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2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORÇO TEÓRICO DESCRITIVO DA

2.2 A SUPERAÇÃO DO ORGANICISMO E DO ESTRUTURALISMO CLÁSSICO

2.2.1 A teoria dos sistemas abertos

A teoria dos sistemas abertos tem fundamento na dualidade operativa sistema/meio e no funcionalismo estrutural. A diferenciação entre sistema/meio é acentuada “[...] precisamente pela abertura do sistema e sua dependência do meio ambiente [...]" (LUHMANN, 2009b, p. 80). Os sistemas abertos estão aptos a intercambiar informação, matéria ou energia – através de funções de transformação, de input/output ou de feedbacks, dentre outros – com o meio. Assim, os sistemas abertos interagem com o meio, reagem, apresentam respostas a operações ocorridas no meio e vice-versa. Os sistemas abertos indicam, então, uma dualidade operativa, porquanto o modo como a ordem social se relaciona com o indivíduo (relação sociedade/indivíduo) se processa a partir de uma base de operações comuns tanto à ordem social (sistema) quanto ao indivíduo (meio). Por isso, as mútuas dependências que se formam passam a ser relevantes para a delimitação da identidade do sistema. Mas, afinal de contas, que operação diferencia o sistema do meio? E como essa diferenciação se mantém? Na verdade, a primeira trata da operação que dá identidade ao sistema, enquanto a segunda trata da reprodução dessa operação. De qualquer forma, as respostas às indagações postas acima demandariam a superação tanto do organicismo como do estruturalismo. No caso da identidade sistêmica, a prevalência investigativa é deslocada do organicismo (LANGE, 1981) até a diferenciação sistema/meio, enquanto, nas estruturas sistêmicas, ocorre o deslocamento das investigações sobre as estruturas em si mesmas a fim de privilegiar as funções que essas estruturas desempenham.

2.2.1.1 Operação que dá identidade ao sistema social (a ação individual)

Com a teoria dos sistemas abertos, o organicismo cede lugar à diferenciação sistema/meio, e o estruturalismo, ao funcionalismo. Para Luhmann (2009b, p. 36), um relevante passo foi dado com o “[...] surgimento da teoria do funcionalismo estrutural” e do “[...] desenvolvimento peculiar sobre o sistema da ação, realizado por Talcott Parsons”. Com fundamento na teoria da ação (action is system), Parsons parte da constatação de que “[...] a construção de estruturas sociais se realiza sob a forma de sistema, e a operação basal sobre a qual esse sistema se constrói é a ação” (LUHMANN, 2009b, p. 42). Nesta perspectiva, sistema e ação integram uma mesma teoria: "[...] Parsons especificou firmemente que ação e sistema não poderiam ser compreendidos separadamente; ou, em outras palavras: a ação só é possível sob a forma de sistema" (LUHMANN, 2009b, p. 42). Mas, como ação e sistema se vinculam? Segundo Luhmann, a construção teórica de Parsons parte do pressuposto de que

[...] uma ação se realiza quando já está estabelecida a diferença entre fins e meios, ou seja, quando já existe uma concatenação de valores coletivos, que se fazem presentes no momento em que o ator está decidido a atuar. Assim, o ator é somente um elemento dentro do conjunto da ação. Deve existir, então, um contexto de condições da ação, que deve estar pressuposto na sociedade, para que se possa efetuar uma ação. Nessa ótica, o sujeito é um acidente da ação: o ator fica subordinado a ela. (LUHMANN, 2009b, p. 43-44).

Isso corresponde a dizer que a ação individual se vincula ao contexto em que se processou a diferenciação entre fins e meios da ação. Assim, "[...] a eleição de fins e a delimitação dos meios não estão à disposição do livre-arbítrio de cada um dos indivíduos, mas devem existir determinações sociais que os antecedem" (LUHMANN, 2009b, p. 43). Evidentemente essa abordagem vai de encontro à perspectiva teórica que descreve a ação individual como uma mera "[...] exteriorização do que o ator pretender [...]" (LUHMANN, 2009b, p. 43) e que termina, por isso, vinculando a ação, exclusivamente, ao indivíduo que atua (ator). A teoria da ação de Parsons (2010), portanto, incorpora elementos teóricos de Durkheim (sistema) – a fim de alcançar as regularidades42 (padrões de comportamentos passíveis de serem apreendidos, mensurados) que evidenciam as estruturas valorativas da sociedade43; e, adicionalmente, elementos teóricos de Weber (ação) – a fim de alcançar a subjetividade que permeia a ação humana (diferenciação entre fins e meios da ação). É

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Bertalanffy (2012, p. 33), em sua teoria geral dos sistemas, denomina estas regularidades de similaridades estruturais ou isomorfismos. 43 A abordagem estruturalista – contrariamente à crítica infundada que atribui a mácula do reducionismo, do enclausuramento de uma realidade social a uma fórmula matemática, a um resultado exato –, representa, na verdade, uma possibilidade objetiva de descrição empírica da realidade social.

40 exatamente a junção de elementos teóricos tão distintos que possibilita estabelecer vinculações entre as estruturas sociais e a operação sistêmica (ação individual), haja vista que ressalta os contextos nos quais a diferenciação fim/meio da ação se processa.

2.2.1.1.1 O significado social da ação individual e as estruturas sociais

Segundo Luhmann (2009b, p. 42), “Parsons parte do pressuposto de que a ação é uma propriedade emergente [...] da realidade social, ou, em outras palavras, para que se realize uma ação, é preciso haver um determinado número de componentes”. Esses componentes, na verdade, indicam que a ação apenas se realiza quando o indivíduo (ator) promove a distinção entre fins e meio da ação (Weber) a partir de um conjunto de valores da sociedade previamente estabelecido (Dukkheim)44. Portanto, a ação apenas se realiza no sistema. É nesse contexto que surge a questão do significado social da ação. A ação individual, enquanto operação que dá identidade ao sistema social, apenas encontra significado (realiza-se socialmente) quando inserida em determinados contextos, a partir do instante em que as estruturas valorativas da sociedade estão aptas a produzir e reproduzir o seu significado (LUHMANN, 2009b). Nessa perspectiva, a ação individual apenas se realiza, isto é, adquire significado social, no sistema social.

A questão do significado social das ações individuais termina revelando que as estruturas sociais, em alguma medida, condicionam45 as relações entre indivíduos na

sociedade e, por isso, tanto restringem como habilitam a ação individual46. Por exemplo, em

uma economia monetizada, a ação individual na esfera econômica fica circunscrita às possibilidades de condutas no mercado, em conformidade com as estruturas que dão significado social às ações relativas às trocas econômicas. Neste mesmo sentido, a atribuição – diga-se de passagem, artificial – de direitos fundamentais (civis, políticos e sociais) e o aparato estatal que se formou para tutelá-los, também têm o condão de condicionar a ação dos indivíduos, restringindo ou habilitando condutas alheias. Por tudo isso, as ações individuais que encontram significado social, ou seja, que se realizam socialmente, terminam por

44 Isso corresponde a dizer que junto à distinção (esquematismo) fins/meios "[...] deve ser colocado, paralelamento, um arcabouço de valores que possibilite ao ator fazer a distinção entre fins e meios, ou que o leve a escolher somente determinados meios para obter um fim" (LUHMANN, 2009b, p. 43).

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A diferença entre condicionar e impor faz muita diferença na perspectiva teórica de Luhmann, exatamente porque parte substancial da teoria dos sistemas tem fundamento em seleções em condições de dupla contingência.

46 Não é prudente deixar de reconhecer as limitadas influências do indivíduo sobre a sociedade, especialmente em relação às mudanças sociais.

exteriorizar determinadas frequências de comportamentos exatamente porque as estruturas sociais afetam, restringindo ou habilitando, a autonomia individual47.

2.2.1.2 As dificuldades enfrentadas pela teoria dos sistemas abertos

A teoria dos sistemas abertos, contudo, não consegue apresentar respostas hábeis a determinados questionamentos (LUHMANN, 2009b). O primeiro diz respeito ao fato de os sistemas abertos carregarem operações externas e, por isso, estarem sujeitos a operações que se processam no meio (dualidade operativa). É evidente que, com esse nível de abertura, a diferenciação sistema/meio (sociedade/indivíduo) tem sua nitidez afetada. Assim, os sistemas abertos se deparam com os problemas da fixação dos limites do sistema e, consequentemente, com o da delimitação da identidade do sistema. A questão que se apresenta, então, é como os sistemas abertos conseguem se diferenciar do meio quando suas operações também ocorrem no meio? A dualidade operativa sistema/meio, de fato, impede a fixação dos limites (delimitação) que dão identidade ao sistema. Dessa forma, os sistemas abertos são incapazes de identificar as operações que os distinguem do meio. Além disso, os sistemas abertos têm de enfrentar a questão das mútuas dependências que se formam entre sistema/meio. A dualidade operativa sistema/meio indica que as estruturas dos sistemas abertos terminam sendo afetadas por operações ocorridas no meio. Assim, a dúvida que se coloca é se os sistemas abertos estão aptos a diferenciar suas estruturas e a mantê-las estáveis (LUHMANN, 2009b) quando suas operações são idênticas às operações do meio.

Um segundo questionamento aponta para o fato de a base teórica do funcionalismo estrutural – apesar de ter possibilitado o reconhecimento da existência “[...] de determinadas estruturas nos sistemas sociais, a partir das quais seria possível perguntar quais funções seriam necessárias para sua preservação e manutenção” (LUHMANN, 2009b, p. 37) – não conseguir ultrapassar a premissa da imutabilidade48 das estruturas da sociedade, considerando que a prevalência investigativa recai sobre os mecanismos de perpetuação dessas estruturas. Segundo Bertalanffy,

A principal crítica ao funcionalismo, particularmente na versão de Parsons, é que insiste muito na manutenção, no equilíbrio, no ajuste, na homeostase, nas estruturas institucionais estáveis, e assim sucessivamente, resultando em que a história, o

47 A restrição à autonomia individual não é uma questão eminentemente contemporânea. Mesmo em sociedades primitivas, desde que se verificasse um elementar nível de hierarquização ou de atribuição de funções sociais, a conduta individual estava condicionada a determinados contextos sociais. Por isso, o significado social das ações individuais não porta uma característica distintiva das sociedades atuais.

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processo, a mudança sociocultural, o desenvolvimento dirigido internamente etc. ficam em péssima posição e aparecem, portanto, como "desvios" com uma conotação de valor negativo. De modo que a teoria parece ser de conservadorismo e conformismo, que defende o "sistema" (ou a megamáquina da sociedade atual, conforme disse Mumford) tal como é, descuidando-se conceitualmente da mudança

social e assim obstruindo-a.49 (BERTALANFFY, 2012, p. 205-206).

O funcionalismo estrutural, na verdade, prende-se às funções dos sistemas destinadas à preservação e manutenção das estruturas, em detrimento das demais funções operativas (LUHMANN, 2009b). Consequentemente, também não consegue ultrapassar a armadilha do determinismo.

Tal qual a perspectiva da teoria dos sistemas fundamentada no estruturalismo clássico, presa à estabilidade das estruturas da sociedade, a teoria dos sistemas abertos enfrenta severas dificuldades na identificação das funções operativas, ou seja, das funções distintas daquelas destinadas à preservação do sistema, ou das condições de funcionamento, ou, ainda, das modificações nas estruturas sociais. Por exemplo, o funcionalismo estrutural não consegue indicar a partir de quais condições ou eventos, pontuados no tempo e no espaço, uma estrutura sofre alterações tão substanciais a ponto de permitir a diferenciação entre sociedades, ou seja, a partir de que instante temporal e em que espaço territorialmente delimitado um sistema social poderá ser considerado distinto dos anteriores. Luhmann (2009b, p. 38) sintetiza essa discussão a partir da indagação de "[...] quantas mudanças era preciso identificar para que qualquer observador coincidentemente assentisse que a sociedade antiga havia tido estruturas que já não operavam, nem emergiam na nova sociedade?". Na verdade, toda discussão teórica sobre os sistemas abertos não respondeu a uma pergunta elementar: o que é um sistema? Para Luhmann,

[...] uma teoria sistêmica constitui, em última instância, uma tentativa de responder, de maneira precisa, ao que se designa sob o conceito de sistema; e isso, sobretudo, em dois aspectos fundamentais: 1) passar da consideração de que um sistema é um objeto à pergunta de como se chega a obter a diferença representada sob o binômio

sistema/meio. Como é possível que tal distinção (sistema/meio) se reproduza,

mantendo-se e se desenvolva mediante evolução, acarretando que se coloque cada vez mais à disposição do sistema (do lado da diferença) uma maior complexidade? 2) que tipo de operação torna possível que o sistema, ao se reproduzir, mantenha sempre a referida diferença? (LUHMANN, 2009b, p. 73).

49 Tradução livre do texto original: “La principal crítica al funcionalismo, particularmente en la versión de Parsons, es que insiste demasiado en el mantenimiento, el equilibrio, el ajuste, la homeostasia, las estructuras institucionales estables, y así sucesivamente, con el resultado de que la historia, el proceso, el cambio sociocultural, el desenvolvimiento dirigido desde adentro, etc., quedan en mala posición y aparecen, si acaso, como «desviaciones» con una connotación de valor negativa. De modo que la teoría parece ser de conservadurismo y conformismo, que defiende el «sistema» (o la megamáquina de la sociedad presente, como dice Mumford) como es, descuidando conceptualmente el cambio social y así estorbándolo.” (BERTALANFFY, 2012, p. 205-206).

É neste contexto de questões não resolvidas da perspectiva dos sistemas abertos que a teoria dos sistemas fechados se apresenta como uma tentativa de compreender o que é um sistema.