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Na ação da Ilíada – sem começo e sem fim – floresce um cosmos fechado numa vida que tudo abarca.

(Lukács 2009: 54)

O ensaio “Epos e romance” faz parte, com “O discurso no romance”, “Da pré-história do discurso romanesco” e “Formas de tempo e de cronotopo no romance”, de um projeto sobre o romance que Bakhtin desenvolveu na década de 1930, ou seja, pouco depois da publicação de seu Problemas da poética de

Dostoievski.21 O interesse principal de Bakhtin é o romance e a modernidade,

mas uma das tradições à qual o autor se associa, aquela que passa por Goethe, Schiller e Hegel, não prescinde, para essa discussão, de uma investigação do gênero épico. Trata-se de uma tradição na qual também se apoiou Georg Lukács em seu artigo, depois transformado em livro, A teoria do romance, de 1916. Do autor húngaro, ele mesmo um importante ideólogo atuante na União Soviética já na década de 1930, pode-se afirmar que, à parte o solo intelectual (romântico e marxista, sobretudo) compartilhado por ele e Bakhtin, em boa medida condi- cionou a discussão conduzida por Bakhtin nessa época, malgrado importantes diferenças.22

Para a discussão conduzida por Bakhtin e Lukács, é central a oposição entre épica e romance. Ambos partem de um texto publicado por Goethe, intitulado “Über epische und dramatische Dichtung von Goethe und Schiller” (“Sobre poesia épica e dramática”), cuja gestação, no contexto da troca de cartas entre ele e Schiller em 1797, revela a influência de August Wilhelm Schlegel, em particular a exclusão, no gênero épico, do tempo presente, o que é bem marcado já no início do texto:23

Tanto o poeta épico como o dramático estão submetidos às leis poéticas gerais, em particular, à lei da unidade e à lei do desenvolvimento; além disso, ambos tratam de objetos semelhantes e podem utilizar todo tipo de motivos; sua grande diferença essencial, contudo, está em que o poeta épico recita os acontecimentos como completamente passados e o dramático os apresenta como completamente presentes. (ênfase no original)

21 Os quatro ensaios foram publicados em português; a sexta edição é Bakhtin (2010). Uma

nova tradução está sendo publicada em vários volumes, o primeiro deles Bakhtin (2015).

22 Comparação minuciosa entre Bakhtin e Lukács: Tihanov (2000).

23 Goethe em Lukács e Bakhtin: Tihanov (2000: 52). Cooperação entre Goethe e Schiller:

Reed (2002). O texto sobre poesia épica e dramática é geralmente atribuído a Goethe: cf. Kor- nbache (1998), que defende a influência de uma resenha crítica de Schlegel ao poema épico de Goethe Hermann e Doroteia. A passagem traduzida na sequência encontra-se em Goethe (1827).

Por sua vez, a oposição entre épica e drama é substituída, em Bakhtin e Lukács, por aquela entre épica e romance. A passagem citada e a presença de sua ideia principal na recepção da poesia épica grega ainda em teóricos do século XX são fundamentais para o presente livro, já que ele parte de uma noção, a performance, que relativiza a separação radical entre passado e presente, pois toda comunicação em ato diz respeito, pelo menos em alguma medida, a um aqui e agora.

Lukács, que também parte de uma oposição entre drama e epos, percebe o mundo épico como homogêneo, perfeito e acabado, em uma chave metafísica na qual “vida e essência são então conceitos idênticos. Pois a pergunta da qual nasce a epopeia como resposta configuradora é: como pode a vida tornar-se essencial?”. A totalidade, que, no romance, está oculta e deve ser buscada e construída pelo receptor, na verdadeira épica – e, em última análise, essa ocorreria apenas em Homero – é imanente e anterior à forma.24

Bakhtin, para discutir o gênero que chama de “sempre em evolução”, o ro- mance, compara-o à poesia épica, usando ambos como categorias hermenêuticas em uma chave que é historicista e essencialista. Ao insistir que a romancização dos gêneros colocou a poética aristotélica em xeque e exigiu um novo paradigma teórico, Bakhtin não está interessado na origem ou na evolução da poesia épica, o que acredita estar para sempre perdido, mas sim em pensá-la e utilizá-la como um gênero já completo, um esqueleto sem vida.25 Diversos trabalhos mostraram

nas últimas décadas que esse juízo acerca da origem pode ser considerado taxati- vo em excesso em relação à poesia grega arcaica e clássica. Um de seus veios mais promissores, tendo em vista a análise de novos e importantes papiros, é a relação entre a tradição homérica e outras tradições poéticas, por exemplo, a elegíaca e a jâmbica.26 Todavia, o núcleo mesmo do pressuposto bakhtiniano continua de pé:

os gêneros poéticos gregos arcaicos que conhecemos passaram por um processo, por assim dizer, primordial de formação que não é mais possível documentar. Por isso, tentativas mais ambiciosas de reconstruir o processo de produção, transmissão, canonização e fixação dos poemas homéricos são objeto de uma recepção o mais das vezes cética ou agnóstica.27

24 Lukács (2009: 28-31 e 60); a citação está na página 28. Drama e épica em Lukács: Tiha-

nov (2000: 49-52) e Macedo (2009: 197-209).

25 Bakhtin (2010: 399-407). Ao falar da épica, Bakhtin também tem em mente a taxonomia

de Aristóteles: Bakhtin (2010: 399-401) e Nagy (2002a). Acerca da “romancização”, cf. Hitch- cock (2016).

26 Cf., por exemplo, Boedeker & Sider (2001), Barker & Christensen (2006) e Swift (2012). 27 Origens dos gêneros literários arcaicos gregos como inacessíveis: Bakhtin (2010: 397).

Tentativas de reconstrução: mais recentemente, sobretudo Nagy (1996a) e (2001) e West (2001) e (2011); cf. também a recente defesa de González (2013) das teses centrais de Nagy, bem apoiada em reconstruções históricas e análises sociológicas do período, e a tentativa de Frame (2009).

Não obstante os problemas enfrentados e gerados pelas diferentes tentati- vas de se estabelecer parâmetros para se pensar a interação de gêneros na Gré- cia Arcaica e mesmo Clássica, em especial, e para definir-se os objetivos dos próprios teóricos e poetas antigos, sobretudo em vista da exiguidade das fontes disponíveis, o ensaio de Bakhtin, uma vez que se reconheça seus propósitos, ainda pode ser frutífero para a discussão dos gêneros literários gregos.28 Da

mesma forma como o primeiro capítulo de Mimesis, de Erich Auerbach, outro ensaio do século XX que tem sido fundamental para a localização da poesia homérica em histórias da literatura de fôlego mais amplo, precisa ser lido a partir de seus próprios parâmetros hermenêuticos e de seu contexto cultural, o ensaio de Bakhtin ainda mantém seu valor mesmo depois das críticas pelas quais tem passado.29

Tendo como foco a Odisseia, uma das chaves de leitura canônicas do poema que será explorada, direta e indiretamente, neste livro é a forma como Bakhtin defende que ocorreria a representação do passado na poesia épica. Para ele, assim como para Goethe, o passado épico encontra-se como que separado do presente do leitor por um muro, sendo esse passado completo e acabado, inacessível a quem dele fala e a quem dele ouve falar e impermeável ao presente do receptor como presente, à medida que é matéria de um gênero elevado: para a represen- tação desse passado, a própria experiência e o pensamento de quem enuncia o discurso poético não tem validade, somente a tradição, no seio da qual impera uma linguagem totalmente homogênea. A distância épica entre o presente e o passado é absoluta. “Absoluto”, porém, precisa ser entendido como indicativo ideológico de um passado valorizado ao máximo, o qual, por isso mesmo, ao ser aproximado do presente, aponta para uma idealização do presente da elite. Tem-se, portanto, um processo que ignoraria a presentidade do presente porque, em certo sentido, a classe dominante já pertence ao passado; de fato, é uma parte do presente que é aproximada do passado. A leitura de Bakhtin, portanto, é estética e ideológica.

O primeiro canto da Odisseia fornece um ótimo estudo de caso para o mo- delo bakhtiniano, e a ele retornaremos diversas vezes nos próximos capítulos. Nele são dramatizados os efeitos no presente de Telêmaco do que é percebido como o passado de Odisseu; a vitória em Troia do pai é totalmente apagada pelo seu retorno fracassado. Compare-se essa situação dramática com o início da

Ilíada, no qual o desejo de vingança de Aquiles após a briga com Agamêmnon

só se relaciona de forma bastante indireta e lenta com a ação que começa a se desenrolar a partir do canto dois por conta do desígnio (boulē) de Zeus.

28 Cf., por exemplo, Kurke (2011), para quem a separação entre gêneros altos e baixos é uma

ferramenta hermenêutica fundamental ao modo de Bakhtin.

29 Acerca das reformulações da proposta bakhtiniana, cf. sobretudo Nagy (2002a), Peradotto

O telos da Ilíada, embora nunca deixe de ser regido por Zeus, é como que posto em modo de espera enquanto, de forma indireta, o receptor se depara, por vários cantos, com virtualmente toda a história da Guerra de Troia, even- tos do passado e, em menor quantidade, do futuro inscritos na ação presente. Dois casos evidentes são o catálogo das naus no canto 2, que obviamente reflete muito mais a reunião da esquadra aqueia em Áulis que um ataque qualquer dos aqueus, e o duelo entre Menelau e Páris, que, de várias maneiras, reflete o rapto de Helena por Páris, instante primordial da guerra. Essa forma narrativa só se altera quando os troianos começam a ameaçar de fato os aqueus, justamente o que Aquiles pediu a Tétis e, essa, a Zeus. Além disso, se passado e presente se espelham nos cantos iniciais da Ilíada, nos cantos finais, especialmente a partir do 16, quando morre Pátroclo, o presente como que prefigura o fim da Guerra de Troia. Tamanha coesão temática e, sobretudo, temporal é indício de uma totalidade fechada.30

É discutível se tal coesão se verifica na Odisseia.31 Desde o início do poema, a

relação entre passado e presente é, às vezes mais e às vezes menos, problematizada por diversas personagens. A ausência de Odisseu – de Ítaca e, no início do poema, da história principal – e a dificuldade de Telêmaco estabelecer laços positivos e efetivos com o que representa o passado de seu pai expõem a abertura do presen- te, malgrado o papel mediador e pleno de autoridade de Atena, que, porém, não é total.32 Deve-se discutir, portanto, se a carência, que prepondera no presente do

jovem, é atenuada pelo contato com o passado mediado pelas narrativas de seus interlocutores, ou seja, se e como o presente de Telêmaco está ligado a formas do passado (de seu pai) e até que ponto a representação das experiências do jovem abre o mundo épico para o mundo presente do receptor, que, por outro lado, por conta de seu conhecimento da tradição, pode estabelecer ligações, no que diz respeito à narrativa principal, entre presente, passado e futuro que são inacessíveis para as personagens.

30 A vontade de Zeus (Dios boulē) na Ilíada e na Odisseia: Allan (2008), Marks (2008) e

Bakker (2013: 124-26). Os primeiros cantos da Ilíada como reencenação do início da Guerra de Troia: Rousseau (2001). Uma listagem de paralelos e sua discussão compõem Kullmann (1960). Cf. também Burgess (2009) para como se constrói a relação dos eventos da narrativa principal com aqueles que perfazem a sequência tradicional de eventos da vida de Aquiles, em particular, sua morte e post mortem.

31 Pode-se argumentar, por exemplo, que a estratégia é homóloga caso se concordar com

Danek (1998) que a Odisseia incentiva o receptor a utilizar seu conhecimento prévio de versões distintas do retorno de Odisseu; Tsagalis (2012) busca aprimorar o modelo de Danek. O grau especulativo de tal leitura, todavia, é bem mais acentuado que o de Burgess (2009) para a

Ilíada.

32 Para um exemplo dos limites do conhecimento e, consequentemente, do poder de Atena,

o que a torna uma personagem como outras do poema, cf. Nickel (2010). Marks (2008) defende que Zeus (e não Atena) funciona como um princípio controlador da narrativa: “Zeus’ role has at least the potential to serve as the overall unifying principle of the Odyssean narrative” (p. 4).

Telêmaco se aproxima do receptor quando procura firmar uma imagem mental gloriosa do pai e se mostra otimista em relação à ação dos deuses; ao mesmo tempo, agir como um herói pleno é-lhe vedado, ou seja, ele nunca se torna um Orestes, que garantiu a honra do pai – consequentemente de sua li- nhagem – ao matar o assassino de Agamêmnon, Egisto. Assim, embora realize

o que Atena prepara para ele,33 no canto 15 Telêmaco continua no meio das

mesmas aporias que o paralisavam quando do início do poema, de sorte que o jovem não passa, de fato, por uma mudança significativa, qualitativa, ao longo do poema. Ele começa e termina como um jovem em transição, ou seja, como um quase-adulto.34

Bakhtin afirma que faz parte da romancização da narrativa uma mudança radical do modelo temporal do mundo: “este se torna um mundo onde não existe a palavra primordial (a origem perfeita), e onde a última ainda não foi dita”.35

Pretendo discutir se as narrativas apresentadas para Telêmaco reproduzem o mundo épico fechado de Bakhtin ou se já se aproximam desse outro modelo temporal, ou seja, se o presente de Telêmaco influencia a representação do pas- sado. O diálogo entre Zeus e Atena, que, no início do poema (Od. 1, 28-95), interliga o passado de Odisseu – marcado pelo cegamento de Polifemo e pelo subsequente ódio de Poseidon – a seu futuro – a vingança contra os pretendentes – (re)instaura, para o receptor, um mundo potencialmente fechado. Homero, entretanto, se esforça por representar o que chamaríamos, anacronicamente, de a consciência de Telêmaco, que olha para o mundo como algo incompleto. O quadro armado pelos deuses, portanto, é parte constituinte importante da tessitura épica, mas essa não se reduz àquele.

São quatro os momentos, desenvolvidos nos quatro primeiros cantos do poema, nos quais Telêmaco encontra personagens que lhe apresentam experi- ências passadas relacionadas diretamente a Odisseu, de sorte que são passagens adequadas para se testar o que diz Bakhtin sobre o todo e as partes do passado absoluto que é o passado épico, afirmações que, mutatis mutandis, estão de acordo com teses gerais da leitura oralista de poemas de base tradicional como os homéricos. Escreve Bakhtin:36

33 O plano de Atena para o jovem é o seguinte (Od. 1, 93-95): “Vou enviá-lo a Esparta e à

arenosa Pilos / para do retorno do caro pai se informar, caso algo ouvir, / e que pertença-lhe distinta fama entre os homens”.

34 Telêmaco como um de nós: Olson (1995) e Martin (1993a); nos cantos 15 e 16: Werner

(2011b). Telêmaco ativo e heroico: Thalmann (1998: 208-10), Murnaghan (2002), Heath (2001) e Malta (2015a).

35 Bakhtin (2010: 419).

36 Formulações citadas na sequência em Bakhtin (2010: 420-21); como se verá, Foley (1999)

e (2002), por meio de sua noção de referencialidade tradicional, é um, entre vários teóricos que exploram a matriz oral dos poemas homéricos, que segue essa leitura bakhtiniana sem a explicitar.

1. “o passado absoluto é fechado e finito, tanto no seu todo como em qualquer parte”; 2. “a estrutura do todo se repete em cada parte”;

3. “cada parte é acabada e fechada como um todo”.

Para Bakhtin, o impulso para continuar e o impulso para concluir são típi- cos do romance e só são possíveis em uma zona na qual há proximidade e contato com o presente, a novelística; pelo menos em parte, talvez essa zona seja criada para o receptor da Odisseia por meio de Telêmaco mais que por meio de Odisseu. É o jovem que afirma que o público prefere os aedos que contam o evento mais recente (Od. 1, 352), ou seja, potencialmente desconhecido, uma condição, de acordo com Bakhtin, para que o receptor mantenha seu interesse no enredo, condição essa que não é uma característica central do epos.37

37 A aproximação desse canto “mais recente” do epos histórico, como pretende Pizzocaro

(1999), é, em boa medida, especulativa; acerca da formulação de Telêmaco, cf. também Brandão (2015: 163-77). Danek (1998) procura mostrar que o poeta da Odisseia joga com o conhecimento, por parte do receptor da Odisseia, de outras formas de se contar o retorno de Odisseu.