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3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN

3.2 AS REFERÊNCIAS DA LINGUAGEM

3.2.1 Os signos da linguagem e os mecanismos adicionais à linguagem

Como operação autônoma em relação ao sistema psíquico, a comunicação torna evidente que, diferentemente da realidade (natural ou construída, real ou imaginária), a designação da realidade sempre é uma construção social. A comunicação, então, é enxergada como a "[...] criação de uma realidade emergente, nomeadamente da sociedade [...]" (LUHMANN, 1992, p. 71). Segundo esse autor, (2009b, p. 82) “[...] não se pode iniciar um processo de linguagem sem ao menos ter em conta que existe algo exterior que deve ser designado como realidade [...]”. Por isso, faz-se necessário reconhecer que a linguagem carrega, de forma inata, a diferenciação realidade/designação (da realidade). Mas, além de a linguagem encontrar-se referida a uma realidade (natural ou construída) que, por si só, existe, independentemente dos signos que, por acaso, sejam utilizados para designá-la, também é importante reconhecer que a realidade designada pelos signos da linguagem já não necessita estar referida diretamente a uma realidade específica e concreta. Aliás, a linguagem é apta a

promover a designação da realidade mesmo na ausência da própria realidade98 e, até mesmo,

na ausência de experiências cognitivas individuais relativas à realidade designada99. Na verdade, a linguagem, ao mesmo tempo em que possibilita a designação da realidade natural (nascimento, morte, chuva, tempestade, terremoto, erupção de um vulcão e outros eventos naturais) ou construída (ordem jurídica, crise financeira, desemprego, automóvel, avião, edificações, telefonia móvel, dentre outras), desprega-se dessa realidade. Mas, como a linguagem promove a designação da realidade (natural ou construída) de forma autônoma em relação à realidade inicialmente referenciada? Em uma perspectiva sistêmica, o enfrentamento a essa indagação exige retomar as discussões acerca do paradoxo unidade/diferença. Especificamente em relação ao signo da linguagem, Luhmann encontra fundamento na teoria da forma:

97 Tradução livre do texto original: "[...] que se utiliza por sistemas autopoiéticos para estructurar sus propias operaciones, y en particular para lograr el nivel de la reflexividad." (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 103).

98 Por exemplo, as espécimes de animais extintos podem ser perfeitamente descritas pelos signos da linguagem.

99 Por exemplo, um indivíduo do sexo masculino (médico, biológo, veterinário etc.) pode descrever perfeitamente o fenômeno da gestação, apesar de esse ser exclusivamente feminino.

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[...] com esse instrumental de análise da forma fica indicado que, de um lado, está o signo, e, de outro, o designado. Consequentemente, adquire plausibilidade a forma proposta por Pierce, representada por um trinômio conceitual: o signo como a diferença entre significante e significado [...].

Visto sob a perspectiva da forma, o signo é uma forma que contém dois lados. Quando se faz uso do signo e toda a referência se desenvolve na parte interna da forma, opera-se do lado do significante: utilização da linguagem e das palavras, que, mesmo que não se saiba o que descrevem, ao menos distinguem. (LUHMANN, 2009b, p. 87-88).

Nessa perspectiva, o signo da linguagem revela a unidade que porta a diferença entre significante e significado. Baseado na teoria da forma de Spencer-Brown (2009), Luhmann (2009b) afirma que no sistema social – porquanto este processa exclusivamente atos de comunicação – o signo da linguagem opera no lado interno da forma, ou seja, no lado do significante. Mas, a diferenciação entre signo e designado termina revelando uma relação assimétrica: a linguagem possui a capacidade de desenvolver mais de um signo para descrever uma única realidade (designado). Em sentido contrário, fica patente a dificuldade de designar realidades distintas através de um único signo. A associação desses dois fenômenos – a diferenciação e a relação assimétrica entre signo e designado – indica que já não é mais possível reconhecer uma relação de correspondência única e imediata entre signo e designado. Com isso, evidencia-se a arbitrariedade da linguagem, uma vez que inexiste correspondência real entre signos da linguagem e realidade designada. Nesse contexto, pode ser dito que "[...] a comunicação lingüística separa drasticamente o conteúdo das formas que as transmitem."100 (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 101). É exatamente a partir da arbitrariedade da linguagem que emerge a questão da recursividade da linguagem: a contínua intervenção, à medida que se verificam os resultados anteriores da linguagem, destinada à introdução de novos signos da linguagem na designação da realidade (designado). A recursividade, então, denota que a linguagem é dinâmica e encontra-se aberta a intervenções, a interações com elementos da própria linguagem. Contudo, à medida que a linguagem introduz novos signos a comunicação torna-se, evidentemente, improvável.

Seja porque o signo da linguagem porta a diferenciação entre realidade/designação seja porque a linguagem possui a característica da recursividade, o medium linguagem proporciona as condições para que a comunicação seja processada a partir de referências linguísticas autônomas em relação à realidade que se quer designar. Mas, o que é o medium linguagem e como são criadas as referências linguísticas? Luhmann (1998, p. 158) denomina de meios "[...] às conquistas evolutivas que [...] servem funcionalmente para transformar o

100 Tradução livre do texto original: "[...] la comunicación lingüística separa drásticamente el contenido de las formas que lo transmiten." (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 102).

improvável em provável."101. Nesse contexto, as referências linguísticas são compreendidas como construções sociais destinadas a delimitar o significado dos signos da linguagem a fim de elevar a probabilidade de êxito na comunicação: "A linguagem é o meio que tem a função de fazer provável a compreensão da comunicação."102 (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 101). Assim, as seleções que conduzem o processo comunicacional (a informação, o ato de comunicar) apenas podem ser transmitidas e compreendidas como seleções distintas (ato de entender), quando os signos da linguagem adquirem, no contexto social, estabilidade de significado.

3.2.1.1 O problema da improbabilidade da comunicação

A questão do significado social das referências linguísticas nos remete ao problema da improbabilidade da comunicação. Na opinião de Luhmann,

Da perspectiva das conquistas evolutivas, o êxito da comunicação deve parecer extremamente improvável. A comunicação pressupõe seres vivos autônomos, cada um com seu entorno próprio e capacidade de processar informações. Como é possível, em tais circunstâncias, uma combinação, ou seja, seletividade

coordenada?103 (LUHMANN, 1998, p. 156).

Em especial na contemporaneidade, a questão da fixação social do significado dos signos da linguagem adquire amplitude porque a multiplicidade de indivíduos e de relações entre ausentes impede que a comunicação se processe de forma linear, diretamente entre indivíduos:

[...] é improvável que ego entenda o que pretende alter – dada a separação e individualização de seus corpos e suas consciências. O sentido unicamente pode ser entendido em sua relação com o contexto e como contexto faz sentido primeiro o que para cada pessoa apresenta em seu próprio campo de percepção e em sua própria

memória.104 (LUHMANN, 1998, p. 157).

Nesse contexto, a comunicação já não encontra na linguagem comum signos aptos a fornecer referências capazes de remediar a distância temporal, espacial e cognitiva entre os

101 Tradução livre do texto original: "Denominaremos medios los logros evolutivos que [...] sirven funcionalmente para transformar lo improbable en probable". (LUHMANN, 1998, p. 158).

102 Tradução lirve do texto original: "El lenguaje es el medium que tiene la función de hacer probable la comprensión de la comunicación." (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 101).

103 Tradução livre do texto original: "Desde la perspectiva de los logros evolutivos el éxito de la comunicación debe parecer extremadamente improbable. La comunicación presupone seres vivos autónomos con su entorno propio y procesador de información. ¿Cómo es posible, bajo tales circunstancias, una combinación, es decir, una selectividad coordenada?" (LUHMANN, 1998, p. 156).

104 Tradução livre do texto original: "[...] es improbable que ego entienda lo que pretende alter – dada la separación e individualización de sus cuerpos y sus conciencias. El sentido sólo puede ser entendido en su relación con el contexto y como contexto funge primero lo que para cada quien presenta su propio campo de percepción y su propia memoria." (LUHMANN, 1998, p. 157).

66 indivíduos, a fim de simplificar o ato de entender e de aceitar a comunicação que se depara, então, com o problema da improbabilidade decorrente dos eventos que a impedem de se estabelecer, tanto no sentido de ser compreendida como de ser aceita. Nesse particular, Luhmann (1992) faz referência a três situações distintas. Na primeira, ressalta o problema da vinculação da comunicação a determinados contextos e, a partir daí, a possibilidade de entendimentos distintos por cada participante do processo comunicacional:

[...] é impossível que alguém compreenda o que o outro quer dizer, tendo em conta o isolamento e a individualização da sua consciência. O sentido só se pode entender em função do contexto, e para cada um o contexto é, basicamente, o que a sua memória lhe faculta. (LUHMANN, 1992, p. 42).

Outra situação tem relação com o alcance da comunicação, melhor dizendo, com a incerteza de alcançar os ausentes. Luhmann (1992, p. 42) assevera que "A segunda improbabilidade é a de aceder aos receptores. É improvável que uma comunicação chegue a mais pessoas do que as que se encontram presentes numa situação dada. O problema assenta na extensão espacial e temporal". Por fim, uma terceira situação relacionada com a extensão da aceitação da comunicação, com a improbabilidade de a comunicação produzir um resultado desejado, no sentido "[...] de que o receptor adopte o conteúdo selectivo da comunicação (a informação) como premissa do seu próprio comportamento [...]" (LUHMANN, 1992, p. 43). Essa improbabilidade traz à tona a diferenciação entre o ato de entender e o ato de aceitar105 a comunicação. O primeiro indica que a comunicação se completou, ou seja, que as informações emitidas (ato de comunicar) foram compreendidas (ato de entender) por outrem, enquanto o segundo, que as informações emitidas (ato de comunicar), além de compreendidas (ato de entender), serviram para alterar os estados mentais (sistema psíquico) de quem as aceitou, a tal ponto de condicionar seu comportamento individual futuro. Nesse contexto, aceitar a comunicação significa que a informação, além de ter sido compreendida como uma seleção daquele que a emitiu (ato de comunicar), foi acolhida pelo sistema psíquico, sendo aceita como seleção pelo destinatário da comunicação. A diferenciação entre o ato de entender e o de aceitar a comunicação, portanto, aponta os distintos desdobramentos decorrentes dos processos comunicacionais: como operação que acontece no sistema social, a comunicação não apenas habilita as relações entre indivíduos (processo de socialização), mas, em especial, conduz o processo de organização social106.

105 Para Luhmann (1992, p. 43), "Nem sequer o facto de que uma comunicação tenha sido entendida garante que a tenha sido aceita". 106 Na perspectiva sistêmica de Luhmann, o ato de entender possibilita o surgimento de expectativas de comportamento futuro e, com isso, provoca a estabilização social.

3.2.1.2 A resposta da linguagem destinada a elevar o êxito da comunicação

A improbabilidade da comunicação traz à tona a questão de seu êxito. Essa questão se torna ainda mais relevante à medida que, segundo Luhmann (1992, p. 49), "A ordem107 surge porque, apesar de tudo, a comunicação improvável torna-se possível e normaliza-se nos sistemas sociais". O problema é que o aumento da complexidade social afeta o êxito da comunicação, tornando-o mais contingente. Tanto em relação ao processo de socialização como em relação ao processo de organização social, a multiplicidade de indivíduos e de relações entre ausentes exige que a comunicação seja transpassada do âmbito das relações individuais e concretas para se tornar universal e simbólica. A própria linguagem se encarrega de tornar provável uma comunicação improvável. Contudo, os signos da linguagem, por si sós, não estão aptos a enfrentar essa complexidade. Para Luhmann,

Se a aceitação dependesse unicamente da linguagem, só se poderia esperar o fracasso, e a comunicação correspondente não ocorreria. Em outras palavras, a própria linguagem, com base exclusivamente em si mesma, pode realizar somente uma escassa parte do que é linguisticamente possível. Todo o resto padeceria de um efeito de desilusão, se não existissem dispositivos complementares de outro tipo. (LUHMANN, 2009b, p. 311).

É nesse contexto que emerge a questão do êxito da comunicação em circunstâncias em que a aceitação das seleções individuais é improvável. Para contornar essa limitação, a própria linguagem desenvolve mecanismos adicionais à linguagem (LUHMANN, 2005b), denominados de meios de comunicação. Segundo Luhmann,

Apenas as sociedades mais avançadas desenvolvem uma necessidade de uma diferenciação funcional entre o código da linguagem em geral e, em particular, os meios de comunicação simbolicamente generalizados [...], que condicionam e

regulam a motivação para aceitar as seleções oferecidas.108 (LUHMANN, 2005b, p.

10).

Os meios de comunicação se destinam a elevar o êxito da comunicação, simplificando, no processo comunicacional, a transmissão da aceitação ou da recusa das seleções individuais. Tal como os signos da linguagem, os meios de comunicação descolam a comunicação dos contextos temporais e espaciais em que foram produzidos:

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Ver item 2.1.

108 Tradução livre do texto original: "Sólo las sociedades más avanzadas desarrollan una necesidad de una diferenciación funcional entre el código del lenguaje en general y, en especial, los medios de comunicación simbólicamente generalizados […] que condicionan y regulan la motivación para aceptar selecciones ofrecidas." (LUHMANN, 2005b, p. 10).

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[...] a transferência de seleções significa precisamente a reprodução das seleções em condições simplificadas abstraídas dos contextos iniciais. Precisamente em vista desta simplificação e abstração, torna-se necessário que os símbolos substituam o

começo concreto, o elo inicial da cadeia de seleção.109 (LUHMANN, 2005b, p. 13).

Entretanto, o resultado da comunicação é a bifurcação da própria realidade. E aqui é importante ressaltar que, diferentemente da própria realidade, a designação da realidade, enquanto construção social habilitada pela linguagem, porta o consenso e o dissenso:

A diferença entre comunicação e informação, sem a qual não é possível um acto de comunicação com sentido, só pode converter-se numa prática regular e com resultados previsíveis com a ajuda da linguagem. Em compensação, há que pagar o preço duma nova diferença. Esta diferença da linguagem, que distingue entre uma realidade real e outra fictícia (apesar de só haver um mundo), compensa-se pelo facto de que podemos estar sempre em acordo ou em desacordo com o que foi dito. A própria linguagem não favorece um consenso, antes gera esta distinção entre aceitação e recusa com o fim de se eximir do risco que existe na construção de um mundo fictício (mas real enquanto construção). É por isso que a diferença entre aceitação e recusa se torna produtiva, porque, de facto, em princípio a incerteza é bastante insuportável e não se pode nunca permanecer nela, ou pelo menos por muito tempo. (LUHMANN, 1992, p. 146).

Os meios de comunicação, portanto, não favorecem o consenso ou o dissenso, mas apenas fornecem as condições linguísticas, as bases de aceitação da comunicação destinadas a simplificar a transmissão de seleções individuais em situações de dupla contingência, em situações nas quais a seletividade daqueles que se comunicam encontra-se preservada. Assim, a probabilidade da comunicação improvável fica restrita à aceitação ou à recusa das seleções individuais – transmitidas de forma simplificada – como premissa para seleções posteriores (seletividade).