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A tradição épica

3. A história-padrão da captura de uma cidade

Viu-se na seção anterior a defesa de Lord de que alguns temas têm a ten- dência a se agrupar. O que os mantém unidos é um tipo de tensão, “de sorte que formam padrões recorrentes de grupos de temas”.107 Esse é o caso, entre outros,

de canções de retorno – como é a Odisseia –, de um acesso de cólera (mēnis) e da captura de uma cidade.108 Cada história-padrão possui um padrão básico, mas

elas podem sobrepor-se.

No contexto da Grécia Arcaica, a Guerra de Troia pode ser pensada, de forma geral, como uma história tradicional que, bem antes de os poemas homéricos ganharem a forma pela qual os conhecemos, desenvolveu suas “fun- ções mitológicas próprias”.109 Do ponto de vista da tradição épica, essa história

manifesta um padrão aglutinador de diversos temas, uma unidade narrativa

ideal e multiforme que precede qualquer poema individual.110 A Guerra de

Troia, como um todo, envolvendo a conquista propriamente dita de Troia e também o retorno dos vitoriosos a suas comunidades, pode ser assim resumida (Od. 14, 240-42): “Nove anos lá combatemos, os filhos de aqueus, / e no décimo a urbe de Príamo pilhamos e partimos / para casa nas naus, e um deus dispersou os aqueus”.

É assim que Odisseu, em sua persona de Cretense,111 fala da guerra em

sua biografia, ao contar que sempre se dedicou à navegação, que, na cultura homérica, não conhece distinção rígida entre comércio e pirataria, e também a ações guerreiras, via de regra, terríveis; graças à sua coragem, era rico, temido e respeitado (Od. 14, 211-34). Após voltar de Troia, não conseguiu permanecer em casa e rumou ao Egito, onde seus companheiros destemperados assolaram a região, tomaram “mulheres e crianças pequenas” (264) como prisioneiros,112

107 Lord (1960: 112); a citação completa é: “some themes have a tendency to cling together,

held by a kind of tension, and to form recurrent patterns of groups of themes. They adhere to one another so tenaciously that their use transcends the boundaries of any one song or of any group of songs”.

108 Canções de retorno: Foley (1999: 115-67). “Ira” como história-padrão: Grossardt (2015)

e Nickel (2003).

109 Nas palavras de Burgess (2001: 3), em um livro que investiga como essa história tradi-

cional esteve ativa na produção de poemas e de pinturas de vasos na Grécia Arcaica; cf. também Burgess (2009).

110 Aglutinação de temas: Lord (1960: 112-22).

111 A partir daqui, sempre que eu mencionar o “Cretense”, refiro-me à persona que Odisseu

utiliza a partir do canto 13.

112 Para uma investigação da fórmula “mulheres e crianças pequenas” no contexto do tema da

mataram homens e, por fim, foram completamente derrotados por um con- tingente maior de soldados egípcios; somente o Cretense foi poupado pelo rei (235-84).

Um tal episódio de pilhagem não é incomum nos poemas homéricos, de sorte que deve ser um tema épico tradicional. A pilhagem é composta por ações como “decisão”, “ataque”, “batalha(s)” e “consequências”. Na biografia do Cre- tense e na aventura dos cícones (Od. 9, 39-61), episódio que abre as aventuras de Odisseu narradas entre os feácios e que tem uma forte coloração marcial cuja linguagem remete, senão a episódios narrados na Ilíada, pelo menos ao substrato tradicional deles, o desenvolvimento do tema em questão é breve e linear, isto é, as ações seguem numa ordem estritamente cronológica sem alteração signifi- cativa do ritmo narrativo. Nas duas passagens, as consequências do ataque têm uma importância narrativa maior que as suas causas – obtenção de riquezas em um país estrangeiro. A ênfase é na imprudência do exército agressor, responsável pela sua derrota final.113

Se compararmos esses dois episódios com a narrativa, feita por Nestor (Il. 11, 671-761), que os críticos costumam vincular a um poema épico pílio, uma sucessão de pilhagens e batalhas, incluindo o cerco a uma cidade, sobressai, na passagem iliádica, a elaborada interligação de causas e efeitos feita por um narrador que constrói sua história de modo a destacar o próprio papel nos even- tos. A principal pilhagem narrada não tem como motivação primeira o ganho econômico propiciado pelo gado da cidade inimiga, mas sim a vingança contra uma pilhagem injusta no passado (671-95). Tudo começou com um ataque de Héracles contra Pilos, cujo rei era Neleu, pai de Nestor. Seus motivos não são mencionados, mas as consequências foram terríveis: quase todos os aristoi da ci- dade foram mortos. Completamente desprotegida, Pilos, na sequência, é pilhada pelos epeus. A linguagem usada por Nestor é reveladora: o ataque de Héracles é descrito de forma neutra, mas o dos epeus é condenado moralmente. Assim, a pilhagem posterior comandada por Nestor está justificada, e uma derrota even- tual dos epeus, após tentarem destruir uma cidade chamada Trioessa, equipara perdas e ganhos das duas cidades. Nessa história, assim como na Ilíada como um todo, ganhos materiais resultam de ações violentas no contexto de uma rede complexa de causas e consequências.114

Temos, assim, três relatos de pilhagens cujo sentido é dado pelo episó- dio como um todo. O que permite ao receptor construir esse sentido não são

113 Linguagem iliádica no episódio dos cícones: Heubeck (1989: 15), Pucci (1998) e Danek

(1998: 164).

114 Narrativa de Nestor: Schadewaldt (1966: 83-85), Hainsworth (1993: 296-98) e Vieira

(2016b). Como Nestor, Odisseu, na Odisseia, é muito cuidadoso na forma como representa o próprio papel na derrota diante dos cícones: Pucci (1998: 150-54) e Pazdernick (1995). Semelhanças entre a narrativa de Nestor e a história da Ilíada: Dickson (1995: 173).

somente os fatos da história na ordem em que são narrados, mas também um conhecimento prévio de sua estrutura geral, seu tema ou sua história-padrão.

No escudo de Aquiles (Il. 18, 509-40), a representação de uma cidade sitiada enfoca dois instantes possíveis de uma guerra: uma tocaia e o horror do combate, ou seja, dois temas de uma mesma história-padrão. A causa da guerra não é explicitada – talvez a riqueza da cidade (511-12) –, mas as consequências sim. Quando Homero afirma que os moradores escolhem não capitular diante do inimigo que lhes exigira metade de suas riquezas para interromper o cerco, enfatiza que não são apenas as riquezas que estão em jogo, mas muito mais: as vidas das mulheres, das crianças pequenas e dos anciãos da cidade (513-15).

Na sequência, somos informados de que o grupo de homens da cidade que prepara uma tocaia é liderado por “Ares e Palas Atena, / ambos de ouro e ves- tindo vestes douradas, belos e grandes, com armas como deuses, / à parte, bem visíveis” (516-19). O esplendor divino por certo é mais uma passagem apontando para a maestria de Hefesto na confecção do escudo. Ao mesmo tempo, porém, a presença dos dois deuses guerreiros sugere que uma carnificina é eminente. Diante desse horizonte, as riquezas que os guerreiros esperam obter ou proteger perdem importância diante do caráter que assume a guerra: a cor vermelha vai colorir todos os homens (538-40).

Na construção que leva ao clímax da cena, Homero usa alguns elementos de uma razia de gado típica, mas os reverte ao fazer os sitiados atacarem o gado dos sitiadores (523-34):115

Para eles, então, dois vigias sentaram longe da tropa, esperando enxergarem ovelhas e trôpegos bois. Esses logo avançaram, seguidos por dois pastores que se deleitavam com a flauta sem intuírem o truque. Os ocultos, ao vê-los de longe, correram até eles e logo interceptavam os rebanhos bovinos e os belos bandos de ovelhas brancas e matavam os apascentadores. Os sitiantes, ao ouvirem grande ruído junto aos bois, sentados deliberando, de pronto subiram em carros com cavalos ergue-pé, foram atrás e ligeiro chegaram. Postados, combatiam junto às margens do rio, atingindo-se uns aos outros com brônzeas lanças.

Essa reversão contribui para subverter as causas econômicas da guerra ao se destacar que vida e morte são suas consequências mais importantes, o que transparece na descrição (535-38), pelo menos em parte sui generis no imaginário que subjaz à Ilíada, da atuação direta das divindades Briga, Refrega e Funérea

(respectivamente, Eris, Kydoimos e Kēr):

Com eles lutavam Briga, Refrega e a ruinosa Funérea, que segurava um vivo recém-ferido, outro ileso, e outro morto, e os puxava pelos pés na confusão;

nos ombros, sua veste estava rubra de sangue dos homens.116

Uma versão ainda mais comprimida do tema, mais uma vez demonstrando que ele é tradicional no interior da tradição épica, encontra-se em Trabalhos e

dias, quando Hesíodo define a quarta geração de homens como a dos heróis

que participaram das Guerras de Tebas e de Troia, respectivamente indo atrás dos rebanhos de Édipo e resgatando Helena (161-65). Hesíodo, como faz ao longo do mito das cinco gerações ou linhagens, não desenvolve quais sejam as causas da guerra nem, em uma passagem algo problemática, suas consequências (166-73). Causas e consequências reverberam profundamente ao ler-se essa passagem no contexto mais amplo, se não do poema como um todo, pelo menos no da discussão da oposição entre violência (hybris) e justiça (dikē) que vem na sequência do mito das linhagens de homens.117

Resumindo o que se viu até aqui, no tema ou história-padrão da conquista de uma cidade, o autor pode enfatizar o ganho econômico da guerra ou suas funestas consequências, especialmente – mas não só – para a população derrotada. Algo semelhante ocorre em representações imagéticas coetâneas. O famoso pito com relevo proveniente de Míconos (data aproximada: 670) mostra, em seu pescoço, o cavalo de Troia no momento em que os aqueus, armados, nele entram. No corpo, há três frisos que, por meio de dezessete variações, apontam para um mesmo instante após o fim da luta, composto por cenas nas quais um soldado invasor aqueu se dirige contra uma mulher e/ou uma criança. Essa violência sem limite contra a população indefesa de uma cidade não é nem histórica nem poeticamente a regra, mas ela representa uma possibilidade dramática ligada à história-padrão, especialmente quando se quer evocar, no receptor, a perspectiva do derrotado.118

Também o proêmio da Ilíada joga com as consequências mais nefastas da ira de Aquiles no contexto mais amplo da guerra, as quais, na arquitetura da

116 Para Lynn-George (1978: 396-405), Edwards (1991: 220-21) e Solmsen (1965: 1-6),

os versos foram compostos para o Escudo de Héracles atribuído a Hesíodo e posteriormente interpolados na Ilíada.

117 Acerca dessa discussão, cf. Werner (2012b) e (2014c); em ambos discuto a tese forte de

Rousseau (1993) e (1996), segunda a qual Trabalhos e dias é construído em oposição à economia da guerra tal como representada na Ilíada.

118 Míconos, Museu de Arqueologia, número de inventário 2240; acerca do vaso, cf. a dis-

cussão (com bibliografia suplementar) em Giuliani (2003: 81-95), a quem eu sigo de perto, e Carpenter (2015: 179-83).

Ilíada, referem-se, ao mesmo tempo, à igualdade de perdas causadas a ambos

os exércitos por conta da briga intestina entre os aqueus, ao fim de Troia, meto- nimicamente evocado por meio da morte terrível do bastião da cidade, Heitor, e também à morte do próprio Aquiles, prefigurada na morte de Pátroclo (Il. 1, 1-7):

A cólera canta, deusa, a do Pelida Aquiles,

nefasta, que aos aqueus impôs milhares de aflições, remessou ao Hades muitas almas vigorosas de heróis e fez de seus corpos presas de cães

e banquete de aves – completava-se o desígnio de Zeus –, sim, desde que, primeiro, brigaram e romperam

o Atrida, senhor de varões, e o divino Aquiles.

Em nenhum momento Aquiles tornará suas vítimas, de fato, “corpos presas de cães / e banquete de aves”, mas essa possibilidade está presente para as perso- nagens e para o receptor.

Ainda que o proêmio resuma uma história-padrão – a de um acesso de có- lera – distinta do padrão em discussão, quando se leva em conta não apenas esse trecho como um todo, mas se presta atenção na ordem em que o poeta apresenta cada um de seus sintagmas e se os liga à Ilíada em sua totalidade, verifica-se ser válido que “muitas almas vigorosas” engloba aqueus e troianos e “o desígnio de Zeus” (Dios boulē) não precisa, necessariamente, referir-se apenas ao plano que Zeus elabora após a súplica de Tétis motivada por seu filho Aquiles: ele também pode implicar, para o receptor acostumado com a dicção tradicional, a intenção global de Zeus, no contexto de uma história da humanidade, de destruir a raça dos heróis. Desta forma, a cólera de Aquiles é, ao mesmo tempo, a principal causa dos eventos representados na Ilíada e também uma única causa na com- plicada rede de causas e consequências que é a Guerra de Troia. A história da

Ilíada tem em seu centro as grandes perdas causadas pela cólera de Aquiles. Já

o destaque conferido a hērōōn (“heróis”) no início do verso 4119 e o “desígnio de

Zeus” no verso seguinte direciona a atenção do receptor para as consequências da Guerra de Troia como um todo.