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2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORÇO TEÓRICO DESCRITIVO DA

2.1 O RECONHECIMENTO DA ORDEM SOCIAL COMO UM DADO REAL E A

2.1.1 Elemento constitutivo e identidade da ordem social

A partir da discussão sobre a existência autônoma da ordem social em relação ao indivíduo, a teoria dos sistemas tem de enfrentar questões extremamente polêmicas, como, por exemplo, a do elemento constitutivo e do atributo capaz de caracterizar a ordem social. Neste sentido, emergem duas indagações: o que constitui a ordem social e o que lhe dá identidade? Quanto à primeira, a natural indicação do indivíduo como elemento constitutivo da ordem social poderia levar as ciências sociais a descrever a sociedade como uma mera reunião de indivíduos, independentemente das interações (no meio social) entre esses indivíduos; ou, pior ainda, levar a admitir, em casos extremos, a existência de sociedades constituídas por apenas um indivíduo. Afora isso, ainda impediria de estabelecer critérios de delimitação da identidade da ordem social que a diferenciasse do indivíduo, uma vez que a primeira seria constituída do segundo. Por sua vez, na questão do atributo que dá identidade à ordem social, a teoria dos sistemas se prende à possibilidade de designação de um elemento, operação, ou processo específico que a caracterize. Evidentemente a designação de um atributo que dá identidade à ordem social termina por estabelecer, por si só, a diferenciação entre sociedade e indivíduo. Por isso, deve ser ressaltado que o modo como um elemento, uma operação ou um processo que dá identidade à ordem social é produzido e reproduzido não pode estar desatrelado do fato de a relação sociedade/indivíduo carregar de forma imanente à diferenciação entre ambos.

As teorias sociais, portanto, não podem se furtar a discutir, por um lado, se a ordem social é constituída ou não de indivíduos; e, por outro, qual atributo (por exemplo, um elemento, uma operação, um processo, dentre outros) é produzido e reproduzido no interior da ordem social sob condições necessariamente controláveis30;31 (propriedade da recursividade), que, por isso, lhe dá identidade. De qualquer forma, até mesmo para amenizar as previsíveis críticas, devemos indicar que esses dois temas não são tratados exclusivamente pela teoria dos sistemas. As perspectivas teóricas heterorreferentes também têm de enfrentá-los. Por

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Tradução livre do texto original: "Las relaciones sociales entre las personas deben ser diferenciadas analíticamente de las relaciones entre la persona particular y el orden social." (LUHMANN, 2009a, p. 34).

30 Do contrário, não haveria a possibilidade de reprodução da operação, evento ou circunstância produzida no interior da ordem social. 31 Sob pena de a ordem social se desdiferenciar, isto é, de abrandar sua diferenciação em relação ao indivíduo.

32 exemplo, o contrato social, por um lado, revela que a vontade coletiva é constituída pela associação de vontades individuais, indicando, assim, que o elemento constitutivo da vontade coletiva é a vontade individual; por outro, revela que a vontade individual se junge a um acordo coletivo tácito, indicando que a primeira sofre restrições (é controlada) por decorrência da vontade coletiva.

No caso específico da teoria dos sistemas, o enfrentamento às questões do elemento constitutivo da ordem social e do atributo que lhe dá identidade encontram respostas no modo como a ordem social se relaciona com o indivíduo, isto é, na relação que a sociedade mantém com o indivíduo (LUHMANN, 2009a). O desenvolvimento teórico sistêmico é direcionado a ressaltar tanto as identidades entre as distintas ordens (sociedade e indivíduo), tal qual na perspectiva teórica do organicismo, como as diferenciações entre essas ordens, tal qual nas perspectivas teóricas dos sistemas abertos (dualidade operativa sistema/meio) e dos sistemas fechados (diferenciação operativa sistema/meio).

2.1.1.1 As relações de continência e pertencimento entre ordem social e indivíduo

Em especial na questão do elemento constitutivo da ordem social, o direcionamento às relações de continência (estar contido) e/ou de pertinência (pertencimento) entre sociedade e indivíduo parece inevitável. E, de fato, assim aconteceu com o desenvolvimento inicial da teoria dos sistemas. Neste contexto, emerge a perspectiva organicista da sociedade em que o todo autossuficiente é composto de partes (LANGE, 1981). A ordem superior (o todo, a sociedade), então, exprime a reunião de ordens inferiores (as partes, os indivíduos)32. Contudo, a transposição do organicismo à teoria social não encontra respaldo na realidade social. Pelo contrário, a observação dessa realidade tem indicado que a sociedade (o todo ou a ordem superior) não pode ser considerada apenas a reunião de indivíduos (das partes ou das ordens inferiores). Por isso, o enfoque analítico (ou reducionista) – com a segmentação do todo e a subsequente análise das partes – tem-se mostrado inapropriado a explicar realidades mais complexas, nas quais os fenômenos não podem ser descritos a partir da mera segmentação das partes, mas das relações que se formam entre essas partes e o todo (LUHMANN, 2009a).

Além disso, o direcionamento investigativo das relações de continência e/ou pertencimento entre a ordem social e o indivíduo coloca a teoria dos sistemas diante da

32 Para Bobbio (2000, p. 147), um corpo orgânico é aquele "[...] no qual cada parte está em função de todas as outras e todas juntas em função do todo".

impossibilidade de diferenciar a sociedade do indivíduo. Nesse caso, a indagação que se faz é se a sociedade contém o indivíduo ou se o indivíduo pertence a ela, como, então, descrevê-los como ordens distintas? O fato de a ordem social não se confundir com o indivíduo exige, evidentemente, que a teoria dos sistemas avance no sentido de investigar outras possibilidades de relacionamento (que não as de continência e de pertencimento) entre ordens distintas. Neste ponto, é importante ressaltar que o fato de a ordem social e o indivíduo se apresentarem como ordens distintas não implica que sejam mutuamente excludentes. Pelo contrário, a ordem social não pode excluir o indivíduo e vice-versa33. Por isso, a relação que a ordem social mantém com o indivíduo (relação sociedade/indivíduo) deve, sobretudo, confirmar o pressuposto de que a sociedade e o indivíduo se apresentam como ordens distintas.

2.1.1.2 As relações que ressaltam a diferenciação entre ordem social e indivíduo

A constatação de que o todo não é apenas a reunião das partes, conforme propunha o organicismo (LANGE, 1981), direciona o desenvolvimento posterior da teoria dos sistemas a ressaltar que a relação sociedade/indivíduo exterioriza, na verdade, as características que diferenciam ordens distintas (LUHMANN, 2009a). A partir daí a teoria dos sistemas tem de enfrentar duas questões relevantes. A primeira diz respeito à possibilidade de a sociedade se distinguir do indivíduo – ou, em termos sistêmicos, de o sistema se diferenciar do meio (diferenciação sistema/meio); enquanto a segunda, diz respeito às condições de possibilidade de preservação dessa diferença (preservação da diferenciação sistema/meio). Nesse contexto, surge a seguinte indagação: o que, de fato, diferencia o sistema do meio? Ou ainda, que característica o sistema porta que não pode ser atribuída ao meio? Como visto anteriormente, a sociedade (o sistema social) não se confunde com o indivíduo (o meio). Pelo contrário, o sistema possui condições de possibilidades específicas, distintas, portanto, das do meio. A principal dificuldade se prende à eleição de um atributo – de uma característica específica do sistema que não possa ser atribuída ao meio – que permita o sistema distinguir-se do meio.

2.1.1.2.1 O problema da ausência de critérios de delimitação da identidade da ordem social

Diferentemente de outras ciências, tal como a biologia, que dispõe de um evento específico que fixa os limites – a morte põe termo (delimita) à vida –, a “sociologia não

33 Aqui já se prenuncia o paradoxo da unidade sistêmica: o indivíduo nem está contido nem pertence à ordem social. Em adição, a ordem social e indivíduo não são mutuamente excludentes. Este paradoxo indica que a unidade (sociedade) porta a diferença (sociedade/indivíduo). Essa questão será tratada no item 12.2.2.3.

34 possui um critério de delimitação” (LUHMANN, 2009b, p. 38) que permita diferenciar o sistema do meio34, em outras palavras, que permita diferenciar a sociedade do indivíduo. Por isso, no campo das ciências sociais, a teoria dos sistemas se depara com o problema da ausência de critérios de delimitação da identidade sistêmica35. Essa questão é remediada através da operação produzida no sistema social, distinta, portanto, daquela que ocorre no meio, ou seja, no indivíduo (sistemas orgânico e psíquico).

A operação que dá identidade ao sistema certamente não pode ser idêntica à operação do meio. Com isso, a questão da delimitação (da fixação dos limites) do sistema é direcionada à diferenciação operativa entre sistema e meio. Mas, o que é uma operação? No interior da perspectiva sistêmica, a operação é entendida como a reprodução do elemento sistêmico36. Por exemplo, os sistemas orgânicos reproduzem a vida e os sistemas psíquicos, o pensamento (LUHMANN, 1990; 2009b). No caso do sistema social, a operação que lhe dá identidade encontra distintas respostas nas perspectivas da teoria da ação de Parsons e na teoria da

comunicação de Luhmann37, como se verá no item 2.2. Contudo, antes é necessário enfrentar

a questão da preservação da identidade do sistema social.

2.1.1.2.2 A questão da preservação da identidade da ordem social

Uma vez firmada a possibilidade de o sistema se diferenciar do meio a partir da sua operação específica, vem à tona a questão da preservação da identidade sistêmica. Essa questão coloca em evidência as condições sob as quais a identidade do sistema é preservada, em outras palavras, as condições sob as quais a diferenciação sistema/meio se mantém38. E aqui se faz necessário reconhecer que a mera eleição da operação que dá identidade ao sistema não se mostra suficiente para enfrentar a questão da preservação da identidade do sistema. Na verdade, a diferenciação sistema/meio se apresenta como fenômeno distinto da preservação dessa diferenciação, pois, enquanto a primeira é a remetida à operação que dá identidade ao sistema (operação específica), a segunda é direcionada às condições necessárias e suficientes para que a operação que dá identidade ao sistema se reproduza de forma recursiva no interior do sistema. Vale acrescentar que tanto a existência de uma operação

34 A ausência de critérios de delimitação estende-se, até mesmo, à identificação do exato instante em que se processam alterações nas estruturas de uma determinada sociedade a ponto de diferenciá-la das anteriores.

35 Com esse direcionamento, ratifica-se a impossibilidade de o indivíduo ser o elemento constitutivo da ordem social. 36 Ou seja, do elemento constitutivo do sistema.

37 A questão não se esgota nestas duas perspectivas teóricas. Por isso, é prudente registrar as contribuições posteriores de Habermas (2003a; 2003b) e sua teoria do agir comunicativo, que não serão abordadas nesta tese.

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É necessário apontar que a preservação da diferenciação sistema/meio não indica que a relação sistema/meio seja estática. No campo específico das ciências sociais, isso corresponde a dizer que a preservação da relação sistema/meio não impede que aconteçam modificações tanto no sistema como no meio. A preservação da diferenciação sistema/meio apenas aponta que as modificações ocorridas podem ser identificadas como operações específicas do sistema ou atribuídas ao meio.

específica (que dá identidade ao sistema) como a reprodução recursiva dessa operação (que possibilita preservar a identidade do sistema) conferem significado à expressão ordem, porquanto delimitam o modo como a ordem (o sistema) se relaciona com o meio (relação sistema/meio) e possibilitam a reprodução desse modo de relacionamento (preservação da relação sistema/meio).

A preservação da diferenciação sistema/meio, evidentemente, termina por impor um limite operacional ao sistema, indicando que ele não pode operar fora dos seus limites, sob pena de desdiferenciar-se (NEVES, 2007), ou seja, de atenuar a diferenciação entre sistema e meio. Mas, afinal de contas, como a identidade sistêmica é preservada? A preservação da identidade do sistema se vincula à possibilidade de o atributo (do elemento constitutivo do sistema) que dá identidade ao sistema se reproduzir de forma recursiva no interior do sistema. É exatamente a reprodução recursiva desse atributo que possibilita ao sistema diferenciar-se do meio. Por isso, faz-se necessário investigar como o atributo que dá identidade ao sistema (operação específica do sistema) se reproduz. Essa questão, evidentemente, direciona a teoria dos sistemas ao estruturalismo.