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3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN

3.1 A OPERAÇÃO QUE DÁ IDENTIDADE AO SISTEMA SOCIAL (A

3.1.2 O indivíduo como fonte de instabilidade do sistema social

Uma questão interessante é aquela que coloca o indivíduo como fonte de instabilidade do sistema social, exigindo respostas sistêmicas às operações que se processam no meio (sistema psíquico). O meio, evidentemente, apresenta-se com uma complexidade mais elevada do que a do sistema. Para Corsi, Esposito e Baraldi (1996, p. 37), "[...] o entorno se apresenta como complexidade determinável unicamente segundo as estruturas do sistema; mas é a complexidade do entorno que permite a construção de uma complexidade do sistema."77. Nesse contexto, a transposição do referencial acerca do acoplamento estrutural à teoria social permite apontar que as operações ocorridas no meio (os pensamentos processados no sistema psíquico) apenas podem ser processadas pelo sistema social através de sua operação específica, qual seja, a comunicação. Como visto no item 2.2.2.3.1, o acoplamento estrutural não produz uma identidade operativa entre sistema e meio. Por isso, apenas quando as perturbações do meio (sistemas psíquicos) são traduzidas em signos da linguagem é que o sistema social pode capturá-las como irritações e processá-las através da comunicação.

Assim, os estados mentais, enquanto circunscritos aos indivíduos (sistema psíquico), não podem ser apreendidos pelo sistema social. Apenas quando são expressos através da

76 Isso corresponde a dizer que os elementos que compõem o sistema social são os atos de comunicação e não os indivíduos.

77 Tradução livre do texto original: "[…] el entorno se presenta como complejidad determinable sólo según las estructuras del sistema; pero es la complejidad del entorno que permite la construcción de una complejidad del sistema." (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 37).

56 linguagem (processos de comunicação) podem irritar o sistema social. Aqui adquire relevância o fato de a autorreferência possibilitar a autorregulação sistêmica, haja vista que as observações do próprio sistema (interna) e do meio (externa) se processam no interior do sistema social. Neste contexto, Luhmann entende que

O sistema (a comunicação) pode se distinguir em relação ao seu meio: a operação realizada pelo sistema (operação de comunicação) efetua uma diferença, na medida em que uma operação se articula e se prende à outra de seu mesmo tipo, e vai excluindo todo o resto. Fora do sistema, no meio, acontecem outras coisas, simultaneamente; e elas sucedem em um mundo que só tem significado para o sistema no momento em que ele possa conectar esses acontecimentos à comunicação. Por ter que decidir se articula uma comunicação à outra, o sistema deve necessariamente dispor da capacidade de observar e perceber aquilo que se ajusta, ou não, a ele. Portanto, um sistema que pode controlar suas possibilidades de conexão deve dispor de auto-observação; ou, em outras palavras, a comunicação tem a capacidade de se observar, principalmente quando já existe uma linguagem para a comunicação e um repertório de signos padronizados. (LUHMANN, 2009b, p. 92).

Apesar de o acoplamento estrutural possibilitar que o sistema social observe o meio (o sistema psíquico), as operações que dão identidade a um e a outro permanecem distintas. Com isso, coloca-se a questão de o sistema social tornar-se insensível às perturbações que ocorrem no sistema psíquico.

3.1.2.1 A questão da insensibilidade sistêmica

A diferenciação operativa aponta no sentido de, no sistema social, a comunicação ser sempre prevalente em relação às operações que ocorrem no meio. Na verdade, as perturbações do meio apenas podem ser percebidas como irritações quando se apresentam como operações controláveis. Por exemplo, o sofrimento (sistema psíquico) causado pela fome só passa a ter significado social quando os indivíduos colocados nessa situação conseguem expressar (ou quando alguém expressa por eles78) seu precário estado material através da comunicação. Claro, a comunicação termina por evidenciar muito da indiferença social, uma vez que o meio apresenta-se com uma complexidade mais elevada em relação ao sistema social e, em muitas situações, o sistema social não consegue apresentar respostas às perturbações ocorridas no meio.

A questão que se coloca é quando a seletividade dos acoplamentos estruturais despreza determinadas irritações, exatamente porque representa uma ameaça real à autonomia operativa do sistema. A fim de não se desdiferenciar, o sistema, obviamente, torna-se seletivo.

Com isso, queremos ressaltar a inata insensibilidade sistêmica, haja vista que as perturbações do meio apenas adquirem significado quando processadas através da operação específica do sistema. Particularmente o fenômeno da pobreza sintetiza um relevante exemplo da questão da insensibilidade sistêmica. Enquanto fenômeno que afeta os sistemas orgânico (ausência das condições materiais mínimas a uma sobrevivência humana digna) e psíquico (sofrimentos mentais) relacionado exclusivamente à esfera individual, a pobreza não foi percebida como irritação pelo sistema social, por exemplo, pela política, pelo direito e pela economia. Apenas quando a pobreza ganhou uma dimensão que ultrapassou a esfera individual, capaz, inclusive, de ameaçar a estabilidade sistêmica, é que o sistema social tornou-se sensíveis ao problema. Na opinião de Luhmann,

Somente quando, e na medida em que, os bens são escassos, a procura ativa de alguns deles por parte de uma pessoa se converte em um problema para as outras e, então, esta situação se regula através de um meio de comunicação, o que transfere a ação selecionada pela pessoa à experiência dos outros e assim a faz aceitável.79 (LUHMANN, 2005b, p. 20).

É interessante apontar que essa questão chega a ser percebida até mesmo em abordagens não-sistêmicas. Por exemplo, na opinião de Nabais:

Podemos dizer que foi este tipo de solidariedade80 a que foi convocada para a resolução da chamada questão social, quando a pobreza deixou de ser um problema individual e se converteu num problema social a exigir intervenção política. (NABAIS, 2005, p. 115).

A política apenas percebeu a irritação decorrente da pobreza (perturbação do meio) quando sua própria estabilidade se viu ameaçada, especialmente diante da sobrecarga do regime democrático com as legítimas demandas sociais, que revelaram, por um lado, os problemas da ingovernabilidade (BOBBIO, 2000) e, por outro, o desapego da multidão de miseráveis ao exercício legítimo do poder estatal, que passou, inclusive, a concorrer com poderes paralelos (cartéis, milícias, bandos, quadrilhas, máfias e outras modalidades de crime organizado). Do mesmo modo, o direito apenas foi irritado quando a pobreza passou a afetar a segurança física, política, jurídica, econômica e outras, evidenciada a partir da associação entre pobreza e criminalidade, com desdobramentos sobre a integridade física das pessoas e de seu patrimônio; ou quando a pobreza acentuou o descrédito na democracia; ou, ainda,

79 Tradução livre do texto original: "Solo cuando, y en tanto que, los bienes son escasos, el reclamo activo de algunos de ellos por parte de una persona se convierte en un problema para otros y, entonces, esta situación se regula a través de un medio de comunicación, el que transfiere la acción seleccionada por la persona a la experiencia de los otros y allí la hace aceptable." (LUHMANN, 2005b, p. 20).

80 Qual seja, a solidariedade vertical, aquela solidariedade expressa pela intervenção estatal destinada a fornecer proteção socioeconômica do indivíduo (NABAIS, 2005).

58 quando as questões materiais passaram a compor uma causa considerável de inadimplência contratual. Por fim, a economia também só se irritou com a pobreza quando ficaram evidentes as falhas de mercado provocadas pela ausência de amplos mercados consumidores, especialmente diante do extraordinário fenômeno de concentração da riqueza, resultante do próprio modelo da acumulação do capital necessário à expansão da economia monetizada.

3.1.2.2 A possibilidade de redução da complexidade pelo próprio meio

Apesar da seletividade sistêmica e, consequentemente, do desprezo às perturbações ocorridas no meio, em algumas situações o meio consegue apresentar respostas hábeis à redução da complexidade. No caso da sociedade, a naturalidade da vida cotidiana está apta a apresentar soluções que não encontram correspondência nas operações sistêmicas. Neste sentido, Luhmann traz um exemplo, a partir do direito:

[...] certamente o sistema jurídico não pode ser isolar-se dos juízos sociais de valor que são objeto de aceitação generalizada. Um desvio, do ponto de vista jurídico interno, com respeito ao que permitem tais juízos valorativos – pense-se no âmbito do direito sexual, da vida marital sem matrimônio, na homossexualidade, no aborto... – produz irritação no sistema jurídico, colocando também em marcha, por esta razão, uma busca posterior de soluções aparentemente "melhores" aos problemas a partir da situação fática da qual se avalia. 81 (LUHMANN, 2005a, p. 565).

Semelhantemente ocorre na política, quando, por exemplo, o controle social das condutas dos agentes políticos82 tem conseguido alterar a dinâmica dos mandatos eletivos, inclusive com fortes pressões por cassação de direitos políticos de seus detentores (renúncia de mandato por pressão popular), independentemente das respostas políticas e jurídicas. Também na economia o meio termina encontrando respostas hábeis à redução da complexidade, quando, por exemplo, a solidariedade processada no meio (ou seja, a solidariedade entre indivíduos) afeta à lógica de mercado, ou quando o comércio eletrônico amplia a concorrência econômica para além dos mercados locais e impõe limites aos mercados monopolistas. Nesses casos, a artificialidade das operações sistêmicas é substituída pela espontaneidade da vida cotidiana. Com isso, as estratégias do meio mostram-se capazes

81 Tradução livre do texto original: "[...] ciertamente el sistema jurídico no puede aislarse de los juicios sociales de valor que son objeto de aceptación generalizada. Una desviación, desde el punto de vista jurídico interno, con respecto a lo que permiten tales juicios valorativos – piénsese en el ámbito del derecho sexual, de la vida en pareja sin matrimonio, en la homosexualidad, en el aborto… – produce irritación en el sistema jurídico, poniendo también en marcha, por esta razón, una búsqueda en pos de soluciones aparentemente “mejores” a los problemas a partir de la situación fáctica desde la cual se juzga." (LUHMANN, 2005a, p. 565).

82 Sartori (2008, p. 47-48) trata esta questão em termos do princípio das reações previstas: "En función de este principio el elegido prevé en todo momento la previsible «reacción» de sus electores a lo que hace o se propone hacer. El control es, pues, continuo, puesto que la «previsión» (de cómo reaccionará el elector) es constante".

de reduzir a complexidade social, independentemente do sistema social. Nestes casos, é necessário reconhecer que a espontaneidade da vida cotidiana tem o condão de tornar a complexidade do meio menor que a do próprio sistema. Em sentido contrário, é possível indicar que em muitas situações a artificialidade dos sistemas mostra-se incapaz de apresentar soluções hábeis às perturbações ocorridas no meio. O meio, claro, não queda paralisado e consegue apresentar soluções que só posteriormente serão incorporadas às estratégias sistêmicas. É quando os indivíduos dão as costas à racionalidade sistêmica, caso em que o meio reduz sua própria complexidade, independentemente do sistema social.