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A divergência jurisprudencial e o precedente judicial

CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS

2.1 A divergência jurisprudencial e o precedente judicial

Concebida a interpretação como um processo de elucidação e de construção da norma jurídica, a partir do contato do intérprete com o texto da lei (subsistema S1) até

a organização dos vínculos de coordenação e de subordinação estabelecidos entre as normas jurídicas construídas (subsistema S4), é possível compreender o motivo pelo

qual as normas individuais e concretas produzidas pelo Judiciário (a que chamamos de sentença ou de acórdão), na aplicação de uma mesma norma geral e abstrata a fatos sociais semelhantes, podem assumir resultados diversos.

É que, sendo a sentença ou acórdão fruto da interpretação do juiz, é por ocasião dessa aplicação do direito que ele emprega seus valores, seus pré-conceitos, sua cultura.

Agregue-se a isso a existência de enunciados prescritivos no sistema de direito positivo que englobam conceitos indeterminados110, ou seja, situam-se na denominada

zona de penumbra, para os quais o aplicador terá, inevitavelmente, que escolher o

conceito que seja mais adequado, entre as opções de significados possíveis111.

110 Rodolfo de Camargo Mancuso também conseguiu identificar a existência de conceitos

indeterminados nas normas jurídicas, ao professar que “a complexidade da interpretação ainda mais se exacerba em face das chamadas normas de conteúdo aberto ou indeterminado – verdadeiros ‘cheques em branco’ que o legislador passa ao exegeta e ao aplicador” (A divergência jurisprudencial e súmula

vinculante, p. 149).

111 Em que pese os conceitos inclusos em algumas normas serem indeterminados, há um limite para a

interpretação, que o aplicador do direito tem de se restringir. Memorável é a lição do Min. Luiz Galotti, no julgamento do RE n.º 71.758, cujo relator foi o Min. Thompson Flores. Transcrevemos trecho de seu voto vencido: “Senhor Presidente, é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas, interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto e menos ainda, criando um imposto novo, que a lei não criou.

Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição.

Essa diversidade de interpretações sobre uma mesma norma geral e abstrata, gerando decisões judiciais pragmaticamente contraditórias, é o que habitualmente se chama de divergência jurisprudencial112.

O Estado-juiz é chamado em um processo para solucionar uma controvérsia entre jurisdicionados, e deve dar-lhes uma resposta judiciária, eliminando a incerteza existente e outorgando, em conseqüência, segurança jurídica.

A existência da divergência jurisprudencial no sistema jurídico é vital e decorrência natural da atividade interpretativa, sendo positiva na medida em que possibilita uma ampliação de debates sobre temas relevantes e controvertidos, e o exercício do livre convencimento do magistrado. Todavia, quando a divergência toma grandes proporções, resultando em julgamentos diversos para situações idênticas, notadamente quando estão em discussão direitos difusos, colocam-se em xeque a estabilidade social e a segurança jurídica, de forma a acarretar injustiças113, comprometendo a unidade do sistema jurídico. A essa incerteza quanto às decisões judiciais, Eduardo Cambi114 confere o nome de jurisprudência lotérica, afirmando:

“parte-se da seguinte premissa: se a Constituição contempla o princípio da isonomia, sendo todas as pessoas iguais (art. 5º, caput), para a mesma situação jurídica, a lei deve ser aplicada

Ainda há poucos dias, numa carta ao eminente Ministro Prado Kelly, a propósito de um discurso seu sobre Milton Campos, eu lembrava a frase de Napoleão: ‘Tenho um amo implacável, que é a natureza das coisas’”.

112 Entenda-se aqui jurisprudência no sentido amplo, como o conjunto de decisões proferidas pelo

Poder Judiciário. O vocábulo jurisprudência pode ser utilizado no sentido de (i) Ciência Jurídica (neste caso, é grafado com letra maiúscula), (ii) conjunto de decisões proferidas pelo Judiciário e (iii) apenas o conjunto de decisões uniformes (v.g., firmar jurisprudência, contrariar jurisprudência).

113 A palavra injustiça foi utilizada aqui de acordo com a concepção de Hobbes, para quem a justiça é

garantidora de paz. Ratificando este acepção, Kelsen afirma que: uma teoria pode fazer uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os interesses opostos, que reduza ao mínimo seus possíveis atritos, pode contar com uma experiência relativamente duradoura. Só uma ordenação dessa espécie estará em condições de assegurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que se lhe submetem. Embora o ideal de justiça em seu significado originário seja totalmente diferente do ideal de paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de justiça pelo de paz (Nicola Abbagnamo, Dicionário de Filosofia, p. 596).

114

Jurisprudência lotérica, RT 786, abril 2001, p. 112, apud Rodolfo de Camargo Mancuso,

do mesmo modo. A situação inversa, contida no fenômeno da jurisprudência lotérica, proporciona a falta de certeza do direito, sendo causa de crise, pois é a certeza quanto à aplicação do direito que dá segurança à sociedade e aos indivíduos que a compõem, na medida em que sub incerto enim iure nemo bonorum aut animae securus vivit (sob um direito incerto, ninguém vive seguro dos bens ou da vida). Dessa maneira, a efetivação do valor segurança jurídica – pela clara previsão dos direitos, deveres e obrigações, bem como dos modos pelos quais devem ser exercidos ou cumpridos – é um valor imprescindível ao convívio social.”

A falta de segurança jurídica acarreta o comprometimento da unidade sistêmica do direito positivo. Daí por que Karl Larenz115 defende a aplicação de uma mesma medida a casos semelhantes, a fim de salvaguardar a unidade do Direito. Para ele, “os juízes só poderiam subsistir por si mesmos, quando o que hoje consideramos justo no caso individual se mantém amanhã e depois de amanhã, quer dizer, se incorpora duradoiramente na nossa ordem jurídica no seu conjunto”116.

Sobre a necessidade de preservar a estabilidade social, Carlos Maximiliano117 é enfático ao professar que

“sem estudo sério, motivos ponderosos e bem examinados, não deve um tribunal superior mudar a orientação dos seus julgados; porque da versatilidade a tal respeito decorre grande abalo para toda a vida jurídica da circunscrição em que ele exerce autoridade. É preciso que os interesses privados possam contar com a estabilidade: ‘judex ab auctoritate rerum perpetuo similiter judicatarum, non facile recedere debet’ – não deve o juiz com facilidade afastar-se da autoridade dos casos constantemente julgados de modo semelhante.”

Dentro desse contexto, o precedente judicial tem figurado como uma das propostas utilizadas, sobretudo pelos sistemas jurídicos da common law, para operacionalizar uma uniformização de entendimento sobre determinada matéria. Ele permite ao sistema jurídico usufruir das seguintes vantagens: (i) proporciona previsibilidade quanto à determinação das condutas intersubjetivas; (ii) favorece o sentimento geral de estabilidade da lei; (iii) evita frustrações quanto a expectativas não

115

Op. cit., p. 524.

116

Ibidem, mesma página.

117

cumpridas no que se refere aos direitos e deveres dos membros da sociedade; (iv) diminui o custo e aumenta a eficiência do sistema jurídico; (v) preserva a separação dos poderes, na medida em que evita uma eventual abuso na criação de normas pelo Poder Judiciário; e, numa última análise, (vi) imprime observância ao princípio da isonomia118.

Mas o que vem a ser o precedente judicial?

O precedente judicial consiste em uma norma individual e concreta proferida por uma corte jurisdicional, que serve como paradigma, isto é, como exemplo a casos análogos que serão julgados posteriormente. Hans Kelsen119 prevê a possibilidade de construção de precedente judicial, afirmando que

“uma decisão judicial pode ter um tal caráter de precedente quando a norma individual por ela estabelecida não é predeterminada, quanto ao seu conteúdo, por uma norma geral criada por via legislativa ou consuetudinária, ou quando essa determinação não é unívoca e, por isso, permite diferentes possibilidades de interpretação. No primeiro caso, o tribunal cria, com a sua decisão dotada de força de precedente, Direito material novo; no segundo caso, a interpretação contida na decisão assume o caráter de uma norma geral.”

É de se observar que não há a exigência de julgados reiterados. Para que se caracterize como precedente judicial, basta o julgamento de um só caso, ou seja, de uma única norma individual e concreta produzida, que, em virtude de sua fundamentação convincente, seja capaz de ser utilizada em outros casos assemelhados120.

118

Celso de Albuquerque Silva, Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação, p. 150.

119

Teoria pura do direito, p. 278.

120

O dicionário Oxford define de forma ampla o que venha a ser precedente, entendendo-o como “um caso anterior que é ou pode ser considerado como um exemplo ou uma regra para casos subseqüentes, ou através do qual algum ato ou circunstância pode se apoiar ou se justificar”.

Difere, portanto, da jurisprudência uniformizada por meio das súmulas, que requerem decisões reiteradas sobre o mesmo assunto, para que se formule um extrato daquele entendimento consolidado121.

A existência de precedentes judiciais é comum a qualquer sistema jurídico. A diferença é o caráter da vinculação, isto é, saber se sua observância é obrigatória ou meramente persuasiva. Daí a existência de precedentes obrigatórios e não-obrigatórios.

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