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A tradição épica

1. Homero e Hesíodo

Juntos formaram a espinha dorsal da épica grega arcaica e a formulação do pensamento grego sobre deuses e homens com máxima autoridade.

(Haubold 2013: 54)

É possível definir como o conteúdo geral da tradição épica uma história do cosmo, dos deuses e da humanidade do início até o tempo presente implicado na situação de recepção dos poemas. Nessa formulação, “história” não é apenas sinônimo de “narrativa”, pois os poemas possuem, para o receptor grego, um alto grau de historicidade.70

Entre os séculos VII e V, dois nomes de poetas passaram a ocupar o cen- tro dessa tradição, ou seja, se tornaram canônicos por meio dos textos a eles atribuídos, Homero e Hesíodo. Eles aparecem muitas vezes citados em dupla nos parcos testemunhos do período, às vezes aproximados, às vezes diferencia- dos.71 Linguagem, metro, histórias tradicionais e elementos culturais comuns

permeiam os poemas atribuídos aos dois poetas. Pelo menos em relação ao início desse período não é necessário e talvez nem mesmo apropriado falar-se em duas tradições poéticas distintas; todavia, na antiguidade, na recepção desses poetas e dos textos a eles atribuídos, as distinções poderiam ser realçadas, o que foi fundamental na discussão aristotélica de poesia e entre os alexandrinos.72

Assim, o valor relativo dos poetas entre si oscila na antiguidade. No frag- mentário Arquílocos de Crátino, por exemplo, Hesíodo, talvez como Sófocles nas Rãs de Aristófanes, parece, eventualmente por conta de uma superioridade evidente, estar à margem de uma competição entre Homero e Arquíloco. Já Aristóteles, embora não esteja interessado nos poemas hesiódicos, distingue, nos capítulos 23 e 24 da Poética, os poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, dos poemas cíclicos. Por fim, os críticos alexandrinos, em sua discussão de Homero,

69 Alguns argumentos desta seção tiveram uma primeira versão em Werner (2013c);

assim, alguns parágrafos são citações (quase) verbatim do artigo. A ideia central, porém, foi modificada: defendo aqui que Homero e Hesíodo, numa primeira fase de sua recepção nos séculos VIII-VII (e talvez VI), talvez não tenham sido percebidos, em primeiro lugar, como representantes de tradições (ou mesmo subtradições) distintas.

70 Historicidade das narrativas épicas: Grethlein (2006) e (2010). Conteúdo da tradição

épica: Graziosi & Haubold (2005); Clay (2011b); e Haubold (2013: 18-72).

71 Por exemplo, em Xenófanes B11, 1-3 (texto grego em Diels & Kranz 1964): “Tudo aos

deuses atribuíram Homero e Hesíodo, / tanto quanto junto aos homens é censura e ofensa, / roubar, cometer adultério e enganarem-se uns aos outros”. Esse trecho indica o peso da autoridade dos dois sábios no mesmo tópico referido na passagem de Heródoto.

72 Recepção de Hesíodo e Homero: Graziosi (2001) e (2002), Koning (2010), Hunter (2014)

e Canevaro (2015). Confluências entre os dois poetas: Krafft (1965), West (1966), Edwards (1971), Neitzel (1975), West (1978), Muellner (1996) e Allan (2006). Cf. também Irwin (2005).

buscaram identificar na Ilíada e na Odisseia elementos supostamente não homé- ricos, os quais Gregory Nagy classifiou como cíclicos, hesiódicos e órficos.73

Barbara Graziosi e Johannes Haubold, ao mesmo tempo que assinalam que os principais poemas associados a Hesíodo e Homero compartilham uma mesma visão do cosmo, defendem a existência de duas tradições, a homérica e a hesiódica. A poesia hesiódica como um todo comporia mais propriamente uma espécie de história do cosmo; as histórias da tradição homérica tratariam de momentos cruciais dessa história universal, um deles, a Guerra de Troia. 74

Esses autores pensam o corpus hexamétrico arcaico em termos da sua recepção; assim, o Catálogo das mulheres foi atribuído a Hesíodo porque certas características suas o encaixaram nessa tradição específica.75 Quanto àquilo que

seria percebido como homérico, trata-se de poemas que se debruçam em um momento importante dessa história e o desenvolvem por meio de uma narrativa. Isso vale tanto para os poemas com temática heroica como para os hinos narra- tivos que, por exemplo, podiam contar o nascimento de um deus.

Essa interpretação dos chamados Hinos homéricos é, em parte, distinta daquela proposta por Jenny S. Clay, que analisou os quatro hinos mais longos tratando-os como pertencentes a um gênero distinto da poesia épica de temática heroica e anterior a ela. Parte da coleção formada pelos Hinos homéricos é narrati- va como a Ilíada e a Odisseia, mas também possuem elementos retóricos de textos poéticos bastante distintos entre si no que diz respeito a dialeto, conteúdo, metro e ocasiões de performance. Como gênero, os hinos testemunham uma religião olímpica pan-helênica e a história que contam é um instante crítico, anterior à estabilização do panteão. Contudo, ao defender uma “política do Olimpo” como o aspecto temático central dos hinos, Clay ao mesmo tempo localiza o gênero entre a poesia teogônica (hesiódica) e a poesia (heroica) homérica.76

Um poema difícil de ser encaixado no modelo de Clay é o Hino homérico a

Afrodite, já que nele é justamente um herói, Anquises, o protagonista da história

junto com a deusa. Nesse hino não se narra nem o nascimento de um novo deus (como no H. h. 4 a Hermes) nem o estabelecimento de um culto (como no H. h.

3 a Apolo). Trata-se, portanto, do hino “mais heroico” dos quatro, ao passo que

o Hino homérico a Apolo seria o “mais teogônico”, pois nele, na interpretação de Clay, Apolo apareceria, desde o início, como o deus que poderia desafiar o poder

73 Crítica/louvor variável dos poetas: Koning (2010: 81). Arquílocos: Bakola (2010: 65-79) e

Rotstein (2010: 289-93). Crítica à análise aristotélica: Burgess (2001) e Marks (2015); crítica alexandrina: Nagy (2009: 248-49 e passim).

74 Cf. Graziosi & Haubold (2005: 37-38 e 42); na formulação dos autores, “the Homeric

and the Hesiodic epics describe the same world, albeit from different perspectives and at different stages of development. This shared vision of the cosmos lies at the heart of the early epic tradition” (p. 36).

75 Cf. também Rutherford (2012: 157-58).

do pai, dando continuidade, se esse fosse o caso, às sucessões representadas na

Teogonia. O deus acaba, porém, por se subordinar à ordem presidida por Zeus.77

Contudo, o exemplo mais claro da separação, por ela proposta, entre três gêneros de poesia hexamétrica acaba sendo, de forma paradoxal à primeira vista, o Hino

homérico a Afrodite, pois Clay defende que ele incorpora os outros gêneros.78

Aspectos narrativo-estruturais são mais importantes na diferenciação pro- posta por Graziosi e Haubold. Eles se revelam no desenvolvimento narrativo de episódios particulares, uma forma ausente ou mitigada na Teogonia e no Catálogo

das mulheres.79 O corpus épico, portanto, seria dividido em dois conjuntos: no ho-

mérico, prepondera a narrativa, no hesiódico, listas de diferentes tipos. Embora a idade dos heróis esteja presente em ambas as tradições, o enfoque e as formas de representação são distintos.

Diferenciações muito rígidas, entretanto, são escorregadias, pois poucos exemplos concretos dessas tradições chegaram até nós, eles parecem ser pou- co representativos e os conhecemos apenas em sua forma textual, o que pode levar a enganos quando se busca entender uma tradição oral. No contexto das performances arcaicas da poesia épica, todo e qualquer episódio poderia ser comprimido ou expandido ad libitum. Os mesmos elementos característicos de uma poética oral que estão na base da forma textualizada dos poemas heroicos também devem ter se manifestado nos poemas teogônicos como a Teogonia: dadas certas condições de performance, não é improvável que certos episódios comprimidos na Teogonia, como a castração de Céu (Urano) ou o embate entre Zeus e Prometeu, tenham recebido uma forma narrativa “homérica”. Por outro lado, é pouco provável que Ilíada e Odisseia sejam representativos da tradição épica, ou seja, não deveria ser incomum uma performance épica com um enredo composto por poucas expansões como se verifica na Odisseia quando Odisseu ou outra personagem conta seu retorno de Troia. Além disso e, talvez, mais importante, tanto os poemas homéricos como os hesiódicos não só incorporam, da tradição épica pensada em sua totalidade, elementos que, até certo ponto, distinguiriam “Homero” e “Hesíodo” como tradições ou subtradições distintas, mas também o fazem de outras tradições poéticas, por exemplo, aquelas do Oriente Próximo.80

A Ilíada e a Odisseia possuem várias passagens compostas por catálogos que se relacionam de modo orgânico com o restante da narrativa, como atesta a estrutura programática do “Catálogo das naus” na Ilíada, demonstrada de

77 Chappell (2011: 75-80) discorda da leitura de Clay, que faz de Apolo uma ameaça possível

a Zeus e, de Hera, uma desafiadora de Zeus.

78 Gênero do H. h. 5 a Afrodite: Clay (2006: 159-61). 79 Cf. Graziosi & Haubold (2005: 41).

80 Excepcionalidade da Ilíada e da Odisseia: Burgess (2001), Ford (1997b) e Marks (2015).

forma convincente por Jim Marks (2012).81 Já o Catálogo das mulheres, atribuído

a Hesíodo e que chegou até nós em uma forma fragmentária, tem pelo menos um momento que o aproxima um pouco mais da forma narrativa típica da poesia homérica, a saber, os fragmentos que pertencem ao catálogo de pretendentes de Helena. Esses fragmentos falam da corte feita a Helena, de seu casamento com Menelau, do nascimento da filha Hermíone e do plano de Zeus de destruir a idade dos heróis. Desse trecho, todavia, como de resto em todo o Catálogo, está ausente o que é decisivo, aquilo que os críticos antigos elogiavam na Ilíada e na Odisseia e que podemos chamar de sua “poética visual”, que é tanto mais impressionante quando se trata de cenas que o receptor não teria prazer algum de ver in locu, como, por exemplo, batalhas sangrentas.82 A transformação do

que é a priori terrível e doloroso em algo que causa prazer é, se não a principal, pelo menos uma das aptidões dos rapsodos vinculadas às Musas.83 Esse tipo de

experiência propiciada pelo discurso poético não é, porém, o único possível na tradição épica.

A estrutura fragmentária e as elipses e enigmas de Trabalhos e dias exigem participação ativa do receptor na construção dos sentidos do poema. Na Teo-

gonia, a construção de etimologias para o nome e os epítetos de Afrodite, por

exemplo, não é apenas um tour de force poético que produz uma narrativa de alta densidade visual, mas implica uma postura agônica em relação à tradição como um todo e que joga com a adesão do receptor à geração de Afrodite proposta. Por fim, diversos discursos de personagens na Ilíada e na Odisseia exigem, como se verá neste livro, que o receptor não absorva passivamente a comunicação e sim desvele camadas de sentido não explicitadas pela personagem ou por Ho- mero.84 Ao se levar esses elementos em consideração, não está se subestimando

as importantes diferenças entre Homero e Hesíodo, mas é possível propor que essas tenham sido tematizadas de forma mais frequente e aguda com a crescente canonização de um número cada vez mais limitado de poemas atribuídos aos dois poetas.

81 “It therefore appears that one of the organizing principles that underlies the Iliad is a

cluster of heroes whose homelands are introduced sequentially in the Catalogue of Ships, running from Meges in Elis through Odysseus’ Cephallenians and Thoas’ Aetolians to Idomeneus’ and Meriones’ Cretans, and who tend to track together as the narrative proceeds”: Marks (2012: 106).

82 “Poética visual”: expressão utilizada em Clay (2011a); cf. também Ford (1997a: 405-6) e

Graziosi (2013). Halliwell (2011: 36-92), por sua vez, mostra os limites de qualquer tentativa de circunscrever uma poética homérica.

83 Musa na poesia homérica: Halliwell (2011: 53-67). Para diferentes concepções da(s)

Musa(s) na poesia grega arcaica, cf. Maslov (2016). Voltar-se-á a esta questão em outros capí- tulos abaixo.

84 Trabalhos e dias: Canevaro (2015) e, para uma discussão resumida de alguns tópicos,

Canevaro (2014). Afrodite na Teogonia: Werner (2013b: 14-15). Discursos na Ilíada: Heiden (2002).

Assim, a Teogonia, que pode ser pensada como um grande hino a Zeus, tem um equacionamento de trechos propriamente narrativos e outros compostos por catálogos que tornam a estrutura do poema bastante distinta daquela do Catálogo

das mulheres. O conteúdo da Teogonia (combates pela soberania), por outro lado,

aproxima-o, pelo menos até certo ponto, de um poema marcial como a Ilíada.85

Mutatis mutandis, algo similar se verifica ao se colocar em paralelo Trabalhos e dias e a Odisseia. Seus proêmios possuem semelhanças que talvez não sejam

ocasionadas apenas por pertencerem à mesma tradição poética. Se no poema hesiódico Hesíodo alerta seu irmão Perses dos danos de uma vida dedicada à pi- lhagem das riquezas conquistadas por outros em detrimento daquela oriunda do trabalho agrícola, na Odisseia essas diferentes posturas são mostradas por meio de oposições como a de Odisseu em relação aos pretendentes ou a de Eumeu em relação a Iro, ainda que o nobre guerreiro Odisseu, que volta a Ítaca com uma pletora de ricos presentes dos feácios, se mantenha no topo da escala social.86

85 Teogonia como hino: Nagy (2009: 192-96); como “catálogo genealógico com digressões

narrativas”: Muellner (1996: 56). Teogonia e Ilíada: Muellner (1996) e Blaise & Rousseau (1996). Sobre esse último tópico, todavia, Pucci (2009: 63) nota que nada nos é informado sobre os modos de os Titãs combaterem nem sobre a atuação dos olímpicos individuais; Hesíodo só foca Zeus e os Cem-Braços. Assim, de modo algum se trataria de uma duplicação das cenas de batalha iliádicas. Mostra-se a diplomacia astuta de Zeus e sua capacidade como líder militar: tratar-se-ia de uma batalha pela soberania.

86 Proêmios: Werner (2016a). Estratégias ideológicas na Odisseia: Edwards (1993). Viés

2. A dicção tradicional da poesia homérica: