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4 O CONSTITUCIONALISMO COMO RESPOSTA SISTÊMICA NO

4.3 A MEDIAÇÃO PRISMÁTICA

4.3.1 As estratégias sistêmicas

4.3.1.1 A procedimentalização da democracia

Uma das principais questões, na modernidade, gira em torno da associação política entre indivíduos de uma comunidade que se autogoverna, ou seja, “[...] que a si mesmo se administra [...]” (HABERMAS, 2003b, p. 23). Mas, como capacitar uma sociedade composta por indivíduos atomizados a tomar decisões que vinculam coletivamente? Uma primeira aproximação coloca em evidência a condição fundamental para que a formação política da vontade coletiva de indivíduos que se auto-organizam e autolegislam possa existir: a igual participação nas decisões coletivas. Com isso, a possibilidade de sucesso dessa associação política se vincula a que os membros da comunidade sejam juridicamente reconhecidos como livres e iguais.

Com a emergência do Estado liberal, fundamentado no liberalismo e no individualismo, surge o modelo de associação política entre indivíduos autointeressados (MACPHERSON, 2009), cujos compromissos se formam em torno dos interesses individuais daqueles membros reconhecidos juridicamente como livres e iguais. Neste contexto, a participação política na formação da vontade coletiva fica na dependência da existência de um sistema de direitos que possibilite o reconhecimento da condição (ou, dito de outra forma, que atribua o status) de membro livre e igual de uma comunidade. É evidente que esse sistema de direitos gira em torno da propriedade. É exatamente o sistema de direitos associado à

275 Tradução livre do texto original: “La riduzione della complessità non rende visibili i problemi legati all'invivibilità della vita: il problema della sofferenza, lo svuotamento dell'identità personale, il problema delle differenza sessuali, i giovani senza futuro e senza occupazione, l'infelicità diffusa nelle città caotiche, i ragazzi che si suicidano perché nel sistema del successo ad ogni costo persino una pagella negativa diventa una verifica della propria inefficienza. La tecnica sistemica rende invisibile il problema di tutti i Sud del mondo." (BARCELLONA, 1988, p. 90).

propriedade que garante a participação isonômica (igualdade no voto) no processo de formação de compromissos de interesses. Além disso, diante da prevalência do indivíduo276 perante o Estado, a associação política de indivíduos autointeressados se destina também a acentuar a separação entre ambos (Estado e indivíduo), impondo forte disciplina sobre a atuação do poder estatal.

Nesse modelo de associação política entre indivíduos autointeressados fica evidenciada a prevalência das relações privadas, das interações estratégicas, de uma sociedade que privilegia os resultados racionais na esfera econômica. Mas, ao mesmo tempo em que emerge a necessidade de tutelar os interesses individuais (auto-organização), surge a necessidade de estabelecimento de regras de convivência em uma associação política que reúne membros livres e iguais de uma comunidade (autolegislação). É dentro desse contexto que a democracia emerge como forma de auto-organização política de uma comunidade que se autogoverna, ou seja, que se auto-organiza e autolegisla. Apesar disso, o processo democrático de formalização de compromissos de interesses entre membros livres e iguais da sociedade não cria vínculos materiais (solidariedade) entre esses membros. Pelo contrário, preserva a atomização do indivíduo através de um sistema de direitos apto a combinar autonomia privada (interesses individuais) e autonomia pública (participação política). Por tudo isso, nem mesmo a participação do cidadão no processo democrático consegue reunir o indivíduo fracionado pelos subsistemas sociais.

4.3.1.1.1 O desapego às questões materiais

Se a associação política entre membros livres e iguais, por um lado, revela a formação de compromissos de interesse dos indivíduos autointeressados, por outro, denota a auto- organização dessa comunidade, cujos compromissos se formam em torno de interesses mais gerais (por exemplo, a segurança interna e externa). Exatamente em relação aos interesses mais gerais, emerge a questão da formação política da vontade coletiva acerca dos possíveis resultados materiais que uma associação de membros livres e iguais pode proporcionar a cada membro individualmente. Não é caso de negar que a associação política entre membros livres e iguais proporciona ampla segurança jurídica ao indivíduo, mas, apenas, de apontar que essa associação desobriga-se de produzir resultados materiais mais equânimes, ou, em outras palavras, desobriga-se de distribuir as riquezas produzidas no interior de si mesma. Os desdobramentos materiais advindos desse modelo de associação política colocam em

152 evidência a precariedade de restringir a segurança individual à esfera jurídico-formal, em detrimento da segurança material. O Estado liberal evidencia esse fenômeno de forma muito nítida, ao possibilitar a convivência do Estado de direito com o Estado mínimo (Estado liberal = Estado de direito + Estado mínimo). Se, por um lado, o Estado liberal prima pela tutela jurídica do indivíduo e de suas relações privadas277; por outro, ressalta os limites do Estado na tutela material do indivíduo278. Mas, a partir da propagação da liberdade política e da consequente universalização dos direitos políticos (sufrágio universal), emergem novas demandas sociais. De fato, o liberalismo político – com a ampliação da participação política e, consequentemente, a emergência de uma multiplicidade de atores políticos – possibilitou que parcelas de indivíduos vulneráveis passassem a ter seus direitos (civis e políticos) também tutelados pelo Estado. Contudo, a proteção dos indivíduos que, anteriormente, eram excluídos pelos sistemas políticos resultou em exigências incompatíveis com o Estado liberal, mínimo em sua essência. O desdobramento, como visto no item 4.14.2, é a transição política do Estado liberal para o Estado social. Entretanto, a emergência do Estado social, com a tutela do indivíduo no plano material, torna-se incompatível com a presença mínima do Estado (Estado Social = Estado de direito – Estado mínimo). O Estado social, pelo contrário, exige uma ampla participação estatal na tutela material do indivíduo (saúde, educação, segurança e previdência, dentre outros). É exatamente a partir desse contexto que se coloca a questão dos desdobramentos (formais e materiais) das decisões coletivas.

4.3.1.1.2 O procedimento democrático e o problema da vinculação formal e material

Dentro da perspectiva sistêmica, o subsistema da política tem a função operativa de habilitar acordos (decisões políticas) que vinculam coletivamente. Tais acordos evidenciam um processo decisório que carrega a mediação de seleções destinadas à alocação de recursos não-individuais. No plano da vinculação formal, as teorias procedimentais da democracia – por exemplo, a definição minimalista de democracia de Bobbio (2000, p. 22), fundamentada em "[...] um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”, e o processo deliberativo de Habermas (2003a; 2003b), fundamentado na adesão mental (consenso) dos participantes do processo democrático – atribuem legitimidade às decisões coletivas (políticas), produzidas em conformidade com um processo que garante a ampla

277 Neste caso, a racionalidade da decisão política centra-se no resultado privado mais conveniente.

participação dos indivíduos. Neste contexto, a democracia sintetiza um complexo de regras e procedimentos destinados a produzir decisões coletivas, legitimadas a partir do nível de aceitação dos membros livres e iguais de uma comunidade. Com isso, a democracia procedimental vincula a legitimidade das decisões políticas aos instrumentos de apreensão (mensuração) da vontade coletiva. Por exemplo, em Bobbio (2000) a mensuração da legitimidade se dá através da regra da maioria, enquanto em Habermas (2003a; 2003b), dá-se através do consenso279. Nestes termos, são consideradas aceitas coletivamente as decisões que forem aprovadas pelo maior número de membros iguais e livres de uma comunidade (aqueles indivíduos com direito a voto) ou aquelas decisões que conseguiram a adesão mental (consenso) dos membros da comunidade. Exatamente por serem legitimadas por um processo, essas decisões coletivas passam a ter caráter vinculatório para todos os membros livres e iguais de uma comunidade, inclusive para aqueles que não as aceitaram.

No Estado social, a questão da legitimidade do poder não perde seu protagonismo. Pelo contrário, consome parte considerável dos recursos políticos. Mas, a incapacidade de a democracia atender às demandas sociais faz surgir dúvidas quanto aos resultados (vínculos formais e materiais) advindos do processo democrático. Neste contexto, surge a necessidade de identificação da modalidade do vínculo que se forma a partir das decisões coletivas habilitadas pelas regras procedimentais da democracia. Um primeiro passo exige o reconhecimento da distinção entre vínculo formal (legitimidade) e material (solidariedade). Se, no plano formal, a decisão política vincula coletivamente cada indivíduo, porque é legitimada por processos decisórios que garantem a participação equânime dos membros livres e iguais de uma comunidade, no plano material, o mesmo não se observa, exatamente porque nenhum processo decisório, até mesmo o democrático, é capaz de produzir um vínculo material (solidariedade) entre membros livres e iguais de uma comunidade.

As regras procedimentais da democracia apenas garantem a equidade formal dos resultados, através do igual e geral direito ao voto. Tais regras demarcam o espaço de legitimidade do exercício do poder e, exatamente por isso, não possuem o condão de vincular materialmente o indivíduo, para, por exemplo, que ele seja solidário com os demais membros iguais e livres da comunidade. Em outras palavras, os resultados formais (vinculação coletiva a partir da legitimidade) não se desdobram de forma linear, direta e imediata, em resultados materiais, ou seja, na vinculação material (solidariedade) entre membros livres e iguais de uma comunidade.

279 Evidentemente, as duas perspectivas teóricas são as mais díspares possíveis, apesar de terem alguns pontos em comum, tais como: i) o reconhecimento da democracia como melhor forma de associação não-violenta entre indivíduos livres e iguais de uma comunidade; ii) a visão procedimental da democracia e iii) a gênese da democracia, a partir da ampliação dos direitos individuais.

154 Diferentemente da vinculação formal, a vinculação material (solidariedade) não é passível de instrumentalização política. Na verdade, qualquer decisão coletiva destinada a produzir vinculações materiais entre os membros livres e iguais de uma comunidade atenta contra a liberdade: onde há compulsoriedade não pode subsistir a solidariedade. Apesar da impossibilidade de decisões políticas produzirem vínculos materiais280, é importante reconhecer que a equalização das diferenças materiais pode ser objeto de decisão coletiva, de decisão política destinada a produzir determinadas condutas estatais específicas.281 Se decisões políticas, por um lado, não podem obrigar um indivíduo a ter um comportamento solidário, por outro, podem vincular a conduta do Estado, a fim de obter um resultado material mais equânime. Por exemplo, certas decisões políticas podem obrigar o Estado a fornecer os recursos mínimos à sobrevivência humana digna, ofertar ampla rede de proteção socioeconômica do indivíduo e/ou proporcionar as condições jurídicas para que a riqueza seja distribuída de forma mais equânime (salário mínimo, participação nos lucros das empresas etc.), dentre outras.

É evidente que a impossibilidade de vinculação material diretamente entre membros livres e iguais não impede que a solidariedade necessária à vida em sociedade seja processada a partir de uma vinculação formal. É perfeitamente possível que um vínculo formal crie um vínculo material indireto entre membros livres e iguais de uma comunidade, vínculo este intermediado pelo Estado. Nabais (2005) denomina essa forma de vinculação de cidadania solidária. Contudo, não deixa de reconhecer as dificuldades imanentes à imposição formal da solidariedade. Nessa perspectiva,

É certo que a esta forma de cidadania pode ser, e tem sido, objeto de algumas objeções. De um lado, argumenta-se dizendo que há uma incompatibilidade entre a solidariedade e a imposição, pelo que integrar as conseqüências jurídicas da solidariedade, impondo deveres exigíveis, em última instância, através de coação, seria negar a própria idéia de solidariedade. (NABAIS, 2005, p. 125).

Se a solidariedade não pode ser imposta materialmente, diferentemente ocorre no plano formal. O exemplo clássico da solidariedade (vinculação material) a partir de uma vinculação formal vem do dever fundamental de pagar tributos (NABAIS, 2005), ou seja, através da conduta estatal destinada à supressão de parcela da riqueza individual necessária à manutenção da atividade financeira do Estado. Neste sentido, a tributação obrigaria

280

Evidenciada através da impossibilidade de obrigar um indivíduo a ser solidário materialmente com os demais membros iguais e livres da comunidade.

281 Por exemplo, decisões políticas acerca do direcionamento dos recursos públicos necessárias ao atendimento das demandas sociais, às políticas públicas distributivas, dentre outros.

(formalmente) o indivíduo a ser solidário com os demais indivíduos de uma associação política.

De qualquer forma, a diferenciação entre vinculação formal (legitimidade) e vinculação material (solidariedade) sempre evidenciará que as regras procedimentais da democracia são inaptas a capturar determinadas necessidades individuais. Tais necessidades, em certa medida, são tratadas pelo subsistema da política como meras contingências específicas de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos. Só quando adquirem conotações coletivas, passam a ser objeto de deliberação (decisão) política. Isso aconteceu, por exemplo, com a pobreza, jogada no âmbito da esfera individual. Só a partir do momento em que representou um perigo, atingiu a estética urbana, aumentou a delinquência e a criminalidade passou a ser objeto de decisão política (políticas públicas).