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Memória

2. Zeus e Atena tornam Odisseu presente (O d 1, 26-95)

A Ilíada e a Odisseia iniciam in medias res, mas a Odisseia não parece ter, à primeira vista, uma primeira cena equivalente àquela que, na Ilíada, determina a ação principal do poema, a briga entre Aquiles e Agamêmnon. Em sentido estrito, essa briga não é a primeira cena do poema, mas os eventos que a ela conduzem são narrados de forma breve. A primeira cena de fato, a recusa do resgate de Crises por parte de Agamêmnon (12-52), é a causa primeira da briga à qual o próprio Homero confere destaque no proêmio (8-12).

Diferente do que se dá início da Ilíada para Agamêmnon e, logo depois, para Aquiles, no início da Odisseia, não somos colocados diante de um Odisseu em ação mas é-nos informada sua situação presente em termos de espaço e tempo, inclusive futuro (Od. 1, 11-87). O que temos, a partir daí, ao longo dos quatro primeiros cantos do poema, são imagens de Odisseu construídas nos discursos de outras personagens e que geram emoções sobre os receptores internos dessas imagens. Os primeiros a fazerem isso são Atena e seu pai, mas antes, no que é, efetivamente, o início da narrativa, Zeus se lembra de outro herói, Egisto (Od. 1, 26-43):144

(…) e os outros (sc. deuses),

no palácio de Zeus Olímpio, estavam reunidos.

Entre eles tomou a palavra (mythoi) o pai de varões e deuses; lembrara-se (mnēsato), no ânimo, do impecável Egisto, a quem matou o filho de Agamêmnon, o afamado Orestes.

Dele lembrou-se (epimnēstheis) e entre os imortais palavras enunciou: “Incrível, não é que os mortais responsabilizam aos deuses?

143 Alguns argumentos desta seção tiveram uma primeira versão, mais breve, em Werner

(2013a).

144 O início da Odisseia se distingue daquele da Ilíada. O proêmio do poema é concluído

no verso 10 – o trecho que Wheeler (2002) chama de "introito" –, mas os versos 11 a 19a aprofundam uma espécie de resumo da ação principal do poema. Esses versos são unidos à sequência por conta da menção dos antagonistas de Odisseu: Calipso (14), pretendentes (18) e Poseidon (20). Como notou Steinrück (1992: 126-27), a situação negativa, que na

Ilíada primeiro precisa ser gerada (a mēnis de Aquiles), na Odisseia já vige desde o início.

Em 19b, porém, também ocorre uma mudança discursiva, pois se passa do resumo para uma ambientação no aqui e agora que dá início à narrativa propriamente dita, qual seja, o conselho de deuses, compondo um trecho que Rüter (1969: 22) chama de “prólogo”. Não se emprega um vocabulário, na passagem, que indique tratar-se de um conselho, como no início do canto cinco, mas o fato de se explicitar que todos os deuses estão reunidos (Od. 1, 22-28) alude a esse tema tradicional.

Dizem de nós vir os males; mas eles também por si mesmos, graças a sua iniquidade, além do quinhão têm aflições, como agora Egisto: além do quinhão, do filho de Atreu desposou a lídima esposa, e a ele, que retornara, matou, sabendo do abrupto fim, pois já lhe disséramos, enviando Hermes, o Argifonte aguda-mirada, que não o matasse nem cortejasse a consorte: ‘Por Orestes se dará a vingança pelo filho de Atreu quando tornar-se jovem e desejar sua terra’. Assim falou Hermes, mas não persuadiu

o juízo de Egisto, benevolente. Agora tudo junto pagou”.

Em vista do que foi discutido na seção anterior acerca da memória, o verbo traduzido por “lembrar-se”, ao ser usado para alguém que se posiciona em um conselho como no caso de Zeus (29), implica um ato de fala, pressupondo uma intencionalidade, o que também é marcado pela classificação do discurso de Zeus como mythos (28; essa noção será explorada no capítulo cinco). A intenção não é clara de pronto, porque ao receptor da Odisseia não é cantada a história de Egisto, mas a do “varão muitas-vias” (1).

Atena, todavia, reage ao discurso do pai, lembrando-se de Odisseu (45- 62), e o acusa de odiar o mortal. Zeus, a seu turno, garante à filha que não se esqueceu de Odisseu (65) e desse modo como que compõe uma contraparte de sua lembrança de Egisto. Dessa forma se sugere ao receptor que é Zeus quem fez Atena tornar Odisseu objeto explícito de sua preocupação e tema de discussão, de sorte que o senhor dos deuses não poderá ser acusado pelo irmão Poseidon – que Zeus, e não Atena, menciona (68) – de beneficiar seu desafeto.145 Ao mesmo

tempo, a forma indireta como a memória de Odisseu é produzida no conselho de deuses colabora para, pelo menos em parte, dissociar Zeus de Homero, de sorte que não é tão claro qual dos dois predomina como manipulador dos acon- tecimentos que redundam, em última análise, na própria narrativa.146 Não há

um “plano de Zeus” anunciado logo no início do poema (como em Il. 1, 5), e o próprio Zeus afirma a liberdade parcial dos humanos (Od. 1, 35-43).147

A história de Egisto é editada por Zeus de modo a exemplificar a máxima de que os homens eles mesmos são os responsáveis por aquilo que com eles acon- tece para além de seu quinhão (hyper moron: 34 e 35), ou seja, são responsáveis

145 Para Marks (2008: 18), Zeus transmite seu plano a Atena como que de forma subliminal

e, embora o plano seja dela, “its basic outline derives from Zeus’ Oresteia”.

146 Outra a opinião de Marks (2008: 22, n. 9), para quem “the character of Zeus serves as a

projection into the narrative of the singer’s intent”.

147 O modo oblíquo como se enfatiza o poder de Zeus pode ser comparado ao proêmio de

Trabalhos e dias, que revela diversas semelhanças com o proêmio propriamente dito da Odisseia;

por aquilo que poderiam ter evitado.148 Desgraças não são sempre fruto da

contingência do acaso, mas também de decisões e ações do sujeito, o que nem

sempre é evidente.149 Um outro exemplo no poema, mencionado elipticamente

em seu proêmio, é a loucura (atasthaliē, 7) dos companheiros de Odisseu ao comerem os bois de Sol contra os avisos de Odisseu, que fora orientado sobre essa possibilidade danosa por Tirésias e Circe (Od. 11, 104-13; 12, 127-40). Ao mencionar Egisto, Zeus não apenas sinaliza ao receptor da Odisseia e também a Atena qual pode ser o telos do poema – a vingança de Odisseu contra os preten- dentes, que serão avisados do retorno de Odisseu pelo menos uma vez (Od. 2, 146-67) – mas já coloca o poema em andamento. Repare-se que a emoção que motiva Orestes é o desejo de sua terra (“quando tornar-se jovem e desejar sua terra”, 41), emoção que, como se verá na resposta de Atena a Zeus, compõe o presente de Odisseu. Isso e a moralização contida na história de Zeus indicam que, na Odisseia, o espaço da contingência do acaso não será grande. É esse mesmo viés que o Cretense usará ao alertar deste modo o pretendente mais honrado de Penélope, Anfínomo (Od. 18, 138-50):

Também eu, um dia, seria fortunado entre os varões, mas fiz muita coisa iníqua, cedendo à força e ao vigor, confiante em meu pai e em meus irmãos.

Por isso jamais um varão ignore as regras,

mas, quieto, suporte os dons de deuses, o que derem. Que iniquidades vejo os pretendentes maquinar! Devastam as posses e desonram a esposa

do varão que, penso, não mais dos seus e do solo pátrio longe ficará por longo tempo, está bem perto. Mas que um deus à casa te acompanhe; que não te depares com ele quando retornar para sua terra pátria:

creio que, não sem sangue, os pretendentes e ele se distinguirão, após entrar sob seu teto.

No discurso de Odisseu está explícita a parênese, forma que, no discurso de Zeus, é implícita. É típica da parênese a utilização de um exemplo mítico para reforçar um conselho ou exortação, que, em vista da “política do Olimpo”, não é manifesta no discurso de Zeus.150

148 Hyper moron: Yamagata (1994: 112-15).

149 Para uma exploração da “experiência da indeterminação” na Odisseia, sobretudo por meio

da representação dos pretendentes, cf. Frade (2017).

150 Gênero parenético no discurso de Odisseu no canto 18: Steiner (2010: 174). “Política do

Olimpo” é o título de Clay (2006); embora a autora use a expressão em referência a momentos precisos da história do cosmo, o equilíbrio entre os deuses também exige de Zeus uma atuação política para que as brigas humanas não tenham consequências no mundo divino.

Ao mencionar Hermes como o deus que alertou Egisto, Zeus, de forma oblíqua, sugere que os deuses influenciem os assuntos de Ítaca, e Atena se revela uma ouvinte perspicaz ao distribuir as ações entre ela própria e Hermes, o deus mensageiro (81-95). O espaço de manobra que Zeus dá a outros deuses para que tomem decisões por si assemelha-se à idealização da não interferência de Ho- mero nas ações das personagens do poema: Homero apenas conta o que ocorreu assim como Zeus parece não fazer nada, a não ser permitir que os outros deuses ajam como lhes parece melhor.151

Esse início do poema não é surpreendente em relação à Ilíada, em cujo primeiro canto a briga entre Aquiles e Agamêmnon é colada à vontade de Zeus por meio da intervenção de Tétis, triangulação homóloga à da Odisseia (Zeus-Atena-Odisseu ~ Zeus-Tétis-Aquiles), a qual também é motivada por uma lembrança narrativa, a antiga aliança entre Zeus e Tétis (Il. 1, 407-8).152

Quando Tétis indaga a Aquiles o que o aflige, dessa forma pedindo que torne presente para ela o que há pouco ocorreu, ele narra os eventos que não só o receptor conhece, mas também, segundo Aquiles, ela própria (“Tu o sabes; por que a ti, ciente, falo tudo isto?”: Il. 1, 365). O desempenho discursivo de Aquiles – e, com isso, o primeiro momento no poema no qual ele se aproxima de um rapsodo – coloca em marcha os eventos que levarão ao telos do poema, pois, a partir de agora, as consequências da ira serão vinculadas ao desígnio de Zeus.153

Na Odisseia, por outro lado, muito cedo transparece um recurso que voltará sempre de novo no poema, o paralelismo entre histórias distintas. No proêmio estendido, compara-se de forma sintética o destino singular de Odisseu ao dos outros heróis de Troia, que ou lá morreram ou voltaram para casa (Od. 1, 11-15). A história da Guerra de Troia e dos retornos dos aqueus, principalmente o de Agamêmnon, morto pelo amante de sua esposa Clitemnestra ao chegar a casa, compõe um pano de fundo ao qual as personagens do poema recorrem de forma reiterada. É a memória que, ao conectar passado e presente, abre o espaço da ação.

A história de Egisto não é introduzida como um evento passado, mas quase presente ou de um passado bem recente (“mas eles também por si mesmos, / gra- ças a sua iniquidade, além do quinhão têm aflições, como agora Egisto: 33-35),154

de forma que só com a intervenção de Atena o receptor começa a perceber de que

151 Cf. Od. 13, 122-59 (Zeus e Poseidon) e 24, 472-88 (Zeus e Atena) para outros exemplos

de como funciona essa dinâmica.

152 Slatkin (1991) mostra de que forma essa aliança tradicional é incorporada pela Ilíada. 153 Para uma defesa da aproximação dos discursos de Aquiles daqueles do próprio rapsodo,

cf. Martin (1989).

154 De fato, ele aconteceu há três anos (de Jong 2001: 11); o “agora” nos versos 35 e 43 pode

ser lido como um marcador discursivo, como em Il. 24, 223, e não como um advérbio temporal em sentido estrito.

forma a reflexão de Zeus em torno do exemplo de Egisto introduz a narrativa de Odisseu, dessa forma configurando-se, de fato, como uma exortação que põe em marcha uma ação.

O exemplo mítico é comum na poesia arcaica grega, mas costuma exigir do receptor a identificação de mais de uma camada de sentido dependente do contexto da comunicação, o que o receptor da Odisseia só consegue efetuar ao ouvir a reação de Atena. Ou melhor, o contexto discursivo do exemplo é dado – Zeus se lembra – mas Homero não explica por que a lembrança ocorre, ou seja, não explicita qual o desejo e a ação que o discurso de Zeus pressupõe. Com isso, a vingança de Orestes não serve claramente como exemplo da ação que inicia, já que o retorno de Odisseu não se dará como o retorno de Agamêmnon e o périplo de Telêmaco não tem o mesmo peso da ação de Orestes. A história de Orestes serve como uma espécie de antecedente, de sorte que a tensão passa a ser entre o futuro vagamente delineado por Zeus – uma vingança – e o presente que Atena faz o receptor visualizar – a sorte atual de Odisseu.

Zeus, claro, não precisa da visualização engendrada pelo discurso da deusa porque tudo vê. Sua descrição da rotina de Odisseu é dirigida ao receptor (45-62):

Ó nosso pai, filho de Crono, supremo entre poderosos, deveras jaz esse aí em merecido fim;

assim também pereça todo que fizer tais ações.

Mas pelo atilado (daiphroni) Odisseu dilacera-se (daietai) meu coração, pelo desditoso (dysmoroi); longe dos seus, há muito sofre misérias em ilha correntosa, onde fica o umbigo do mar,

ilha arvorejada, onde uma deusa habita, filha de Atlas juízo-ruinoso, que do mar

todo as profundas conhece, e o próprio sustém pilares grandes que mantêm a terra e o páramo separados.

Sua filha segura o desgraçado (dystenon), lamentador (odyromenon), e sempre com moles e solertes contos

tenta enfeitiçá-lo para Ítaca olvidar. Mas Odisseu, ansiando somente mirar fumaça irrompendo de sua terra, deseja morrer. Para ele nem assim aponta teu coração, Olímpio? Acaso Odisseu,

junto a naus argivas, não te agradou com caros sacrifícios na larga Troia? Por que contra ele esse ódio, Zeus?

A relação entre visão e audição, central para o modo como o poeta épico explora as potencialidades poéticas e narrativas de seu meio de comunicação, articula a forma como Atena revela a situação que Odisseu enfrenta junto a Calipso na ilha de Ogígia. Os encantos verbais da ninfa são incapazes de contornar a dor do herói que não se esquece de Ítaca, onde está quem lhe é

caro.155 “Enfeitiçar” (thelgein), ação usual em contextos eróticos (Od. 18, 212 e,

talvez, 3, 264), especialmente naqueles em que o juízo do seduzido é turvado,156

não funciona para Calipso porque Odisseu lhe opõe um outro desejo (Od. 1, 59: himeiretai). Atena não diz explicitamente que Odisseu se lembra de Ítaca mas afirma que ele deseja morrer, indicando, assim, que seu retorno ainda não iniciou. O desejo de Odisseu, porém, sintática e tematicamente, parece ser o de ver, por uma última vez, sua terra natal e depois morrer; não é por acaso que o desejo da terra natal aparece na forma como Zeus descreve o jovem Orestes (41). A imagem de uma fogueira distante na costa de Ítaca, por sua vez, marca o naufrágio causado pelos companheiros de Odisseu após terem partido da ilha de Eolo: a visão tranquiliza Odisseu, que pega no sono após vislumbrar o fim da errância (Od. 10, 29-33). Não é possível descartar, porém, certa ambiguidade na formulação de Atena.157

“Não se esquecer” é um estado que marca uma postura heroica, embora passiva: suportar a dor e não sucumbir ao prazer fácil (Od. 1, 55-59). Já sabemos que essa não será a única vez no poema que a constelação formada por memória, prazer e dor aparece no contexto de recepção de uma narrativa, muito embora Homero nada nos diga acerca do tipo de discurso sedutor que Calipso destila nos ouvidos de Odisseu.

A intensidade do sofrimento presente de Odisseu, o qual Atena enfatiza reiterando os sons das duas primeiras sílabas do nome do herói (Odysseus) em semantemas que implicam “dor”,158 manifesta-se em seu desejo de morte, pois

mesmo ver Ítaca de longe parece impossível. Ao contrário do canto dos aedos hesiódicos discutidos acima, o discurso de Calipso, definido no sonoro verso 56, marcado por repetições de vogais e ditongos (aiei de malakoisi kai haimylioisi

logoisi), não faz Odisseu esquecer sua dor; dito de outra forma, ela não evita

que ele torne presente, como um ato de memória, o que está ausente. Já para o próximo passo, o início efetivo de seu retorno, faltam-lhe as condições materiais, que serão alcançadas no canto cinco.159

Atena sugere que a causa do sofrimento seja o ódio de Zeus (60-62), uma segunda etimologização do nome do herói no mesmo discurso (62: odysao, Zeu). Zeus reage à acusação com uma fórmula (“Minha filha, que palavra te escapou da cerca de dentes!”, 64) que costuma marcar, na Odisseia, a reação de uma per- sonagem a uma afirmação que, se fosse verdadeira, alteraria substancialmente o

155 Um exame detalhado dos versos 56 e 57 é feito no apêndice ao final deste livro. 156 O exemplo homérico mais extraordinário é a sedução de Zeus por Hera no canto 14 da

Ilíada; cf. Kloss (1994: 35-38).

157 Ambiguidade: Kloss (1994: p. 46-47, n. 96).

158 Repare-se também a repetição de dai- no verso 48, que reforça a ligação entre o herói

(“atilado”) e a deusa (“dilacera-se”).

159 Para uma discussão do verso 56, cf. o apêndice. Esquecimento em Hesíodo: Teogonia

trajeto tradicional da narrativa. Zeus afirma que não se esqueceria de Odisseu graças à excelência e à piedade do herói (65-67), uma postura inversa daquela dos súditos do rei em Ítaca e uma manifestação da reciprocidade de um deus para com os fiéis que não se esquecem de lhe providenciar sacrifícios. De acordo com Zeus, os responsáveis pela desgraça de Odisseu são Poseidon e, em parte, o próprio herói, que cegou o filho do deus.

No diálogo entre Atena e seu pai se define a causa e o valor do sofrimento de Odisseu. Esse sofrimento é tornado presente ao receptor por meio da atividade de memória dos deuses que é, ao mesmo tempo, a do rapsodo que apresenta a

Odisseia. Assim, quando Zeus justifica por que se lembra de Odisseu, embasa o

louvor do herói que fundamenta o próprio poema.

Desse modo, o foco da narrativa começa a firmar-se na tensão provocada pelo iminente retorno de Odisseu, em suspenso entre o passado composto pelos retornos de seus companheiros de guerra, o futuro que depende da vontade divina e, eventualmente, está ao alcance de previsões humanas e o presente em aberto e angustiado de Telêmaco (Od. 1, 11-17; 48-50; 58-59; 113-17). Tanto no início da Ilíada como no da Odisseia, é delineado um cenário marcado pela ausência de um herói – naquela, Aquiles, nesta, Odisseu – que compõe um paralelo com o mundo do receptor, igualmente carente de heróis mas receptivo a eles, como, por exemplo, por meio do culto desses heróis.160 Essa ausência é mais aguda na

Odisseia, já que Telêmaco sente-se incapaz de enfrentar o obstáculo que tem

diante de si, os pretendentes, ao passo que na Ilíada o exército aqueu só sofrerá na pele a ausência de Aquiles quando Zeus assim o quiser.161 Nesse sentido,

o mundo da Odisseia é mais próximo do mundo do receptor, mas em ambos o passado épico não é absoluto, pois uma relação efetiva e eficaz, mesmo que tênue, entre o passado e o presente é possível: o herói está ausente, mas o desejo de sua presença também se realiza por meio da própria performance poética.

Outra diferença entre o início dos dois poemas é que, no momento de angústia solitária, Aquiles mira a mãe que, por sua vez, dirige-se a Zeus para atender ao pedido do filho: Aquiles olha para o mar, metonímia da mãe (Il. 1, 348-50), filha do “ancião do mar” (358). A Telêmaco e Odisseu restam imagens – respectivamente, a do pai (Od. 1, 115) e a da terra pátria (58-59) –, com o que se reforça, no início do poema, a capacidade mental de homens e deuses que, ao tornarem algo presente, dão início a uma ação. No caso de Odisseu, esse início é postergado em vista da solução narrativa de fazer com que, apenas no canto cinco, Hermes solicite de Calipso que deixe Odisseu partir.162

160 Relação entre a tradição épica e o culto heroico: acima, capítulo um, seção cinco. 161 Repare-se, porém, que um lamento incipiente pela ausência de Aquiles começa cedo: cf.

os diagnósticos de Nestor (Il. 1, 254-57) e do próprio Agamêmnon (Il. 2, 370-80).

162 O segundo conselho era um elemento central na discussão sobre a unidade da Odis-

A situação presente de Odisseu e Telêmaco encontra-se em suspenso, mas o receptor, que conhece o esqueleto da história, sabe que os desejos que ambos cultivam, respectivamente, o retorno a Ítaca e a eliminação dos pretendentes, se realizarão em sequência, compondo o telos do poema. A representação desses desejos, indissociáveis das ações dos deuses que colocam o poema em movimen- to, reflete, como uma mise en abyme, o próprio receptor que deseja, de novo, a presença de Odisseu163 por meio do canto poético, no que se configura a essência

dessa tradição poética oral.

Que os desejos de Odisseu (Ítaca) e Telêmaco (está em Ítaca e deseja o pai) se tocam imaginariamente, fechando um trajeto de ida e volta entre Telêmaco e seu pai e formando como que um triângulo espacial e mental com o Olimpo (Olímpio-Ogígia-Ítaca), isso também reflete os limites da permeabilidade ima- ginativa entre o mundo dos heróis da tradição épica e o mundo dos receptores