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Gêneros de discurso

1. Gêneros de discurso e o mythOs épico

O discurso épico, sob um ponto de vista funcional e transcultural, apre- senta-se, nas palavras de Richard Martin, como “o estado ‘natural’ do discurso, o modo pré-existente, a palavra-antes-do-gênero, a matriz das outras formas”, quando na verdade a linguagem épica é “especial”, ou seja, resultado de uma estilização da linguagem cotidiana. O autor já tinha demonstrado que, no caso da Ilíada, a tipicidade de certos atos de fala e dos gêneros discursivos decorrentes dessa tipicidade transparecem na excelência que algumas personagens do poema demonstram, via de regra, em uma arena pública por meio de uma performance discursiva. Até que ponto a riqueza discursiva da Ilíada, também verificável na

Odisseia, era corrente na tradição épica grega ou, de alguma forma, distinguiu os

poemas homéricos de performances épicas contemporâneas, isso é difícil – para não dizer impossível – de demonstrar.332

Os principais gêneros discursivos da Ilíada (jactância, louvor, censura, ameaça, profecia e lamento), por sua vez, têm diversos aspectos em comum com aquele que é o gênero maior, ou seja, o épico em sua vertente heroica. Entre esses aspectos, destaca-se o fato de serem especiais em relação a seus congêneres no mundo extra-poético. Fora da poesia épica, esses atos de fala tinham uma vida cultural independente, mas, dentro do gênero maior, tornavam-se subgêneros com seus respectivos contextos de performance. A importância que esses subgê- neros têm nas sociedades que geraram os poemas mantém-se neles, ainda que alterada em vista das especificidades do gênero-matriz. Não é possível provar essa relação para os poemas homéricos, mas estudos comparativos, mesmo os que visam a reconstruir uma poética indo-europeia, mostram ser ela mais que provável.333

332 Citação em Martin (2005: 10). Gêneros de atos de fala na Ilíada: Martin (1989).

Linguagem épica como estilizada: Bakker (1997) e Minchin (2007). Para uma aplicação da abordagem de Martin em outra tradição épica, cf. Davidson (1998). Uso do discurso direto nos poemas cíclicos: Marks (2010), que sugere que a Ilíada e a Odisseia não se distinguiam radicalmente de outros poemas épicos quanto ao uso de longos e elaborados discursos pelas personagens, e Rengakos (2015: 154), para quem virtualmente nada pode ser afirmado sobre a questão.

333 Gêneros discursivos dentro e fora do gênero épico: Muellner (1976: 32) e Martin (1989:

85). Abordagens comparativas: Martin (1989) e (2005), Nagy (1999b), Parks (1990), Watkins (1995) e Davidson (1998). Minchin (2007: 8) defende que, ao se examinar as representações de discursos em Homero, é possível identificar o que vem do uso cotidiano e o que foi estilizado em vista de uma finalidade poética. Parks (1990: 8) observa que não foram poetas singulares que criaram um gênero que, por ser atestado em culturas diversas, deve ser independente da matriz épica que os incorporou.

Essa abordagem é adequada para lidar-se com a carência de fontes relativas à recepção da poesia homérica na Grécia Arcaica. Parte-se da conceitualização de diferentes atos de fala no interior dos poemas para se chegar no gênero maior, a poesia épica, que, diacrônica e sincronicamente, interagiu de forma dialética com os gêneros desses atos de fala.334

Pode-se definir “gênero” como a estabilização de um padrão de comunica- ção.335 Essa compreensão mínima da noção permite a diferenciação defendida

por Mikhail Bakhtin e Tzvetan Todorov entre gêneros primários ou cotidianos e secundários ou literários.336 Gêneros são atuantes na produção e recepção de

discursos, sobredeterminando os mais diversos atos de comunicação. No caso de gêneros literários, “é porque os gêneros existem como instituição, que funcionam como ‘horizontes de expectativa’ para os leitores, como ‘modelos de escritura’ para os autores… Pelo viés da institucionalização, os gêneros se comunicam com a sociedade em que ocorrem”.337 De forma acentuada no caso de gêneros literários,

um gênero costuma coexistir com outros em um sistema de gêneros no qual se verificam relações hierárquicas que refletem juízos culturais.

A poesia épica, ao mesmo tempo que incorpora e transmuta gêneros discur- sivos cotidianos, também mobiliza outros gêneros literários ou secundários. Com efeito, diacronicamente, gêneros se constituem uns aos outros, diferenciando-se, em particular, por meio da mobilização e tematização recíprocas. O gênero é, por excelência, um espaço da recepção.338

Na Grécia Arcaica, não há um termo que abarque o que chamamos de poesia ou literatura, o que reflete a forma como era produzida, transmitida e recebida.339 Na poesia hexamétrica, utilizam-se alguns termos que comumente

são traduzidos por “canto” ou “canção”, sobretudo aoidē (“em cima, compreendeu no juízo seu inspirado canto – aoidē”: Od. 1, 328) e hymnos (“com o banquete se deleite, ouvindo o canto – hymnos – do aedo”: Od. 8, 429) e diversos termos que se referem a gêneros tradicionais de canto ligados a determinados contextos sociais,

334 Um estudo pioneiro dos tipos de discurso na Ilíada é Fingerle (1939), para o qual fui

alertado por Tsagalis (2004); igualmente influente é Muellner (1976), no qual se desenvolve um método para se definir a carga semântica de diferentes gêneros discursivos em Homero.

335 Cf. Bakhtin (2016: 11-71) e Fowler (1982: 22), para quem não há dúvida de que “genre

primarily has to do with communication. It is an instrument not of classification or prescription, but of meaning”.

336 Cf. Bakhtin (2016: 11-71); para Todorov (1980: 48), “numa sociedade, instituicionaliza-

-se a recorrência de certas propriedades discursivas, e os textos individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que esta codificação constitui. Um gênero, literário ou não, nada mais é do que essa codificação de propriedades discursivas”.

337 Citação em Todorov (1980: 49).

338 Constituição mútua diacrônica entre gêneros: Nagy (1990b); Barchiesi (2001); Werner,

Sebastiani & Dourado-Lopes (2014).

339 Cf. Ford (2002: 10); para uma discussão acerca do desenvolvimento de uma concepção de

como o peã, o treno e o himeneu.340

Isso não significa que, na recepção dos cantos épicos, não houvesse, mais ou menos estabilizado e atuante, um sistema que poderíamos denominar literário.341

Para Andrea Rotstein, “como em qualquer outro aspecto da experiência humana, o mundo do discurso poético e da performance na Grécia Arcaica era um con- tínuo, articulado em práticas sociais e rituais. Para apreender esse contínuo, as comunidades o organizavam e categorizavam em sistemais conceptuais, algumas vezes no sentido dessas práticas sociais e rituais”, ou seja, trata-se de sistemas de gêneros.342

Dois termos que se mostram mais produtivos para se investigar como a poesia épica se autodefine são epos e mythos, ambos de uso amplo e influente nas tentativas gregas posteriores de definir o que é o discurso literário e o gênero épico. Mythos passou, muito cedo, a significar “história”, “mentira” ou “ficção” e

epos, verso hexamétrico.343 Um divisor de águas na compreensão do termo mythos

tal como utilizado na poesia homérica foi a monografia The language of heroes, de Richard Martin.

Tem sido prática comum de lexicólogos e tradutores lançar mão de um grande leque de sentidos para os dois termos, mythos e epos, via de regra, com- preendidos quase como sinônimos; para mythos, por exemplo, “discurso”, “fala” e “palavra” e, dependendo do contexto, “conselho”, “ameaça”, “acusação”, “pro- posta” e “história”.344 Martin, porém, define mythos, em Homero, como “um ato

de fala que indica autoridade, cuja performance é longa, geralmente em público, focalizando uma atenção total em cada detalhe”; epos, como “uma enunciação idealmente curta que acompanha um ato físico e tem um foco na mensagem,

340 Para uma discussão de hymnos, cf. Maslov (2015: 286-94): o autor defende que na poesia

lírica arcaica o termo geralmente se refere a uma performance mélica que envolve um coro. O termo teria entrado na poesia hexamétrica em um estágio tardio, posterior ao uso de aoidē. Nagy, porém, defende que o termo envolve uma noção técnica na poesia hexamétrica: “When the hymnos leads to epic (…) it is not just a prooimion that introduces epic. The hymnos is also the sequencing principle that connects with epic, then extends into epic, and then finally becomes the same thing as epic itself” (Nagy 2009: 312). Todavia, tanto hymnos quanto

prooimion, ao aparecerem em contextos diversos (prooimion é bem mais raro em testemunhos

anteriores ao século IV), não têm necessariamente o mesmo ou um único sentido. Dessa forma, Bruno Currie está, pelo menos em boa parte, correto ao afirmar que “‘hymn’ (hymnos) in early Greek epic was not a generic term but meant ‘song’ generally” (Finkelberg 2011: s.v. “Hymns, Homeric”). Menos categórico é G. Markwald (LfgrE), que define ὕμνος como “Hymnus, ep(ischer) Gesang, Bed(eutung) u(nd) Funktion im einzelnen umstritten”. Acerca de prooimion, cf. Maslov (2012), que defende de forma persuasiva que prooimion é um ato de fala, não um termo poético.

341 Contra Ford (2002: 10). 342 Citação em Rotstein (2010: 3-4).

343 Para os sentidos de epos no período arcaico e início do clássico, cf. Koller (1972). 344 Cf., por ex., Cunliffe (1963: s. vv.).

tal como percebida pelo receptor, mais que na execução do falante”.345 O autor

mostra que, por conta da interrelação entre certos atos de fala, especialmente aqueles dominados por Aquiles, e a própria Ilíada, o poema revela-se um mythos, ou seja, um ato de fala que reafirma certa autoridade.346

Contudo, essa distinção entre epos e mythos não é operante em cada uso dos termos.347 Diversos mythoi são discursos curtos. Outro problema é que o

próprio canto homérico é chamado de aoidē e não de mythos, o que se resolve, pelo menos parcialmente, assumindo que a poesia épica deixou de ser cantada em sua evolução. Vejamos como um trecho do diálogo entre Telêmaco e Atena no canto um da Odisseia pode contribuir com essa discussão.

345 Cf. Martin (1989: 12), que também é o autor dos verbetes “myth” e “epos” em Finkelberg

(2011a).

346 Cf. Martin (1989) e Nagy (1999b: 25).

347 Martin (1989: 12) reconhece que epos é sinônimo de mythos em alguns poucos casos e

que a diferença entre os termos tende a ser apagada na oposição com a categoria geral da ação (p. 28).