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Aplicação do precedente judicial nos Estados Unidos

CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS

2.3 O precedente judicial no sistema da common law

2.3.2 Aplicação do precedente judicial nos Estados Unidos

2.3.2.1 Consolidação da common law na América

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René David, Os grandes sistemas de direito contemporâneo, apud Lênio Luiz Streck, Súmulas no

A formação do sistema jurídico nos Estados Unidos foi marcada por diversos conflitos quanto à adoção ao não da common law e sua história encontra-se estreitamente ligada à própria formação do Estado americano.

Numa primeira fase, com a colonização do Novo Mundo pelos ingleses, e com a constituição das treze colônias, a presença da common law entremeou-se com esparsos diplomas legais, especialmente baseados na Bíblia. Uma vez declarada a independência dos Estados Unidos, em 1776, e com a instituição de uma Constituição americana, a necessidade de segregação, própria da revolução contra os ingleses, buscou rechaçar o direito baseado na jurisprudência e priorizou a instituição de novas leis.

Somando-se a esses fatores, o elevado número de casos julgados e de precedentes judiciais produzidos nos Estados Unidos dificultava a aplicação da

common law.

Partiu-se, então, para uma tentativa de codificar o Direito naquele país.

Entretanto, a rápida mudança política e social pela qual passavam os Estados Unidos à época, bem como a falta de uniformização das leis americanas e, ainda, as profundas raízes inglesas já incutidas na sociedade representaram obstáculos à criação de um Direito nacional verdadeiramente legislado.

Prevaleceu a common law, com exceção do Estado da Luisiana, declaradamente adepto do civil law. Atualmente, o sistema jurídico dos Estados Unidos é de common

law, nos moldes do sistema jurídico inglês, porém com algumas peculiaridades. Lá, a

teoria do stare decisis apresenta maior flexibilidade, a teor da possibilidade de deixar de aplicar precedentes tidos como obrigatórios mais freqüentemente. Oportuna é a lição de Alan Farnsworth137 a esse respeito:

137

“Por várias razões, a doutrina do precedente nunca desfrutou nos Estados Unidos da autoridade absoluta que tem atingido na Inglaterra. O grande volume de decisões, com conflitos de precedentes em diferentes jurisdições, reduziu a autoridade das decisões individuais. A rapidez do desenvolvimento enfraqueceu a aplicabilidade de precedentes a casos posteriores surgidos depois de as condições sociais e econômicas se terem alterado com a passagem dos anos. Não obstante, a doutrina do precedente, ainda que aplicada com menos rigor do que na Inglaterra, está firmemente estabelecida nos Estados Unidos.”

As peculiaridades que se lhe apresentam começam pela existência de uma Constituição escrita, que é o fundamento de validade das outras normas jurídicas hierarquicamente inferiores,138 além da forte descentralização da jurisdição, até a possibilidade de os Estados terem seus próprios códigos, estabelecendo os procedimentos judiciais a serem praticados.

2.3.2.2 A organização judiciária dos Estados Unidos e a vinculação dos precedentes

A organização judiciária americana é mais complexa do que a inglesa. Isso porque é segregada em duas estruturas: o sistema jurídico federal (nacional) e os sistemas estaduais, com competências territoriais coincidentes. Em cada Estado- membro coexistem pelo menos um tribunal federal e um tribunal local.

No âmbito da Justiça Federal, existe a seguinte estrutura139:

(i) Suprema Corte dos Estados Unidos (U.S. Supreme Court): consiste na mais alta corte judiciária dos Estados Unidos. Sua múltipla competência é traçada originariamente pela Constituição. Encontra-se sediada em Washington, DC, e é formada por nove ministros (justices), entre os quais um ocupa a função de presidente (chief justice).

138

Neste ponto, coincide com os sistemas jurídicos de civil law.

139

(ii) Tribunais Federais de Apelação (U.S. Courts of Appeal ou Circuits): são treze tribunais federais, que albergam as doze regiões americanas distintas e mais a

Court of Appeal for the Federal Circuit, de âmbito nacional, com competência

estabelecida em razão da matéria.

(iii) Cortes Distritais Federais (U.S. District Courts): equivalem à jurisdição de base da Justiça Federal americana, existindo pelo menos uma em cada Estado- membro.

De outro lado, cada um dos Estados-membros detém sua organização judiciária com características próprias, conquanto apresentem traços semelhantes. Dizemos com Victoria Sesma140 que, “ainda que independentes uns dos outros, os cinqüenta sistemas estaduais têm muito em comum; todos têm tipos e níveis jurisdicionais similares e com funções parecidas”.

Em geral, as Justiças Estaduais americanas (State Court systems) são estruturadas da seguinte forma141:

(i) Suprema Corte Estadual (Final Court of Appeal ou Supreme Court of

Appeal): tribunal localizados no ápice da organização estadual. Detém competência

para julgar casos relacionados à interpretação da Constituição e da legislação estadual.

(ii) Tribunais de Apelação (Intermediate Appellate Courts): mantêm competência recursal, havendo variações de Estado para Estado, inclusive quanto ao título conferido (Appellante Division, State Appellate Court, Superior Court ou

Intermediate Court of Appeal). Não estão presentes em todos os Estados.

140

Tradução livre de “aunque son independientes unos de otros, los cincuenta tribunales estatales tienen mucho en común; todos tienen tipos y niveles tribunales similares, con funciones comparables” (apud Marcelo Alves Dias de Souza, op. cit., p. 94).

141

(iii) Tribunais de Condado (County Courts): consistem em tribunais que mantêm competência sobre áreas geograficamente maiores. Existem os que detêm jurisdição geral e outros que são especializados em determinados assuntos, como os

Family Courts e os Probate Courts, todos com mesma posição hierárquica.

(iv) Municipal Courts: nas cidades existem as cortes estaduais inferiores, que se preocupam em resolver questões de menor relevância. Esta é a primeira instância da organização judiciária estadual e recebe diversas denominações (Traffic Court, City

Court, Night Court, Police Court, General District Court, entre outras).

(v) Justiça de Paz (Justice of the Peaces) e magistrates: consistem em órgãos administrativos que detêm competência para realizar casamentos e atividades notariais, bem como decidir questões cíveis e penais de menor potencial lesivo.

Nos Estados Unidos, a teoria do precedente toma os seguintes matizes, quanto ao caráter de vinculação:

“1) A Suprema Corte nunca se considera estritamente obrigada por suas próprias decisões, e os demais tribunais federais e estaduais têm seguido esta mesma regra em relação às suas próprias decisões.

2) Uma decisão da Suprema Corte é obrigatória em questões federais em todos os demais tribunais (federais e estaduais).

3) Uma decisão de um tribunal federal, sobre uma matéria federal, pode ter efeito persuasivo em um tribunal estadual, mas não é obrigatória já que o tribunal estadual só deve obediência a um tribunal federal: a Suprema Corte. E inversamente: uma decisão estadual sobre uma questão federal pode ser persuasiva em assuntos federais, mas não é obrigatória.

4) As decisões dos tribunais federais (com exceção das decisões da Suprema Corte) não são obrigatórias para outros tribunais federais de classe igual ou inferior, a menos que o tribunal posterior deva obediência ao tribunal que decidiu a questão.”142

Aqui vale a mesma observação feita pelo potiguar Marcelo Alves Dias de Souza, ao comentar sobre a aplicação da teoria do stare decisis à organização

142

judiciária norte-americana. Ele identifica que a singeleza da regra que determina a obrigatoriedade de aplicação do precedente, agregada à quantidade absurda de precedentes produzidos continuamente, gera problemas outros que não conseguem ser resolvidos apenas com essas regras expostas, notadamente quanto ao valor que um precedente de um tribunal (federal ou estadual) tem para o outro (federal ou estadual). Daí por que ele sugere a sistematização do estudo, propondo: “a) a vinculação vertical ao precedente dentro do sistema judicial federal; b) a vinculação vertical ao precedente dentro de um sistema judicial estadual; c) a inter-relação entre o sistema judicial federal e os sistemas judiciais estaduais; d) a inter-relação entre os vários sistemas judiciais estaduais; e) e a vinculação dos tribunais americanos aos seus próprios precedentes”143-144.

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