apúlia e do sul da Itália.437 Meu interesse principal nesta seção (e na primeira

seção do capítulo sete), porém, não são esses mitos de retorno (nostoi) que fazem parte da matriz mítica do poema, mas certas práticas discursivas que, de forma geral, apontam para “um processo discursivo mais amplo – processo por meio do qual a cultura e a identidade grega foram inventadas e definidas”.438

Para abordar algumas passagens odisseicas relevantes, inicio pela demons- tração de Johannes Haubold de que a Ilíada tem uma compreensão sofisticada do discurso ou tradição etnográficos.439 Tal discurso secundário faz parte do

sistema de gêneros familiar ao receptor do poema. O poeta dele se apropria para marcar, em um instante-chave e por meio de um deus – ninguém menos que Zeus –, a única diferença que realmente interessa para sua concepção poética, qual seja, o abismo entre deuses – e sua sociedade “exótica” –440 e homens, e não

as diferenças culturais entre povos. Zeus encontra-se no Monte Ida (Il. 11, 182), a principal montanha da Trôade e um dos pontos centrais da paisagem explorada

436 Definição de etnografia: Skinner (2011: 6). Colonização: Malkin (1998). Meu interesse é

discutir a forma como a experiência etnográfica é explorada no próprio texto dos poemas. Assim, deixarei de lado a discussão sobre a matriz oriental de diversos elementos do texto (Burkert 1992; West 1997; Morris 1997; Haubold 2013), já que tudo leva a crer que o conhecimento dessa matriz foi irrelevante na recepção dos poemas por plateias gregas (Kelly 2010; Haubold 2013).

437 Malkin (1998: xi). 438 Skinner (2011: 14). 439 Cf. Haubold (2014a).

no poema,441 e, no final do canto 12, os troianos finalmente dão mostras de

que a muralha aqueia não conseguirá contê-los. Zeus, então, perde interesse na batalha e olha para o norte (Il. 13, 1-9):

Zeus, após aproximar os troianos e Heitor das naus, deixou-os penarem e se agoniarem junto a elas sem cessar, e volvia os olhos brilhantes para longe, mirando a terra dos trácios criadores-de-cavalos, a dos combativos mísios, a dos ilustres hipemolgos,

bebedores-de-leite, e a dos ábios, os mais civilizados homens. De forma alguma volvia os olhos brilhantes para Troia: em seu ânimo, não esperava que um imortal

fosse socorrer troianos ou dânaos.

Diversos elementos dessa passagem sugerem um discurso etnográfico. Há um elencamento, na forma de um catálogo, de povos definidos por meio de epítetos que dão conta de diferentes aspectos culturais. Em momento algum, todavia, a Ilíada manifesta interesse em explorar o exotismo daqueles que com- batem em Troia, nem dos aliados troianos nem de outros povos mencionados, como os etíopes.442 “Criadores-de-cavalos”, o epíteto usado nessa passagem para

os trácios, aliados troianos, é exclusivo deles e só reaparece mais uma vez (Il. 14, 227).443 Outro epíteto exclusivo, akrokomos (“com um coque no alto da cabeça”,

Il. 4, 533), é um hápax iliádico. Ambos são um indício do interesse dos gregos

pela Trácia já na época em que os poemas homéricos alcançaram certa forma estável. A Trácia está para o norte assim como o Egito está para o sul da Grécia continental, não como antagonistas dos gregos, mas como um conjunto de co- munidades com as quais interagiram intensamente.444

A Mísia parece ser pensada, nessa passagem, como contígua à Trácia ou quase, ao contrário de fontes posteriores que a colocam na Anatólia. O epíteto dos mísios, por sua vez, talvez seja formular e indica uma forma de combater corriqueira no poema, tanto entre aqueus como entre troianos.445

441 Há uma estreita relação entre os pontos de onde os deuses observam os eventos na

planície troiana – especialmente o Monte Olimpo – e aquele ocupado por Homero (Graziosi 2013: 24-28; Clay 2011a: 23-25).

442 Os etíopes, claro, são um contingente aliado importante após a morte de Heitor. O

exotismo das amazonas também não é explorado minimamente (Il. 3, 189; 6, 186); cf. Haubold (2014a: 23).

443 Cavalos, na Ilíada, são associados sobretudo aos troianos e a seus aliados (Mackie 2008:

34-62); cf., porém, o símile que acompanha a aristeia de Ájax (Il. 15, 679-85) e Janko (1992: 302).

444 Trácios na Ilíada: Skinner (2011: 83-85). Relação entre trácios e egípcios: Lloyd (2010:

1068-69).

445 Localização da Mísia: Rutherford in Finkelberg (2011: 545). “Combativos mísios”:

Os hipemolgos, literalmente “leiteiros de éguas”,446 não parecem ser

fabulosos no mesmo grau que os hiperbóreos, mas históricos, encontrados por exploradores gregos que entraram no Mar Negro e se aventuraram para além

da foz do Danúbio, e fazem parte do mesmo universo dos citas.447 Os ábios

(“sem-violência”), por sua vez, explicitam um par de opostos bastante comum na poesia hexamétrica e no discurso etnográfico odisseico, aquele formado por bia e

dikē,448 como se vê nesta passagem (Od. 6, 119-21): “Ai de mim, dessa vez atinjo

a terra de que mortais? / Serão eles desmedidos, selvagens e não civilizados (dikaioi), / ou hospitaleiros, com mente que teme o deus?”.

Tendo em vista uma forma implícita de recusa do discurso etnográfico na

Ilíada, que, de forma muito breve, apenas introduz um longo episódio no centro

do qual está, no universo divino, a sedução de Zeus por Hera e o auxílio dos aqueus por Poseidon, podemos nos perguntar de que forma Homero e os narra- dores internos da Odisseia fazem uso desse mesmo discurso. Como Odisseu se tornou, na antiguidade, o protótipo do “observador-viajante”, é quase automáti- co pensar-se na Odisseia como uma exploração etnográfica poética.449 Contudo,

como se verá também no próximo capítulo, as funções do discurso são plurais, e são as condições de recepção do poema que realçam alguma função específica.

Comecemos pelo discurso de Menelau discutido na seção anterior, e do qual cito agora apenas a primeira metade (Od. 4, 78-91):

Caros filhos, nenhum mortal deveria disputar com Zeus: imortais são suas posses e morada;

dos varões, algum talvez disputará comigo

em posses. Sim, após muito padecer e muito vagar, conduzi-as nas naus e no oitavo ano cheguei, depois de vagar por Chipre, Fenícia e entre egípcios; os etíopes alcancei, os sidônios, os erembos

e a Líbia, onde cordeiros de súbito têm chifres completos. Três vezes ovelhas procriam no ciclo de um ano;

lá nem senhor nem pastor têm carência de queijo e de carne e nem de leite doce, mas sempre têm leite abundante na ordenha.

Enquanto eu por aí, recolhendo (xynageiron) muitos recursos, vagava, outro assassinou meu irmão (...)

446 “A salient characteristic considered sufficiently bizarre to merit an epithet of sorts, an

indication, in short, that mare-milkers were the subject of ‘ethnographic interest’” (Skinner 2011: 69).

447 Hipermolgos: West (2011: 18). Hipermolgos e citas: Janko (1992: 42) e Skinner (2011:

68).

448 O uso do superlativo também é característico do discurso etnográfico (Haubold 2014a:

28, n. 38).

às ocultas, de surpresa, com truque da nefasta esposa; assim reino, não me agradando dessas posses.450

Nesse trecho, o foco é o retorno de Menelau, com destaque para a forma como conquistou riquezas: não a pilhagem de uma cidade, como Troia, mas a recolha intencional de bens ao longo de uma viagem. A intencionalidade dessa recolha transparece no uso do verbo xynageirein (“recolher”). Esse sentido fica bastante claro quando o verbo é usado na voz média (Od. 14, 323 = 19, 293). O retorno postergado para juntar riquezas é um motivo tradicional (Od. 14, 321-26; 15, 68-91; 19, 272-84). No caso de Menelau, a narrativa sugere que ele escolheu o modo mais longo de voltar para casa com o objetivo de amealhar riquezas.451

Assim, nesse momento da Odisseia, mostra-se que Menelau pretende dominar o espaço assim como Nestor, pela sua idade, revela, no canto três, dominar o tempo. Entretanto, apesar de o verso 81 assemelhar-se a um proêmio conden- sado, o relato etnográfico é abortado452 por meio da menção do assassinato de

Agamêmnon (90-92), indicando-se que a riqueza é motivo de desagrado (93). Por conseguinte, o fechamento da primeira seção do discurso ocorre quando Menelau coloca sua errância em paralelo com a morte do irmão, mencionando de novo sua riqueza (ktemasin, 81… kteassin, 93), tema que originou seu discurso por conta das exclamações de Telêmaco. Esse paralelismo, por sua vez, inicia uma manipulação temporal por meio da qual Menelau destaca as razões de seu sofrimento presente, que surge como o tema principal do discurso, deslocando sua função narrativa para uma posição secundária.

Como se viu na seção anterior, a função pragmática principal desse discurso de Menelau e do seguinte é lamentar Odisseu. O relato etnográfico de Menelau como que desaparece na sequência de discursos que falam de Odisseu, Menelau e Helena no contexto da Guerra de Troia. Isso sugere que está em jogo algo parecido com o que se viu ser o caso na passagem iliádica discutida: a defesa de uma visão de mundo e, em consequência, de certa poética.

Algo diverso ocorre quando o próprio Homero insere uma pequena digres- são etnográfica ao contar que Helena tem a ideia de usar uma droga para que os convivas sigam se deleitando com histórias sobre a Guerra de Troia sem cair em novo choro (Od. 4, 219-32):

Mas então teve outra ideia Helena, nascida de Zeus; de pronto lançou droga no vinho do qual bebiam,

450 Tradução com modificações.

451 Tema do retorno postergado: Levaniouk (2011: 199-202); retorno de Menelau: Danek

(1998: 97).

452 Mutatis mutandis, algo semelhante ocorre com o relato sobre a Guerra de Troia iniciado

contra aflição e raiva, para o oblívio de todos os males. Quem a engolisse, após ser misturada na ânfora, nesse dia não lançaria lágrimas face abaixo, nem se a mãe e o pai tivessem morrido, nem se na sua frente irmão ou filho querido

com bronze tivessem matado, e a ele, visto com os olhos. A filha de Zeus possuía tais drogas astuciosas,

benignas, que lhe deu Polidamna, esposa de Tôn, no Egito, onde o solo fértil produz inúmeras

drogas, muitas benignas, misturadas, muitas funestas. e cada um é médico habilidoso, superior a todos os homens: sim, são da estirpe de Peã.

Aqui, ao contrário do trecho de Menelau, a digressão não só prepara a narrativa mas também sua interpretação, pois competirá ao leitor “separar”, na sequência, a história de Menelau da de Helena, o elogio de Odisseu do auto- elogio de Helena, a representação de Helena como vítima daquela de auxiliar do inimigo troiano.453 Discursos funestos e benignos, como o desenvolvimente

dessa cena mostrará, podem estar misturados.454

O Egito é uma referência constante no poema e está presente nos três principais relatos de viagens: no retorno de Odisseu por meio do episódio dos lotófagos; no retorno de Menelau; e nas histórias mentirosas do Cretense.455 Em

todas elas, em algum momento, algo bom está misturado a algo ruim.456 Essa

ubiquidade e a forte possibilidade de que o poeta da Odisseia se tenha baseado em fontes egípcias, diretas ou indiretas, sobretudo para o episódio de Proteu e para as drogas de Helena, sugere certa familiaridade do público receptor com relatos relativos ao Egito:457 “o poder e a riqueza, vastos, do Egito fizeram dele

um país de superlativos e um objeto de intenso fascínio” para os gregos bem antes de Heródoto.458

Pelo que se viu até aqui, não basta afirmar que a digressão etnográfica de Menelau serve para preparar ou antecipar sua narrativa mais longa (Od. 4, 346- 592), na qual conta a Telêmaco como aconteceu sua aventura egípcia no retorno de Troia, informando ao jovem que soube do deus Proteu que Odisseu, naquele

453 Note-se que, mais adiante no poema, Odisseu também efetivará saberes que o aproximam

de um médico (Bertolini 1988: 147; Krummen 2008: 27-28).

454 Essa cena será explorada no próximo capítulo.

455 Egito e o episódio dos lotófagos: Lieven (2006: 62-63).

456 O mesmo vale para a personagem Egípcio (Od. 2, 15-38), cujo nome relaciona-se à

região (Morris 1997: 612-13): embora seja gentil com Telêmaco, é caracterizado de forma a sugerir um possível antagonismo com Odisseu quando esse retornar a Ítaca (Werner 2009: 32-35).

457 Egito e a Odisseia: Lieven (2006) e Morris (1997: 612-14). 458 Citação em Skinner (2011: 99).