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3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN

3.3 A MEDIAÇÃO TEMPORAL DA COMUNICAÇÃO E A ESTABILIZAÇÃO

3.3.3 O subsistema do direito e a estabilização das relações sociais

3.3.3.3 A diferenciação entre normalidade e normatividade

Como em todo processo comunicacional, a dimensão temporal da função do direito termina por adquirir relevância em detrimento, obviamente, de sua dimensão social. Para Luhmann (2005a, p. 183), "O significado social do direito é reconhecido quando existem consequências sociais devido precisamente a que se tenham podido estabilizar as expectativas temporais."179. Esta perspectiva teórica, certamente, vai de encontro à doutrina sociológica do direito que acentua "[...] a função social do direito recorrendo a conceitos tais como "controle social" ou "integração".”180 (LUHMANN, 2005a, p. 182). Aqui não é o caso de negar a relevância social do direito, mas apenas reconhecer que ele carrega uma tensão imanente entre suas dimensões temporal e social (LUHMANN, 2005a). Especificamente, a questão da prevalência da função temporal do direito nos remete ao problema da identificação da característica distintiva do subsistema do direito, em especial porque os demais subsistemas desenvolvem equivalentes funcionais – os processos comunicacionais habilitados nos demais subsistemas sociais também promovem a mediação temporal de atos de comunicação. O que distingue, então, o subsistema do direito? O enfrentamento a essa questão nos remete à diferenciação entre normalidade e normatividade.

Nas sociedades contemporâneas, a complexidade social não comporta mais o modo de operar da normalidade, exteriorizada através da inteira liberdade de comportamento individual em relação aos demais, em especial porque os indivíduos já não estão direta e imediatamente relacionados (LUHMANN, 2005a). Isso significa dizer que a normalidade já não encontra possibilidades de ocorrência em ambientes de elevada improbabilidade, uma vez que aumentaria ainda mais a própria complexidade social. Em sentido contrário, a normatividade restringe a utilização arbitrária dos signos (LUHMANN, 2005a), delimita o espectro do signo em relação ao significante, e, assim, opera a deslegitimação da arbitrariedade. É exatamente a partir da diferenciação entre normalidade e normatividade que emerge o primeiro traço característico da comunicação habilitada pelo código do direito: a natureza normativa da

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Tradução livre do texto original: "El significado social del derecho lo reconocemos cuando hay consecuencias sociales debido precisamente a que se han podido estabilizar las expectativas temporales." (LUHMANN, 2005a, p. 183).

180 Tradução livre do texto original: "[...] la función social del derecho recurriendo a conceptos como los de "controle social" o "integración"." (LUHMANN, 2005a, p. 182).

generalização simbólica das expectativas de comportamento. Neste contexto, a norma porta símbolos que condensam sentidos (que podem ser simbolicamente reproduzidos) capazes de projetar expectativas normativas de comportamento. Dessa forma, Luhmann (2005a, p. 187) explica que "Mediante as simbolizações, como bem se sabe pela religião, a sociedade produz estabilidades e as sensibilidades específicas. Confia-se no símbolo porque o que se quer designar não se pode ver."181. Apesar disso, constata-se que "[...] existem inúmeras expectativas normativas sem qualidade jurídica."182 (LUHMANN, 2005a, p. 194), tais como os costumes e a moral. A normatividade, assim, apresenta-se como uma característica necessária, porém insuficiente para a diferenciação do subsistema do direito, já que existem normas sem qualidade jurídica.

3.3.3.3.1 A norma com qualidade jurídica

As normas podem ou não ser predicadas de qualidade jurídica. Isso equivale a dizer

que nem toda norma possui qualidade jurídica183. Existem normas não-jurídicas, mas que, de

alguma forma, também projetam expectativas normativas de comportamentos futuros. Por exemplo, existem normas técnicas que padronizam produtos, facilitando, com isso, o intercambiamento de suprimentos ou de peças de reposição184 (expectativa normativa de mercado); normas científicas que dispõem acerca da validação metodológica das pesquisas científicas185 (expectativa normativa científica); ou, ainda, normas gramaticais que disciplinam a forma culta do uso da linguagem (expectativa normativa linguística). Por isso, a norma deve ser entendida como gênero, da qual a norma jurídica é espécie. Mas, então, o que distingue as expectativas normativas produzidas pelo direito daquelas produzidas, por exemplo, pela moral e pela religião? Essa questão é remetida a uma diferenciação produzida pelo próprio direito (operação de observação interna). Nesse sentido, Luhmann afirma que

181 Tradução livre do texto original: "Mediante las simbolizaciones, como bien se sabe por la religión, la sociedad produce estabilidades y sensibilidades específicas. Se confía en el símbolo porque lo que se quiere designar no se puede ver." (LUHMANN, 2005a, p. 187). 182 Tradução livre do texto original: "[...] existen innumerables expectativas normativas sin cualidad jurídica." (LUHMANN, 2005a, p. 194). 183 Além da distinção entre normatividade e juridicidade, faz-se necessário indicar que a expressão qualidade jurídica da norma, em nenhum caso, pode ser confundida com positivação da norma. Independentemente da qualidade jurídica, uma norma pode apresentar-se positivada ou não. Por outro lado, o processo de positivação da norma independe de sua qualidade (jurídica ou não). Assim, normas jurídicas tanto podem apresentar-se positivadas, tais como, a lei, o decreto etc., como não, tais como, por exemplo, os costumes nas operações mercantis e os contratos não escritos de prestação de serviço de transporte urbano. Em sentido inverso, há normas não-jurídicas que se apresentam positivadas, tais como, por exemplo, as normas técnicas da ABNT que estipulam regras de apresentação de trabalhos monográficos; normas de procedimento de manutenção industrial ou normas da língua culta.

184 O mercado de produtos eletrônicos tem sido pródigo em exemplos. Imaginemos um fabricante de celulares que ofereça no mercado um modelo com alojamento para chip distinto do padrão adotado no mercado. É neste sentido que se pode afirmar que uma decisão de mercado tomada por fabricantes de celulares, fornecedores de componentes eletrônicos e operadoras de telefonia móvel a fim de padronizar determinados componentes eletrônicos tem o condão de vincular, de obrigar os demais agentes econômicos.

185 Mesmo que uma pesquisa descumpra as normas metodológicas, o direito não tem condições de atestar a certeza ou incerteza dos resultados.

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[...] somente é possível determinar a juridicidade da norma através de uma observação recursiva no emaranhado em que a norma foi gerada, isto é, através da observação daquela relação de produção da expectativa que se diferencia, por meio

de suas operações, como um sistema.186 (LUHMANN, 2005a, p. 194-195).

Na perspectiva da teoria do direito de Luhmann (2005a), portanto, uma norma apenas possui qualidade jurídica quando o próprio direito lhe atribui essa qualidade. Com isso, o reconhecimento da juridicidade de uma norma fica restrito a uma operação de observação interna, ocorrida, exclusivamente, no subsistema do direito. Assim, a norma apenas adquire a qualidade jurídica porque seus elementos e estruturas são produzidos de forma autorreferente e autopoiética, em conformidade com a linguagem especializada do direito. Neste sentido, Luhmann (2005a) afirma que o subsistema do direito, operativamente enclausurado, autoproduz o direito a partir dele próprio. Por exemplo, o direito deve prever as situações em que ele é inaugurado ou alterado (por exemplo, o processo legislativo de elaboração da norma jurídica), dentre inúmeras outras situações. Isso significa dizer que as operações de comunicação no subsistema do direito se desenvolvem, exclusivamente, a partir do código do direito (tanto no sentido de ressaltar a operação de observação interna como a exclusão operativa, ou seja, a exclusão de operações de comunicação distintas daquelas produzidas no subsistema do direito). Tais operações se diferenciam porque estão referidas a outros atos de comunicação produzidos exclusivamente no interior do subsistema do direito (observação interna e consequentemente, operações de exclusão e inclusão).

As normas jurídicas, então, podem ser enxergadas como conjuntos de signos que projetam expectativas normativas generalizadas de comportamento, produzidas pelo Estado ou por entes não-estatais, desde que autorizados pelo Estado a produzi-las (convenções coletivas, contratos etc.), positivadas (leis, decretos, contratos, decisões judiciais e administrativas etc.) ou não (costume, contratos). O denominador comum que caracteriza toda e qualquer norma com qualidade jurídica são os símbolos generalizados da linguagem especializada do direito que projetam expectativas normativas de comportamento. Contudo, neste nível de abstração já não é possível diferenciar, por exemplo, a lei da decisão judicial ou do contrato, exatamente porque todos portam símbolos generalizados que projetam expectativas normativas de comportamento. As diferenciações, então, entre as diversas normas com qualidade jurídica são remetidas a outras características distintas como, por exemplo, a função, a extensão, a competência, dentre outras.

186 Tradução livre do texto original: "[…] la juridicidad de la norma sólo se puede determinar a través de una observación recursiva en el entramado en el que la norma ha sido generada; esto significa: a través de la observación de aquella relación de producción de la expectativa que se diferencia, por medio de sus operaciones, como un sistema." (LUHMANN, 2005a, p. 194-195).