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Memória

3. Memória, narrativa e choro

Certos usos de mimnēskomai (“lembrar-se, mentalizar”) na poesia épica sugerem que a ação implicada pelo verbo era associada à apresentação do canto épico. De acordo com William S. Moran, essa associação teria permitido o de- senvolvimento de algumas fórmulas que indicariam que o verbo funcionou como termo técnico pertencente ao vocabulário para o fazer poético. Entre elas estaria

mnēsomai (“mentalizarei”) acompanhado de um complemento, que ocorre nos Hinos homéricos, como em “que eu mentalize Apolo e não o ignore” (H. h. 3 a Apolo 1) e “quanto a mim, mentalizarei a ti e ao resto do canto” (H. h. 2 a Deméter 495). Passagens em que o verbo é seguido por hos/hote (“como/quando”)

introduzem, nos poemas homéricos, informações do passado, como em “ou não te lembras quando fui até lá, até vossa casa” (ἦ οὐ μέμνῃ, ὅτε κεῖσε κατήλυθον ὑμέτερον δῶ: Od. 24, 115): “ou não te lembras” introduz uma história conhecida do público como parte do pedido de uma personagem. Na Odisseia, tal constru- ção refere-se, via de regra, à tradição da Guerra de Troia.165

Tendo em vista o uso geral do verbo, porém, seu sentido quase técnico não é “cantar”, como quis Moran, mas tornar algo real e presente, em particular,

ao modo de um rapsodo.166 Quando Telêmaco pede informações acerca de seu

pai a Nestor e a Menelau, respectivamente, nos cantos três e quatro, a narrativa resultante diz respeito ao modo particular como as memórias de ambos são transformadas em relato para um ouvinte particular em uma ocasião distinta. O verso que introduz o pedido feito por Telêmaco aos dois é o mesmo (Od. 3,101 = 4, 331): “Disso agora para mim te lembra, e narra-me sem evasivas” (τῶν νῦν μοι μνῆσαι, καί μοι νημερτὲς ἐνίσπες).

Na Odisseia, o banquete é a ocasião de apresentação por excelência de um canto poético bem como o momento em que ocorrem algumas ações centrais do poema, como o “despertar” primeiro de Telêmaco e a vingança de Odisseu con- tra os pretendentes. Assim, proponho (e defendo neste e nos próximos capítulos) que a reativação do passado no contexto desse evento social tal como configura- do no poema é, em diversos aspectos, homóloga ao próprio poema apresentado, a Odisseia, no que diz respeito a seu receptor, sem que, para isso, seja necessário defender que a própria Odisseia teria sido apresentada, originariamente, em uma

165 Mnēsomai como termo técnico: Bakker (2002); construção com “como/quando”: Moran

(1975: 197-205).

sucessão de banquetes.167 A vingança de Odisseu é um “banquete”, ao qual o herói

dá início com seu arco, comparado então a uma lira (Od. 21, 404-34). Quando, diante de Odisseu, Alcínoo se refere à excelência dos feácios e a projeta como as lembranças futuras que o herói produzirá quando estiver em Ítaca, esse futuro, vislumbrado por Alcínoo, é o presente mesmo da apresentação da Odisseia para o receptor (Od. 8, 241-46):

(…) mas agora atenta minha palavra (epos), para também a outro herói mencionares, quando em teu palácio

te banqueteares com tua esposa e teus filhos,

lembrando (memnēmenos) a nossa excelência, feitos que também a nós Zeus confere sem parar desde o tempo dos pais.168

“Feitos (erga) dos pais”, vale dizer, dos antepassados, são a matéria mesma dos cantos dos rapsodos, como atesta o comentário de Penélope (Od. 1, 337-38): “Fêmio, sabes muito outro feitiço que age sobre os mortais, / ações (erga) de varões e deuses que cantores tornam famosas”. “Excelência” (aretē), por sua vez, é o que marca os feitos que devem ser lembrados (Od. 24, 196-98): “Por isso sua fama nunca findará, / a de sua excelência, e aos humanos farão um canto / agradável os imortais pela prudente Penélope”.

Outra ação conceitualizada como memória no sentido de reativação de uma história é o lamento, nesta passagem executado pelos companheiros de Odisseu (Od. 12, 308-11):

E após apaziguar o desejo por bebida e comida, choravam ao lembrar-se dos caros companheiros, os que Cila comeu, pegando-os da cava nau; enquanto choravam, veio-lhes sono prazeroso.

Não se descreve a mera rememoração de um evento passado. O momento, logo após a comida e a bebida na última refeição do dia, que tem a função de repor as energias gastas, alude à ocasião na qual, na Odisseia, não é incomum

a apresentação de um canto poético ou uma conversa contendo narrativas.169

Sugere-se que a memória dolorosa se dá por meio de uma reconfiguração, dis- cursiva ou mental, do horror que enfrentaram, homóloga ao próprio relato de Odisseu que, diante dos feácios, acabou de contar a aventura em questão sem que neles, entretanto, provocasse lágrimas.

167 Performance da Odisseia em banquetes sucessivos: Murray (2008).

168 Passagem semelhante celebra Nausícaa (Od. 8, 461-68) de forma metapoética.

169 Cf. Od. 1, 150-55 (Fêmio inicia seu canto para os pretendentes no mesmo momento

em que iniciam seu diálogo Atena/Mentes e Telêmaco); 8, 72-75, 485-93; 14, 454-60; 17, 99-108 etc.

Não há funeral propriamente dito para os companheiros de Odisseu, so- mente esse choro, o qual, por sua vez, faz parte dos ritos de um funeral típico: “é só esta a honraria aos lamentáveis mortais, / tosar-se a cabeleira e lágrimas lançar face abaixo” (Od. 4, 197-98). Na tradição homérica, o funeral de um grande herói não é de menor importância cultural e social que os feitos que levam a sua morte. Assim, os momentos que no terço final da Ilíada compõem o clímax do poema não se resumem às mortes de Pátroclo e Heitor. Não só do ponto de vista da economia do poema, há uma conexão íntima entre esses eventos e os discursos lamentosos e funerais dedicados a ambos. O lamento e também o próprio gênero épico dependem da rememoração de um morto, tornado presente para aqueles que o celebram.170

Na Odisseia, Homero não relata nenhum funeral, mas algumas personagens sim. Depois do funeral de Aquiles narrado por Agamêmnon (Od. 24, 44-94), o funeral que recebe maior destaque no poema é o de Ilusório (Elpenor), que Odisseu enterra na ilha de Circe (Od. 12, 8-15) após receber instruções do es- pectro do próprio morto (Od. 11, 69-78):

(…) sei que, indo daqui, da casa de Hades, dirigirás a nau engenhosa até a ilha de Aiaie:

lá, senhor, peço-te então que lembres (mnēsasthai) de mim. Não me deixes não chorado e não sepulto ao partir e te afastar para eu não te trazer a cólera de deuses, mas me queimes com todas as armas que tive

e ergue-me, junto à orla do mar cinzento, cenotáfio (sēma) de varão infeliz, notícia também aos vindouros.

Completa-me isso e crava no túmulo o remo com que, vivo, remava junto de meus companheiros.

A lembrança pedida por Ilusório não compõe somente uma equivalência virtual aos ritos funerários performados por Odisseu e seus companheiros, mas também ao próprio relato poético que menciona esse pedido, a Odisseia, pois é o poema que executa a função intradiegeticamente atribuída ao cenotáfio, qual seja, a de preservar a fama de Ilusório. “Notícia também aos vindouros” (καὶ ἐσσομένοισι πυθέσθαι, 76) é uma fórmula épica (Od. 21, 255; 24, 433; Il. 2, 119; 22, 305)171 para um fenômeno comum em Homero, a autorreferencialidade

poética, o que também é comprovado por estas outras formulações semelhantes: “levarão sua extensa fama, um canto aos vindouros” (οἴσουσι κλέος εὐρὺ καὶ

170 Funeral e lamento como temas centrais na poesia homérica: Nagy (1999a) e Murnaghan

(1999). Lamentos na Ilíada: Tsagalis (2004) e Dué (2002). Rememoração da morte do herói na poesia épica e no culto aos heróis: Nagy (1999a) e (2012) e Henrichs (1993: 170-75), todos com bibliografia suplementar.

ἐσσομένοισιν ἀοιδήν: Od. 3, 204) e “para no futuro / tornarmo-nos dignos de canto aos homens vindouros” (ὡς καὶ ὀπίσσω / ἀνθρώποισι πελώμεθ’ ἀοίδιμοι ἐσσομένοισι: Il. 6, 357-58). O herói que intradiegeticamente se refere a um ato de memória alude, ao mesmo tempo, ao próprio poema.172

Para ilustrar a noção de memória por meio do exemplo de Ilusório, não importa a discussão acerca da ironia ou não da passagem. Ainda que o morto esteja equivocado em relação ao próprio valor, o episódio não destoa da forma como se desdobra a noção de fama (kleos) no restante do poema, o que será visto com mais detalhes no próximo capítulo. Elpenor e Leodes, o escansão dos pretendentes, servem de contraste negativo aos membros do grande grupo do qual fazem parte, igualmente incapazes das atividades marciais requeridas. Isso parece estar em consonância com o fato de que Odisseu, ao narrar que cumpriu os ritos solicitados, não menciona que ergueu algum sēma (Od. 12, 10-15). Menelau, por sua vez, relata (Od. 4, 584) que ergueu, no Egito, um monumento funerário (tymbos) em homenagem a Agamêmnon para que o irmão tivesse “fama inextinguível” (kleos asbeston). Mesmo que aceitemos que essa ação revele antes de tudo uma convenção poética, já que um cenotáfio no Egito dificilmente colaboraria para a glória de Agamêmnon, creio que não se deve descartar uma intenção irônica em relação à preocupação recorrente dos heróis com seus túmulos e sua glória.173

A rememoração que se consubstancia em uma narrativa pode produzir aflição em quem conta (Od. 19, 115-20) ou, o que é mais comum no poema, em quem ouve (Od. 19, 249-52). Contudo, nem toda evocação de eventos particu- larmente dolorosos para o narrador e/ou para seu público produz lágrimas (Od. 3, 103; 9, 12-18). O choro induzido pela memória de um evento doloroso pode ser considerado inútil, especialmente quando uma ação imediata é exigida.174

Quando Odisseu explica a seus companheiros ser necessário investigar a fumaça que, mais tarde, se descobriria provir da morada de Circe, a memória se efetiva em uma emoção paralisante (Od. 10, 198-202):

Assim falei, e o coração rachou-se-lhes

ao lembrarem-se dos feitos do lestrigão Antífates e da violência do ciclope, o enérgico devora-gente.

172 Para essa discussão, não é relevante a forma como as estelas funerárias, muitas vezes

contendo inscrições, são referidas como objetos de memória na própria poesia épica; acerca dessa discussão, cf. Scodel (1992), Derderian (2001) e Elmer (2005).

173 O kleos de Ilusório, malgrado sua falta de heroísmo: de Jong (2001: 274), Heubeck (1989:

82) e, especialmente, Louden (1999: 31-49), ao qual se deve a comparação detalhada entre Leodes e Ilusório no contexto do que ele denomina “extended narrative pattern”. Cenotáfio de Agamêmnon como convenção poética: West (1988: 228).

174 Acerca da tensão entre a exigência de uma ação imediata e o lamento na Ilíada e na

Choravam alto, vertendo copiosas lágrimas; mas em vão, de nada adiantou prantearem.

Essa mesma lembrança, porém, pode servir como exemplo, exortando, portanto, à ação (Od. 12,208-12):

Amigos, por certo não somos inexpertos em males. Este mal, vede, não é maior que quando o ciclope prendeu-nos na cava gruta com violência brutal; mas também lá, com minha excelência, plano e mente, escapamos, e creio que disso lembraremos.

O uso desse exemplo não deixa de ser arriscado, pois Odisseu foi responsá- vel por ficarem presos na caverna de Polifemo, do que seu companheiro Euríloco o lembra, sob a forma de um desafio, na ilha de Circe (Od. 10, 435-37). O pre- sente, até certo ponto, pode repetir o passado, mas é o contexto que direciona o desejo. Quem utiliza o passado em seu discurso precisa saber como manipulá-lo de forma eficaz em relação a seu interlocutor, ou seja, precisa realizar uma per- formance eficaz.

IV

A fama (kleOs) e o passado que se