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faz presente

1. Telêmaco e Atena/Mentes (O d 1, 106-68)

No plano divino que abre a Odisseia e que reflete, de certa forma, o plano do rapsodo e a própria expectativa de seu público receptor, Odisseu não foi esquecido, como se viu no capítulo anterior. O mesmo vale para o plano hu- mano, no qual Telêmaco e Penélope, também no canto um, explicitam que suas consciências costumam dirigir-se ao desaparecido. Ao passo que Atena e Zeus contextualizam o presente de Odisseu, espacial e temporalmente, por meio dos antagonistas do herói, Calipso e Poseidon, o presente de Telêmaco, a seu turno, está interligado à ação de um grupo cujos interesses são opostos aos seus, o que é tanto referido na primeira menção do jovem por Atena (Od. 1, 89-92) como indicado, na sequência, pela forma como Homero narra o olhar da deusa quando essa chega a Ítaca e assume a persona de Mentes (106-13): Atena vê, primeiro, os pretendentes, e Telêmaco é quem primeiro a vê. Considerando a cena típica da recepção de um hóspede, não se esperaria que fossem os pretendentes os primeiros a serem vistos pela deusa, o que realça a nobreza de Telêmaco, que segue os protocolos na recepção de um estranho.179 Mais importante: ao passo

que os pretendentes se divertem com jogos, comida e bebida, Telêmaco, agastado, tem uma fantasia sobre o retorno do pai (114-17):

Primeiro a vê-la foi o deiforme Telêmaco; sentado entre pretendentes, agastado no coração,

no íntimo mirava (ossomenos) o distinto pai: ao voltar um dia, fizesse esses pretendentes pela casa se dispersar,

retomasse ele mesmo sua prerrogativa e regesse sua casa.

O conteúdo tradicional do epíteto “deiforme” (theoeidēs), o primeiro a ca- racterizar Telêmaco no poema, é difícil de circunscrever. Para Richard Martin, faz-se uma referência à beleza do jovem como um atributo problemático para um herói quando esse atributo se destaca em relação a outros, já que o epíteto carac- teriza, na Ilíada, Páris e, na Odisseia, o feácio Euríalo, severamente repreendido por Odisseu no canto oito. Martin defende que o epíteto não teria sido escolhido

178 Alguns tópicos dessa seção foram tratados, de forma preliminar, em Werner (2013a). 179 A cena típica de “visita” ou “recepção de um hóspede” pode ser composta pelas seguintes

etapas (de Jong 2001: 17): 1) visitante põe-se a caminho; 2) chega no destino; 3) encontra quem procura; 4) é recebido pelo anfitrião; 5) recebe uma refeição; 6) conversa com seu anfitrião; 7) banha-se; 8) é-lhe oferecida uma cama; 9) recebe um presente; 10) às vezes recebe um acompa- nhante até seu próximo destino. Cf. também Arend (1933: 28-63).

por acaso, pois, por meio dele, seria evocado o tema do amadurecimento do jovem herói.180 Essa interpretação talvez esteja correta, mas mais importante na

cena é que Telêmaco diferencia-se bastante, e de forma positiva, dos também relativamente jovens – já que solteiros – pretendentes no modo como recebe o estranho.181

“Agastado” (tetiēmenos) é uma forma exclusivamente participial em Homero, usada seis vezes na Odisseia, sempre em uma mesma fórmula (φίλον τετιημένος ἦτορ). O termo diz respeito a um estado emocional passível de acompanhar uma ação (Od. 2, 298) ou mesmo de descrever o espírito de alguém durante o sono (Od. 4, 804). Esse estado emocional pode aparecer interligado a outras ativida- des mentais, como quando Anfínomo, o pretendente mais prudente, recebe um aviso do Cretense (Od. 18, 153-56):

E esse cruzou o salão, agastado em seu coração, curvando a cabeça, pois já via (osseto) o mal no ânimo. Nem assim fugiu da morte; também o prendeu Atena para as mãos e a lança de Telêmaco o subjugarem à força.

Tem-se aqui a formação de uma imagem mental referente ao futuro, cuja manipulação consciente não é desenvolvida, e está ligada ao estado emocional em questão. Assim, como se deve interpretar a visão do futuro que tem Telêmaco na passagem mencionada?

Uma possibilidade é que, como o jovem não se vê na imagem em que os pretendentes são derrotados pelo pai, acentua-se sua impotência presente.182

Se Telêmaco não está na imagem com o pai, é porque ele não se percebe um legítimo filho de Odisseu, o que não deve ser entendido, em primeiro lugar, no sentido biológico e sim social: Telêmaco ainda não se sente capaz, de todo, de ocupar o lugar do pai como senhor de sua casa, o que explicaria a sua inércia.

A própria recepção de Mentes, porém, relativiza essa leitura, pois o jovem cumpre as obrigações do senhor da casa ao receber o hóspede bem. A fantasia de Odisseu construída pelo jovem baseia-se no que tem ouvido falar do pai, já que nunca o viu, mas a ligação entre passado e futuro que pode elaborar é tênue, de sorte que ainda não é capaz de construir a expectativa que será realizada pela narrativa – ser o parceiro do pai na vingança contra os pretendentes – porque suas experiências como filho de Odisseu ainda são débeis. A visão que tem do futuro, contudo, é o primeiro passo de uma agenda mais positiva.

180 Theoeidēs: Martin (1993a: 229-34).

181 Telêmaco distingue-se dos pretendentes: Rüter (1969: 123), Steinrück (1992: 128) e

Race (1993: 82). Faixa etária dos pretendentes: Steinrück (2008: 63-74).

182 Cf. Kelly (2007: 335), que interpreta a fórmula φίλον τετιημένος ἦτορ de uma forma

Suas dúvidas, por outro lado, continuarão mesmo na segunda metade do poema, após ter reencontrado o pai, quando afirmará, diante de Odisseu, que conhecia sua fama (Od. 16, 241): “pai, sempre ouvi de tua grande fama (mega

kleos)”. Tal fama precisa ser entendida em dois níveis: do ponto de vista da eco-

nomia das personagens da Odisseia que frequentam o mundo grego, o kleos de Odisseu é sobretudo aquele mesmo ouvido por Telêmaco durante sua viagem a Pilos e Esparta e também engloba relatos sobre o pai ouvidos antes disso (Od. 3, 83-85); do ponto de vista do receptor da Odisseia, a expressão refere-se àquilo que ele próprio conhece do herói graças, sobretudo, ao meio da poesia épica, o que é reforçado pelo advérbio “sempre”.183

A visita de Atena a Telêmaco reforça o que transcorre no íntimo do jovem, compondo aquilo que Albin Lesky denominou “dupla motivação”: os deuses, na poesia épica, costumam beneficiar os heróis que já guardam em si a intenção da ação patrocinada pela divindade. Com isso não estou mitigando o fato de que Telêmaco ele mesmo não aparece em sua fantasia na qual o pai elimina os pretendentes, elemento que, por sua vez, torna mais palpável ao receptor o peso da experiência que constituirá seu diálogo com Atena/Mentes, cujo re- sultado, para o jovem, será lembrar-se ainda mais do pai (Od. 1, 320-22).184 Na

experiência de Telêmaco, o passado não é alto estático, pois depende do modo como é atualizado no presente. Se a experiência de Telêmaco espelha, de certo modo, a experiência do próprio receptor do poema homérico, o passado não está separado do presente por um muro como quis Bakhtin, pois depende do presente para sua atualização.

Após Telêmaco conduzir Atena para dentro de sua casa, a vingança ima- ginada por ele é tornada mais real e visível para o receptor por meio da curta cena na qual o jovem pega a lança da deusa e a coloca junto às lanças do pai (Od. 1, 125-29). Isso reforça a solidariedade entre Atena e Odisseu, explicitada no diálogo entre os deuses discutido no capítulo anterior, e sugere que a vingança será marcial e, de forma mais palpável para o receptor, que Telêmaco dela par- ticipará, muito embora seu papel ainda esteja em aberto.185 Homero não men-

cionará o destino das lanças divinas quando Atena deixar a casa feito pássaro, o que demonstra que a verossimilhança pode ser secundária em relação a formas implícitas do rapsodo se comunicar com o receptor. Comunicação velada à parte, não há como descartar o potencial algo jocoso dessa passagem: lanças divinas para sempre perdidas no depósito de Odisseu. Por fim, as armas são parte da contiguidade entre os eventos desse dia e os do dia seguinte, quando o jovem vai se dirigir armado à assembleia de itacenses (Od. 2, 1-7), mas em uma sequência

183 Para uma opinião distinta, cf. Petropoulos (2011: 92).

184 Klingner (1944: 24-26) insiste ser Atena a propulsora dos eventos, no que segue a opinião

comum. Dupla motivação: Lesky (1961) e Assunção (2001).

tradicional de cenas (despertar – armar-se – assembleia) manipulada de tal sorte a fazer com que Telêmaco não surja, mesmo que apenas momentaneamente, como o herói principal do poema.186

Embora Telêmaco seja representado como um jovem de nobre estirpe cujo interesse principal é sua propriedade, o futuro dela parece-lhe garantido apenas no caso do retorno de Odisseu se efetivar, como atesta a razão dada por Homero para o jovem receber Mentes em sua casa: “para que acerca do pai ausente o interrogasse” (Od. 1, 135). Todavia, até ser finalmente reconhecido por Telêmaco no canto 16, Odisseu será sempre de novo referido pelo filho como morto.187

Por exemplo, ao iniciar a conversa com Mentes, ainda um estranho para ele, Telêmaco fala de Odisseu como de um morto, “varão cujos brancos ossos já apodrecem na chuva, / jazendo em terra firme, ou onda no mar os faz rolar” (161-62). Em parte, essa postura evoca a posição do receptor, para quem o herói está morto do ponto de vista do culto e do fim da idade dos heróis, e sua presença efetiva no presente da performance depende da habilidade do rapsodo ou, em outra esfera, de rituais de culto. Todavia, o apuro com que Telêmaco descreve o cadáver do pai e o declarado ceticismo habitual em relação a boas notícias acerca de Odisseu (1, 163-68) talvez façam parte de uma estratégia para averiguar os relatos de estranhos. Indicar-se-ia, dessa forma, que o jovem toma precauções para não ser vítima de discursos enganosos. De outra parte, não se deve descar- tar a possibilidade que a reação de Telêmaco, em contraste com o interesse pelo pai divulgado anteriormente por Homero, talvez aponte para uma espécie de bloqueio emocional contra a própria identidade social, a de filho de Odisseu. O mesmo ceticismo ele mostrará diante de Nestor (Od. 3, 89-95, 225-28 e 241-42), de quem, a princípio, não teria razões para duvidar. Variados graus de ceticismo são demonstrados, por fim, também por Eumeu e Penélope, ambos confiando, de formas diferentes, no retorno de Odisseu.188

186 Nagler (1974: 120-21) examina a manipulação do conteúdo tradicional no início do

canto dois.

187 Acerca dessa dinâmica entre os cantos 15 e 16, cf. Werner (2011a).

188 Bloqueio emocional de Telêmaco: Steinrück (1992: 131-32). Ceticismo de Penélope: