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A tradição épica

4. O retorno de Troia

Na análise da poesia homérica, não é desejável separar a utilização das fer- ramentas heurísticas legadas pela teoria oral (fórmulas, temas e histórias-padrão) das tradições mitológicas pressupostas pela Ilíada e pela Odisseia. O receptor dos poemas tinha um conhecimento razoável dos heróis particulares e de suas ges- tas. Trata-se de um cânone de nomes e ações caracterizado pela multiformidade. A construção da Odisseia implica certas decisões em relação a esse cânone, cujo núcleo principal podemos chamar de “ciclo épico”.120

A expressão “ciclo épico” pode referir-se a um conjunto de poemas perdidos, agrupados provavelmente entre os séculos IV e III, cuja matéria era como que uma história da humanidade desde o surgimento do cosmo até o desaparecimento dos heróis. Nessa história, destacavam-se duas guerras, aquelas contra Tebas e Troia. Não é mais possível saber, com mínima segurança e certeza, quão antigos eram esses poemas nem quem os compôs. Deles têm-se pouquíssimos fragmentos e o resumo de suas histórias é não só bastante tardio, mas também indireto. O mais provável é que paulatinamente, talvez já no século V, uma versão entre várias des- ses poemas, de datação virtualmente impossível para nós, tenha preponderado na transmissão escrita. Antes disso, porém, os diversos gêneros épicos e documentos pictográficos dialogaram intensamente com a tradição mitológica que é a base da matéria desses poemas.121

Ao passo que a Ilíada e a Odisseia, tal como as lemos hoje, pressupõem que sua importância cultural foi decisiva o suficiente para que se decidisse por certo modo de transmissão por escrito em uma época em que isso ainda deveria ser antes a exceção que a norma, é necessário levar em conta que os dois poemas alu- dem a uma enorme quantidade de histórias ou aspectos do mundo dos heróis que eles não desenvolvem, muito embora fossem, pelo menos em linhas gerais, do conhecimento de seu público. Assim, se não é surpreendente que, no século VII e em boa parte do século VI, a maior parte dos vasos gregos com matéria troiana que chegaram até nós não retratam acontecimentos que compõem a história principal da Ilíada e da Odisseia, também não é irrelevante que, no século V em Atenas, quando os dois poemas homéricos já são verdadeiros monstros sagrados,

120 Excelentes introduções e discussões do material cíclico são Burgess (2001) e Tsagalis

& Fantuzzi (2015). Discussões abrangentes da relação entre a Odisseia e o material cíclico são Danek (1998) e Marks (2008).

121 Para várias maneiras de abordar os testemunhos diretos e indiretos e os fragmentos dos

poemas, cf. Fantuzzi & Tsagalis (2015). Sigo principalmente a abordagem prudente de Burgess (2001), (2009) e (2015).

tão poucas tragédias tomaram seus enredos diretamente de episódios centrais dos dois poemas, ao contrário do que ocorreu com outros episódios da Guerra de Troia que, nessa época, eram conhecidos do público por meio de poemas mais ou menos fixos do ciclo épico. Entre as tragédias supérstites integrais, destacam-se

Agamêmnon, Ájax, Filoctetes, Hécuba, Troianas e Ifigênia em Áulis.122

As formas como se tem discutido a história cultural da qual faz parte a pro- dução, transmissão e recepção dos dois poemas homéricos, aliada ao modo como uma tradição oral costuma se desenvolver, sugere que, na constituição da Ilíada e da Odisseia, a definição de um grande fio narrativo que permitiu incluir boa parte da tradição mitológica troiana também implicou decisões gerais e pontuais sobre o que deixar mais ou menos de fora dos poemas. Para a compreensão da

Odisseia são centrais as histórias conhecidas como nostoi, as quais deram origem

a um poema intitulado Nostoi, que também fez parte do ciclo épico.

O substantivo nostos, derivado do verbo neomai (“alcançar, salvar-se, chegar em casa, retornar”) manifesta uma raiz indo-europeia (*nes-), cujo sentido básico é “voltar são e salvo (para casa)” e “escapar (em oposição a morrer)”. Quem realiza bem um nostos, portanto, coloca-se em segurança (Od. 5, 344). Nostos também é a tradição épica que narrava o retorno dos heróis de Troia: alguns voltaram bem para casa (Nestor); outros mal (Ájax; Agamêmnon); outros demoraram para retornar (Odisseu; Menelau). Além disso, o “retorno do herói” é um padrão de narrativa comum a várias tradições indo-europeias, descrito por Lord como con- tendo as seguintes etapas: ausência, devastação, retorno, retribuição, casamento. Como se verá no capítulo cinco, é extraordinário que seja Nestor quem conte a Telêmaco o retorno dos aqueus, visto que seu próprio nome o qualifica para isso, possuindo um sentido transitivo, “o que traz para casa”, e não “o que volta para casa”, o que sugeriria a raiz *nes-.123

Essa forte coesão temática presente na Odisseia também se manifesta em outro nome fundamental para o retorno de Odisseu, o de Alcínoo. O segundo radical de seu nome é o de noos, substantivo verbal de neomai, “salvar-se”, uma etimologia algo polêmica, mas que parece se manifestar na Odisseia, tendo em vista que os barcos feácios nunca erram seu destino pois têm uma mente (noos) própria (Od. 9, 554-60).124

O conjunto de relatos desenvolvidos por Nestor e Menelau, respectivamen- te, nos cantos três e quatro, como que forma um pano de fundo para o retorno

122 Contexto da produção, transmissão e recepção dos poemas homéricos no período arcaico:

Nagy (1999a) e (2012) e González (2013: 15-293). Vasos com cenas “homéricas” nos séculos VII e VI: Giuliani (2003: 77-230) e González (2013: 46-67).

123 Raiz *nes-: Chantraine (1999), Frame (2009) e Beekes (2009: 1008). Tradição do nostos:

Nagy (1999a) e (2005). Tradição do “retorno”: Foley (1999: 115-67) e Lord (1960: 158-85). Nestor: Frame (1978: 28-29).

124 Raiz de noos é a mesma de nostos: LfgrE e Frame (1978); céticos: Chantraine (1999:

que compõe a narrativa central da Odisseia, aquele de Odisseu. Esses relatos, que na Odisseia recebem uma formulação bastante sintética, deveriam ser conheci- dos, em sua multiformidade, pelo público receptor do poema. Nesse sentido, a construção da Odisseia não está distante daquela da Ilíada, já que nesse poema diversos episódios narrados entre os cantos um e oito ecoam episódios da guerra de Troia que aconteceram antes do tempo da história principal.

Um exemplo na Odisseia é o contexto maior do retorno bem-sucedido de Odisseu, que depende da atuação de Atena. Contraparte dessa benevolência é a ira da deusa antes da partida dos gregos de Troia, pois, na conquista da cidade, Ájax Oileu violou o templo de Atena ao dele arrancar uma suplicante, Cassandra, filha de Príamo. Como os aqueus não puniram esse crime religioso, a deusa se vinga com a ajuda de Poseidon, e uma tempestade terrível ocorre no início do retorno à Grécia. Esses eventos são direta e indiretamente evocados no início do poema, principalmente nos cantos um e três, estratégia que reforça o caráter positivo da ação da deusa junto a Telêmaco e Odisseu. Para discutir-se a

Odisseia, portanto, devem-se examinar as formas como se manifesta, no poema,

o conjunto tradicional de histórias que ele pressupõe, o que ocorrerá em diversos momentos nos capítulos s seguir.

III