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3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN

3.2 AS REFERÊNCIAS DA LINGUAGEM

3.2.3 Os códigos binários e a questão da objetivação da vida

Os meios de comunicação são uma resposta da linguagem à improbabilidade da comunicação, uma vez que a multiplicidade de indivíduos e de relações entre ausentes impossibilita que a comunicação (sistema social) se estabeleça diretamente entre indivíduos (sistemas psíquicos). Nesse contexto, os meios de comunicação têm a função de simplificar o processo de aceitação da comunicação. Contudo, deve ser ressaltado que “[...] aceitar a comunicação significa apenas que essa aceitação se coloca na base de comunicações ulteriores, independentemente do que se possa depois verificar na consciência individual” (LUHMANN, 2009b, p. 312). Isso corresponde a dizer que o êxito da comunicação independe da explicitação dos estados mentais, porquanto os meios de comunicação simplificam a transmissão das seleções individuais.

A questão que se apresenta, então, é que, nas sociedades avançadas, parte considerável das relações sociais entre indivíduos ausentes se resume a um código binário que, evidentemente, comporta apenas duas opções: a designação de uma realidade e a negação dessa designação. A partir daí, emerge a discussão acerca da estratégia sistêmica da objetivação da vida cotidiana, sintetizada pelo aniquilamento dos estados mentais, exatamente porque parcela considerável da comunicação cotidiana fica restrita ao conjunto de códigos

simbolicamente generalizados, proporcionados pelos meios de comunicação,

independentemente dos estados mentais dos indivíduos que participam do processo comunicacional. Este contexto termina revelando que os processos comunicacionais habilitados pelos meios de comunicação, em muitas situações, encontram-se desatrelados dos estados mentais – das emoções, dos sofrimentos, das expectativas, das inseguranças e das projeções das utilidades, dentre inúmeros outros – dos indivíduos que se comunicam. Assim, os códigos universais e simbólicos dos meios de comunicação, destinados à simplificação da

125 Tradução livre do texto original: "[...] la comunicación influyente se refiere a un compañero que va a ser dirigido para hacer sus selecciones." (LUHMANN, 2005b, p. 12).

comunicação, desconsideram as operações que se processam nos sistemas psíquicos (pensamentos). Na verdade, os meios de comunicação apenas promovem a coordenação, no sentido de vinculação, das seleções individuais dos envolvidos na comunicação – seleções "[...] que, certamente, não seriam relacionáveis entre si [...]” (LUHMANN, 2009b, p. 311) –, independentemente das motivações (sistema psíquico) para aceitar ou recusar uma seleção transmitida.

As bases restritas de aceitação da comunicação fornecidas pelos meios de comunicação, presas a códigos da linguagem simbólicos e universais, possibilitam que parte considerável das interações sociais se processe de forma objetiva. Inclusive, existem âmbitos das relações sociais em que os estados mentais são, necessariamente, irrelevantes para que a comunicação tenha êxito. Por exemplo, as interações de mercado se tornariam improváveis, pois exigiriam excessivo tempo para se efetivarem, se o processo comunicacional demandasse a explicitação dos estados mentais dos indivíduos envolvidos nas trocas econômicas (por exemplo, projeções acerca das expectativas, da função utilidade etc.). Da mesma forma, o processo democrático se tornaria infindável se cada indivíduo tivesse a oportunidade de expressar seus estados mentais na tomada de decisões que vinculam coletivamente (por exemplo, dúvidas acerca da viabilidade de certas decisões políticas, expectativas em relação ao futuro etc.). Da mesma forma, a aplicação do direito seria afetada se a cada ato, despacho, decisão e recurso administrativo ou judicial, as partes tivessem a oportunidade para expressar seus estados mentais (por exemplo, expectativas individuais em relação às penas a serem aplicadas, sentimentos de culpa etc.).

Enquanto os meios de comunicação elevam o êxito da comunicação, a própria complexidade social, isto é, a multiplicidade de indivíduos e de relações entre ausentes, aponta no sentido de que a ausência dos códigos simbolicamente generalizados dos meios de comunicação – e dos correspondentes esquematismos binários – impede que a comunicação se processe, tornando-a ou precária ou dispendiosa demais. O problema é que os códigos dos meios de comunicação possuem o condão de tornar opaca a realidade, de escondê-la artificialmente. Assim, as contingências reais não podem ser mais expressas, permanecendo, por isso, inalteradas. São substituídas, na verdade, por contingências artificiais, reduzidas a códigos binários: sim/não, ter/não-ter dinheiro, conforme o direito/não-conforme o direito, dentre outras.

Os códigos permitem, apesar das contingências, que a comunicação se estabeleça sobre bases restritas de aceitação fornecidas pelos meios de comunicação, impedindo, com isso, que as contingências sejam reveladas (por exemplo, pobreza, fome, trabalho escravo,

76 dentre outras). Então, se a perspectiva dos sistemas fechados, por si só, já indica que o sistema social, a fim de preservar sua identidade, torna-se seletivo (item 3.1.2.1), a objetividade dos códigos termina por ressaltar, ainda mais, a insensibilidade sistêmica: os problemas reais são transportados para os processos comunicacionais. Em outras palavras, os problemas reais são representados através de problemas na comunicação. O exemplo mais imediato pode ser dado a partir das interações econômicas no mercado. Neste contexto, Luhmann afirma:

Os meios simbolicamente generalizados transformam – de uma maneira que, na realidade, suscita estupor – as probabilidades do não, em probabilidades do sim. Por exemplo, para bens ou prestações de serviços que se desejam obter, eles permitem oferecer pagamentos em dinheiro. Os meios são simbólicos, enquanto utilizam a comunicação para produzir o acordo que, em si, seria improvável; e, ao mesmo tempo, são diabólicos quando produzem novas diferenças, enquanto realizam tal objetivo. Assim, um problema específico da comunicação é resolvido através de uma redistribuição entre unidade e diferença: aquele que pode pagar obtém o que deseja; e o que não pode, não o obtém. (LUHMANN, 2009b, p. 311).

Evidentemente, uma simples operação de compra e venda de bens, produtos, mercadorias ou serviços de uso cotidiano, na ausência do dinheiro (base comum de aceitação) e do código binário ter/não-ter (dinheiro) apresentaria dificuldades intransponíveis. Em outras palavras, isto corresponde a dizer que é muito pouco provável que se estabeleçam comunicações no subsistema da economia sem uma base restrita de aceitação da comunicação, fundamentada no código do dinheiro e em seu esquematismo binário (ter/não- ter dinheiro). Todavia, por outro lado, ao vender um produto, o agente econômico não se obriga a comunicar seus estados mentais (sofrimento, esforço etc.) relacionados a esta operação, nem os recursos despendidos na produção (matéria-prima, mão-de-obra, degradação de recursos naturais etc.). Por sua vez, o comprador não necessita justificar a origem de seu dinheiro (trabalho ou renda) ou se foi obtido de forma lícita ou ilícita. Tudo fica restrito ao código do dinheiro, sintetizado no preço do produto estipulado pelo mercado. Por isso, Luhmann assevera que os meios de comunicação restringem a memória dos sistemas sociais:

Para determinados sistemas sociais, a capacidade de esquecimento exerce um papel conclusivo: para funcionar, o dinheiro não necessita saber acerca de sua procedência; ele não tem memória. [...]. Se o dinheiro conservasse uma memória, para cada operação financeira seria preciso uma investigação desproporcional. (LUHMANN, 2009b, p. 329).

É neste sentido que Luhmann (2009b, p. 312) desvincula os meios simbólicos dos estados psíquicos: “[...] para que a comunicação tenha êxito, é irrelevante o sentimento de quem paga, no momento em que oferece o dinheiro [...]”.