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Gêneros de discurso

3. O discurso de lamento (O d 4, 1-185 e 715-94)

Quando Telêmaco e seu companheiro de viagem, Pisístrato, filho de Nes- tor, chegam a Esparta, o ambiente na casa de Menelau é festivo – na superfície – por conta de dois casamentos (Od. 4, 3-19), o da filha que teve com Helena, Hermíone, enviada a Ftia para casar com Neoptólemo, a quem fora prometida em Troia, e o do filho que teve com uma escrava, Grandaflição (Megapenthēs). O nome do filho bastardo evoca o sofrimento causado pela partida de Helena com Páris e, no momento da visita de Telêmaco, esse sentimento é ativado com vee- mência por conta da ausência de Odisseu. Também sugestiva de uma atmosfera algo nebulosa em Esparta é a afirmação de Homero de que Helena dera apenas um rebento a Menelau – e uma menina (12-13) –, que, além do mais, tem a beleza de Afrodite (14), o que aponta para a excelência causadora de desgraças da mãe.379 Por fim, o receptor talvez se lembre da versão canônica (a partir de

quando?) do casamento de Hermíone com Neoptólemo, interrompido por conta da intervenção violenta de Orestes (a quem fora prometida antes?): em todas as versões da história, Orestes conquista Hermíone e, na maioria delas, mata Neoptólemo. Se levarmos em conta a versão de Eurípides (Andrômaca 968-70), Menelau prometeu a filha a Orestes antes da guerra.380

O duplo casamento (3-19) está em franco contraste com o ambiente har- mônico e piedoso que Telêmaco encontrara em Pilos e é deixado de lado por Homero assim que os dois jovens entram na casa de Menelau, o que acentua que as bodas servem para Homero introduzir cedo na narrativa o tema do casamento de Helena e Menelau, cujo insucesso reflete-se no sofrimento passado e futuro que subjaz aos dois novos casamentos.381 Desde o início do canto, portanto, Ho-

mero instiga o receptor a buscar a verdade que se encontra sob uma aparência enganadora.

Canto e dança promovem o caráter festivo do casamento (Od. 4, 15-19):

379 Od. 12-14: “(…) deuses não deram mais rebento a Helena / desde que, primeiro, gerou

a filha encantadora, / Hermíone, que tinha a formosura da dourada Afrodite”.

380 Felicidade superficial: Danek (1998: 96). Grandaflição: para Clader (1976: 30-32), o

nome do filho indica que o que de mais importante Menelau fez na tradição épica foi ter perdido sua esposa. Um só filho: Klinger (1944: 51) e Felson (1997: 81). Fontes e versões da história das bodas de Hermíone: Danek (1998: 95-96) e Allan (2000: 1-39).

381 Atetização dos versos 3 a 22: Bethe (1922). West (2014: 166), entre outros, compara o

trecho às grandes festividades a Poseidon no início do canto três. Reflexo das bodas do presente naquela do passado: de Jong (2001: 90).

Assim banqueteavam, na enorme casa de alto pé-direito, os vizinhos e camaradas do majestoso Menelau,

com deleite. E entre eles cantava divino cantor com a lira; dois acrobatas, entre eles,

liderando canto e dança, volteavam no meio.

Esse momento de prazer é curioso em um poema no qual as únicas apresentações de canto realmente festivas são o segundo canto de Demódoco (Od. 8, 266-366), que ocorre após dois momentos de certa tensão (as lágrimas de Odisseu que fazem Alcínoo interromper o primeiro canto e o conflito interrompido entre Odisseu e os jovens feácios) e o canto que acompanha as falsas bodas de Penélope orquestradas por Odisseu para que a notícia da morte dos pretendentes demore para chegar aos ouvidos do povo (Od. 23, 130-40). Temos ocasiões festivais embutidas em um contexto de conflito. Nos outros momentos em que cantam os grandes aedos do poema, pelo menos parte de seu público ou não presta atenção (Telêmaco no canto 1) ou chora (Odisseu no canto 8). Os versos 15 a 19, entretanto, são problemáticos na história da transmissão da Odisseia.382

O arco se fecha quando, no final do longo relato de seu retorno (Od. 4, 351-592), Menelau informa a Telêmaco que ele, Menelau, será imortalizado nos campos Elíseos por ser genro de Zeus (560-69). Em vista do que o receptor ouviu desde o início do canto, esse privilégio não parece ser tão significativo assim em vista das tantas desgraças que esse casamento provocou, incluindo a possível má-fama de Helena. Por certo a fama de Helena é mais ambígua que a de Clitemnestra; quanto a Menelau – e Agamêmnon –, o fato de suas esposas terem cometido adultério mancha sua fama de forma particularmente negativa em comparação a Odisseu, cuja esposa manteve-se-lhe fiel.383

Hermíone e Grandaflição são o testemunho de experiências que não corres- ponderam a expectativas anteriores: Hermíone foi prometida no início da guerra a Orestes, mas a guerra se estendeu de tal forma que Menelau foi obrigado a “sacrificar” a filha prometendo-a a outro herói;384 Grandaflição é uma lembrança

viva de que as expectativas atreladas a todo casamento, fidelidade e produção de um herdeiro masculino, fracassaram para Menelau.

382 Considerando Ateneu, Banquete dos eruditos 180c, esses versos teriam sido introduzidos

por Aristarco a partir da Ilíada (ou a partir de um manuscrito ruim?); segundo os escólios, os versos 17 a 19 (= Il. 18, 604-6) haviam sido omitidos por Aristófanes e Zenódoto e seriam de Aristarco. A razão de Wilamowitz (1927: 112) para excluir os versos é que não há festejo em andamento: Menelau estaria sozinho. West (2014: 166) concorda com a atetização.

383 Em vista de sua excelência e fama, Penélope é oposta a Clitemnestra no final do poema

(Od. 24, 192-202). Acerca de Helena, confira Fredericksmeyer (1997) e Werner (2011b).

384 Esse arranjo, por certo, não é mencionado explicitamente, mas Danek (1998: 95-96)

O mesmo contraste negativo entre experiência e expectativa marca a rique- za presente de Menelau, a qual é causa de espanto a Telêmaco e Pisístrato por conta do que veem ao entrarem na casa (43-47). A visão é um sentido muito referido nos primeiros momentos dos jovens na moradia de Menelau, bem como aquilo que ela gera, aparências (3, 14, 22, 27, 43, 47, 75 etc.). Em parte, trata-se de uma focalização secundária, ou seja, Homero nos fala da casa por meio das impressões dos jovens, mas a reiteração, que sugere que a visão esteja sendo privilegiada, constrói um contraste com a audição que Telêmaco terá que usar para receber informações de seu anfitrião e para assinalar-se que o que se vê (a riqueza de Menelau) às vezes pode ser enganador.

É um comentário de Telêmaco que traz a riqueza de Menelau para o centro da cena (68-76):

Mas após apaziguar o desejo por bebida e comida, então Telêmaco falava ao filho de Nestor,

perto pondo a cabeça para não os ouvirem os outros: “Observa, filho de Nestor, tu que agradas meu ânimo, o relampejo do bronze pela casa ruidosa,

e o do ouro, do âmbar, da prata e do marfim.

Morada assim, por dentro, creio ser a de Zeus Olímpio, com tanta coisa sem conta: reverência me toma ao mirar”. No que disse, prestou atenção o loiro Menelau (…)

Ao contrário do que fez na casa de Nestor, Telêmaco se comporta de forma inapropriada: não só, no final do banquete, cumpriria ao anfitrião indagar a identidade dos visitantes, mas além disso o jovem, ao comparar a riqueza de Me- nelau com a de Zeus, possibilita o phthonos dos deuses, a emoção normalmente traduzida por “inveja” que, em um cenário desse tipo, faz os deuses atacarem o mortal afortunado demais, em particular, aqueles que se jactam de seu sucesso.385

É o anfitrião quem, ao indagar a identidade do hóspede, costuma iniciar a conversa após a refeição numa cena típica de hospitalidade na poesia épica. Se isso tivesse acontecido em Esparta, é em sua resposta que cumpriria a Telêmaco louvar Menelau diretamente, em especial, pela hospitalidade. É por isso que o jovem se dirige a Pisístrato de forma discreta, já que deveria ter esperado ser abordado por Menelau. Por outro lado, a cena é composta tendo em vista o clímax que é a entrada de Helena e sua imediata percepção, não alcançada por Menelau, de que está diante de Telêmaco.386

385 Protocolos no fim do banquete: Ford (1999: 114). Telêmaco é indelicado: Hohendahl-

-Zoetelief (1980: 159) e Rabau (1995: 276); contra Olson (1995: 81, n. 40). Acerca do phthonos dos deuses, cf. Sanders (2014: 42-43): o uso do termo está largamente documentado a partir de Píndaro, mas expressões equivalentes para o cenário referido já aparecem em Homero.

Menelau contextualiza o louvor do jovem indicando que o pano de fundo de sua riqueza é o grande sofrimento (81) que atingiu a ele, ao irmão Agamêmnon e a outros companheiros da Guerra de Troia, especialmente Odisseu (78-112). O que coloca o presente em perspectiva é o passado. Como no caso dos casamentos, experiência e expectativa estão em descompasso. A continuidade entre presente e passado é só externa, a riqueza presente apontando para as virtudes passadas que permitiram adquiri-la. Para Nestor, a Guerra de Troia é um pano de fundo composto por sofrimento no presente; para Menelau, pano de fundo equivalente é sobretudo seu retorno, como fica claro em seu discurso a Telêmaco (78-114):

Caros filhos, nenhum mortal deveria disputar com Zeus: imortais são suas posses e morada;

dos varões, algum talvez disputará comigo 80

em posses. Sim, após muito padecer e muito vagar, conduzi-as nas naus e no oitavo ano cheguei, depois de vagar por Chipre, Fenícia e entre egípcios; os etíopes alcancei, os sidônios, os erembos

e a Líbia, onde cordeiros de súbito têm chifres completos. 85 Três vezes ovelhas procriam no ciclo de um ano;

lá nem senhor nem pastor têm carência de queijo e de carne e nem de leite doce, mas sempre têm leite abundante para a ordenha.

Enquanto eu por aí, recolhendo muitos recursos, 90

vagava, outro assassinou meu irmão

às ocultas, de surpresa, com truque da nefasta esposa; assim reino, não me agradando dessas posses.

Dos pais deveis ter ouvido isso, sejam eles quem A

forem, pois muito padeci e perdi a propriedade 95

bem boa para morar, com muita coisa preciosa.

Eu deveria até com a terça parte em casa B

ter vivido, e os varões, a salvo, os que morreram na ampla Troia, longe de Argos nutre-potro.

Mas, ainda que chorando a todos, angustiado, 100 C

muitas vezes sentado em nosso palácio –

primeiro com lamento deleito-me no peito, depois paro: rápido alguém se sacia do lamento gelado –

a eles todos não choro tanto, embora atormentado, C’

quanto a um único, que me faz odiar sono e alimento 105

ao lembrar, pois nenhum aqueu tanto aguentou

quanto Odisseu aguentou e assumiu. Assim foi preciso B’

ele sofrer agruras, e eu, dor sempre inesquecível por ele, pois há muito está ausente, e nada sabemos,

se está vivo ou morto. Talvez chorem por ele agora 110

e Telêmaco, que deixou, recém-nascido, em casa. Assim falou, e naquele instigou desejo de chorar o pai: após do pai ouvir, lágrimas das pálpebras ao chão lançou (…)

O discurso de Menelau pode ser dividido em duas partes.387 Na primeira

(78-93), o foco é seu retorno, que assume a forma de um relato etnográfico con- centrado com pouca narratividade.388 Nestor, como se viu no capítulo anterior,

inicia seu primeiro discurso focando a Guerra de Troia para logo abandonar o tópico; Menelau, por sua vez, também não desenvolve o tema de seu retorno. Além disso, ao contrário do que se espera do início de seu discurso (80-81), o tema da sua riqueza é abandonado ao mencionar a morte do irmão Agamêmnon (90-93). Tem-se, dessa forma, uma clara unidade discursiva em torno da forma como Menelau chegou à sua riqueza (“posses”: 81 e 93), mas, na contramão do elogio de Telêmaco, ela define o presente do rei por meio do sofrimento a ela atrelado.

Os versos 81 (ἦ γὰρ πολλὰ παθὼν καὶ πόλλ’ ἐπαληθεὶς) e 95 (ἐπεὶ μάλα πολλὰ πάθον καὶ ἀπώλεσα οἶκον) são compostos por multiformas que, na

Odisseia, condensam o retorno sofrido de Odisseu e sempre de novo aparecem no

poema: “assim Odisseu, após muitos males sofrer e muito vagar” (ὣς Ὀδυσεὺς κακὰ πολλὰ παθὼν καὶ πόλλ’ ἐπαληθεὶς: 15, 176);389 “que muito / vagou (μάλα

πολλὰ / πλάγχθη: 1, 1-2);390 “pois já muito, demais sofri e muito aguentei”

(ἤδη γὰρ μάλα πολλὰ πάθον καὶ πολλὰ μόγησα: 5, 223 ~ 8, 155); “que antes muitas aflições sofreu em seu ânimo” (ὃς πρὶν μὲν μάλα πολλὰ πάθ‘ ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν: 13, 90);391 “pois não só Odisseu perdeu o dia do retorno” (οὐ γὰρ

Ὀδυσσεὺς οἶος ἀπώλεσε νόστιμον ἦμαρ: 1, 354). O paralelismo entre os versos 81 e 95 colabora para fazer dos versos 94 a 96 o proêmio da segunda metade do discurso de Menelau: o agora, quando o foco passa a ser o sofrimento presente e suas causas no passado.

A partir do verso 98, o ouvinte acostumado com a linguagem tradicional atuante no poema começa a perceber que a crítica de Menelau ao louvor mal- -construído de Telêmaco dá lugar a um lamento (goos, 102). Os versos 100 a 102, comparáveis à forma como Telêmaco introduz infelicidade constante a Mentes (“aflito, não gemo por aquele / somente”: Od. 1, 242-43),392 são o mais claro

387 Discordo de de Jong (2001: 94), para quem o discurso se desenvolve por associação. 388 Acerca desse relato, cf. a seção seguinte.

389 Esse verso é dito por Helena na despedida de Telêmaco.

390 Acerca da reiteração de diferentes formas de “muito” no proêmio da Odisseia, cf. Malta

(2007).

391 Bakker (2013: 3-7) compara, de forma convincente, a transição de Odisseu da Feácia a

Ítaca, episódio do qual faz parte esse verso, ao proêmio da Odisseia.

392 Acerca de Od. 1, 242-43, cf. Bonifazi (2012: 48), que, na página seguinte, nota as

indício de que há uma mudança no gênero do discurso empregado por Mene- lau. Não é a menção da morte de Agamêmnon que, diretamente, provoca essa mudança de tom e, portanto, de gênero. Essa morte terá uma função distinta no relato completo de seu retorno que Menelau fará no dia seguinte (512-41 e 584). É a lembrança dos que morreram em Troia, a qual recebe um verso completo (99), que faz Menelau se comprazer com o lamento.

A segunda parte do discurso de Menelau concentra, ainda que de forma modificada ou elíptica, todos os elementos que Christos Tsagalis mostrou com- porem o padrão temático do que denominou “lamentos iliádicos”, especialmente se levar-se em conta que Menelau continua seu lamento após a entrada de Helena (168-185):393

Incrível, deveras o filho de caro varão a minha casa

veio, ele que por mim aguentou muitas provas; 170

pensei que dele, ao voltar, seria mais amigo que de outros argivos, se, pelo mar, tivesse aos dois permitido o retorno com naus velozes ocorrer o Olímpio, Zeus ampla-visão. Em Argos, tornaria uma urbe seu lar e casa lhe faria,

de Ítaca conduzindo-o com suas posses, seu filho 175

e todo o povo, após uma única cidade ter evacuado entre as que há na região e por mim são regidas. Estando aqui, amiúde nos reuniríamos; a nós nada mais separaria em nossa amizade e deleite recíprocos

antes que a negra nuvem da morte nos encobrisse. 180

Mas isso deve ter invejado o próprio deus, o que deixou sem retorno apenas aquele infeliz”. Assim falou, e neles todos instigou desejo por choro. Chorava a argiva Helena, nascida de Zeus,

choravam Telêmaco e Menelau, filho de Atreu, 185

e nem o filho de Nestor manteve os olhos sem lágrimas: lembrara-se, no ânimo, do impecável Antíloco,

morto pelo filho radiante da resplandecente Aurora.

O verso 170 retoma o verso 107 (“Odisseu aguentou e assumiu”), e os versos 183 e 113 (“Assim falou, e naquele instigou desejo de chorar o pai”) utilizam a

393 Lamento iliádico: Tsagalis (2004: 15-51). Cf. também Fingerle (1939: 162-83), que, em

sua discussão de algumas formas discursivas em Homero, busca uma tipicidade comum aos dois poemas, estabelecendo uma distinção entre “lamentos fúnebres” (“Totenklagen”), exclusivos da

Ilíada, e “lamentos” (“Klagereden”). Tsagalis parte dessa tipologia mas a aperfeiçoa, acabando

por incluir no gênero “lamento fúnebre” discursos da Ilíada tipificados de forma diferente por Fingerle (p. 169-70), que, todavia, reconhece a forma do “ante-lamento fúnebre”, quando um vivo é lamentado como um morto.

mesma estrutura formular.394 O elemento mais evidente a ligar os dois discursos

é o choro como efeito da performance, primeiro provocado apenas em Telêmaco (113-16), depois em todos os ouvintes e no próprio Menelau (183-87). O que acaba por dividir o lamento de Menelau em dois momentos é a entrada triunfal de Helena.

O termo goos, que marca o lamento fúnebre como um tipo de mythos (ou gê- nero primário) na Ilíada, é repetido quatro vezes no contexto dos dois discursos (102, 103, 113 e 183), junto com outros termos, verbos (odyromai, achnymenos,

klaiō) e nomes (achos, kedos), que implicam uma forma ou manifestação de dor

anímica e são recorrentes nesse contexto (100, 104, 108, 110, 184-85). A di- ferenciação semântica (pouco rígida, é verdade) proposta por Anton Fingerle para goos – na Ilíada, “lamento fúnebre”, na Odisseia, “lamento” – é artificial: o contexto determina a carga semântica do termo.395 Na formulação de Bakhtin,

“é o eco da totalidade genérica que ecoa na palavra”: uma palavra “ganha certa expressão típica” no contexto de um gênero.396

Não é arbitrário, portanto, verificarmos como os elementos típicos do goos iliádicos identificados por Tsagalis (abaixo, os termos sublinhados no início de cada parágrafo) se manifestam na performance discursiva de Menelau, cuja diferença principal em relação à performance desse discurso na Ilíada é que o “morto”, Odisseu, não está diante ou nas proximidades dos enlutados.

Poder-se-ia afirmar que a interpelação elogiosa397 de Odisseu não ocorre no

discurso de Menelau porque seu cadáver está ausente,398 mas mais importante

que isso é a forma como se posterga a enunciação do nome do herói, pois esse (Odyseus, 107) é evocado pela repetição do som ody- (odyromenos, 100; odyromai, 104), repetido logo depois da explicitação do nome por meio do mesmo verbo (odyrontai, 110). Depois da menção do nome, o verso 109 é aberto pelo pronome

keinou, cujo referente é Odisseu. Esse pronome demonstrativo marca a ausência/

presença do herói nos quatro primeiros cantos do poema de acordo com Anna Bonifazi. O pronome faz parte de uma estratégia pragmática de apontar para a fama de Odisseu e marca duas intenções possíveis por parte do falante: visualizar a presença potencial do herói e lamentar sua possível morte.399 Por fim, repare-se 394 Cf. também Bonifazi (2012: 49), que nota a semelhança de tom entre as seguintes passa-

gens: Od. 1, 242-44; 4, 181-82; e 4, 108-10.

395 Vocabulário do lamento: Derderian (2001: 15-31). Goos como definidor do lamento

fúnebre: Fingerle (1939: 163-64 e 171-72) e Tsagalis (2004: 2-7).

396 Cf. Bakhtin (1986: 52-53).

397 Cf. a introdução do lamento de Andrômaca (Il. 24, 725): “Marido, jovem morreste, e

foi-se a seiva”.

398 Na Ilíada, ela só ocorre quando o interpelado está morto e presente; cf. Tsagalis (2004:

51).

399 De Jong (2001: 110) nota que a reiteração de odyromai evoca Odisseu. Keinos e Odisseu:

que no segundo discurso de Menelau, em seu todo um elogio, o verbo odyromai não será repetido, mas Odisseu – referido por meio do significativo pronome

keinon – será qualificado por um adjetivo do mesmo campo semântico do verbo

e que ecoa quase os mesmos sons do nome do herói, dystenon. São justamente esses dois termos, o verbo e o adjetivo, que colaboram para Atena tornar Odisseu presente diante de Zeus, como se viu no capítulo três (τοῦ θυγάτηρ δύστηνον ὀδυρόμενον κατερύκει: Od. 1, 55).

Costuma-se, nos lamentos iliádicos, usar algum tipo de comparação400 para

expressar o louvor do morto, geralmente em relação a outros indivíduos de sua classe, por exemplo, companheiros de armas.401 Contudo, não é dessa forma dire-

ta que está presente nos dois discursos de Menelau. O vocativo acompanhado de um elogio, com frequência, também vem junto de um outro tipo de comparação na Ilíada. Hécuba inicia assim seu lamento: “Heitor, em meu ânimo o mais caro de todos os filhos” (Il. 24, 748). Assim, pode-se afirmar que esse elemento está presente nos discursos de Menelau mas como que fundido com a comparação mais desenvolvida. O rei afirma que não chora ninguém tanto quanto chora Odisseu, pois ninguém sofreu, vale dizer, lutou (emogēsen…emogēse…, 106-7),402

tanto quanto ele (100-7).403 Já em seu segundo discurso, afirma que de nenhum

outro argivo teria sido tão amigo após o retorno de Troia como de Odisseu (171- 72). Nas duas passagens, como de praxe no gênero, o louvor orbita em torno do sujeito do lamento, no caso, Menelau.404

O “morto” e o enlutado compartilham um mesmo destino: tanto Menelau como Odisseu sofreram no passado e sofrem no presente, paralelo que compõe, em suma, a passagem que vai do verso 94 ao 109. Sobre esse elemento, diz Tsagalis

400 Trata-se de “a comparison between the dead and/or between the present sufferings of

the mourner and other past sufferings, stressing the exceptionality of the present loss and thus of the present grief, introducing an implicit aretalogy of the deceased” (Tsagalis 2004: 15).

401 Hécuba (Il. 24, 751-56) compara Heitor a seus irmãos por conta do modo como foram

tratados por Aquiles.

402 Esse verbo também é comum em um contexto marcial, como quando Aquiles diz sobre si

mesmo diante de Agamêmnon: “agora ameaças tu mesmo arrancar-me uma mercê, / pela qual muito padeci, e ma deram os filhos de aqueus” (Il. 1, 162); cf. o comentário a essa passagem em Latacz et al. (2010: 81).

403 Compare este trecho do lamento de Príamo (Il. 22, 426-29) "Tantos filhos meus,

vicejantes, matou: / a eles todos não choro tanto, embora atormentado, / quanto a um, por quem dor aguda me descerá ao Hades – / Heitor! Como devia ter morrido em meus braços (…)" com este trecho de Menelau (Od. 4, 104-5): “a eles todos não choro tanto, embora atormentado, / quanto a um único, que me faz odiar sono e alimento”.

404 Cf. a "forma como Tétis louva sua própria excelência em termos apropriados para Aquiles

(Il. 18, 54-60): Ai de mim, coitada, desmãe do melhor: / eis que gerei um filho impecável e