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Aplicação da norma jurídica e interpretação como processo de elucidação e

CAPÍTULO 1 – PREMISSAS FUNDAMENTAIS

1.9 Sistema jurídico

1.9.3 Aplicação da norma jurídica e interpretação como processo de elucidação e

O caráter dinâmico e prospectivo do direito positivo decorre da possibilidade de autocriação, por meio da derivação das normas jurídicas, isto é, por meio de sua estruturação em cadeias sucessivas de regras, hierarquizadas, uma concedendo fundamento de validade à outra.

Essa auto-regulação torna-se possível em virtude dos sucessivos atos de aplicação das normas jurídicas, desde a norma mais abstrata até aquela que conterá maior grau de concretude, próxima da conduta intersubjetiva.

A aplicação das normas jurídicas aos fatos do mundo social, e a conseqüente transformação em fato jurídico, com a geração de nova norma jurídica, mais concreta, é o que já denominamos de processo de positivação do direito.

A norma jurídica não incide se não for aplicada. Dito de outra forma: não há juridicização sobre o mero acontecimento social. É condição necessária a enunciação

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por agente credenciado, para que o fato social seja trazido para o mundo jurídico e promova a subsunção do fato à norma, gerando os efeitos jurídicos ali previstos.

Nesse sentido, a aplicação pode ser entendida como um ato humano, um ato de produção normativa. Tárek Moussallem98, influenciado pela Teoria dos Atos de Fala, defende que aplicar a norma jurídica “é ato de fala de fazer-ser a norma. Aplicar é ato locucionário de dizer algo no jogo do direito positivo”. E continua:

“por mais que o conceito de incidência (e seu correlato ‘subsunção’) seja estático, a aplicação, em sua dinamicidade, é quem dará vida a ela. Da Constituição Federal, não se salta para a regulamentação da conduta humana sem atos intercalares de aplicação. Até mesmo a sentença, localizada no escalão mais baixo das normas jurídicas, requer outra norma que outorgue ‘eficácia técnica’, qual seja, o ato final em processo de execução (que os processualistas não chamam de sentença). Também a imunidade tributária não passa da Constituição Federal para a entidade imune (ou situação imune) num passe de mágica. Apenas em virtude da regra constitucional, determinado sujeito não pode ser imune. Para tanto, requer ato de aplicação – ninguém será imune sem que haja ato de aplicação conferindo-lhe a imunidade.”99

Nesse cenário, ao intitularmos o presente trabalho de “Aplicação de súmula ‘vinculante’ ao processo administrativo tributário federal”, o propósito foi cotejar os efeitos decorrentes da aplicação (ato de vontade do intérprete) da súmula “vinculante”, enquanto norma geral e concreta que introduz no sistema de direito positivo um (ou mais) enunciado(s) prescritivo(s), na produção na norma individual e concreta ali produzida, intitulada de decisão administrativa.

Em todo ato de aplicação da norma jurídica e conseqüente construção da norma de menor hierarquia, há, necessariamente, um percurso de sentido a ser trilhado desde o primeiro contato com o documento normativo até a construção articulada das significações normativas. Eis a importância da interpretação.

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Revogação em matéria tributária, p. 152.

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A teoria da interpretação tem passado por uma mudança de paradigmas, a partir da aplicação da filosofia da linguagem por vários estudiosos100, que passaram a defender a necessidade de se interpretar o direito como um fenômeno lingüístico. Essa nova visão da interpretação afasta o caráter meramente declarativo, carimbando, de uma vez por todas, a característica construtiva do processo interpretativo, conforme assevera Eros Roberto Grau101: “A interpretação do direito tem caráter construtivo – não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, mediante a definição de uma norma de decisão”.

Essa perspectiva, como um processo de elucidação e de geração de sentido, também foi concebida por Riccardo Guastini102, ao sugerir que a interpretação passa (i) pelo reconhecimento de um significado, (ii) pela decisão de um significado e (iii) pela criação de um significado.103

Sobre o caráter criativo da interpretação, preleciona Eduardo García de Enterría104:

“toda decisión judicial (y esto puede aplicarse a la integridad del proceso de aplicación del Derecho, aunque no toda tenga la autoridad de la aplicación por el juez) se reproduce necesariamente en mayor o menor medida el proceso de creación o producción del Derecho, que en toda interpretación judicial de una norma hay necesariamente una conformación valorativa de esta norma, que toda decisión judicial entraña una decisión originaria sobre el orden jurídico.”

100 No âmbito nacional, podem-se citar Paulo de Barros Carvalho, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Luis

Alberto Warat, Lênio Luiz Streck, Humberto Ávila, Heleno Taveira Torres e Eros Roberto Grau. Internacionalmente, indicamos Dardo Scavino, Gregório Robles, Giuseppe Melis, Riccardo Guastini e Eduardo García de Enterría.

101 Ensaio e discurso sobre a interpretação/ aplicação do direito, p. 55. 102 Lê fonti del diritto e l’interpretazione, p. 206.

103 Sua contribuição para nosso estudo pára por aí. Referido mestre italiano outorga ao vocábulo

“interpretação” duas acepções distintas. Para ele a interpretação-atividade seria a “actividad que consiste en determinar el significado de vocablos particulares, sintagmas o enunciados completos” e interpretação-produto o “resultado o producto de esta actividade” (op. cit., p. 202-203). De acordo com as premissas aqui adotadas, o produto da atividade de elucidação, consistente na interpretação, é justamente a norma jurídica (e não a interpretação).

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Para Paulo de Barros Carvalho105, “interpretar é atribuir valores aos símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a objetos”. Essa opinião exige que a interpretação paute-se por um processo de elucidação e de construção.

A trajetória da interpretação é marcada por etapas logicamente distintas, a que o mestre paulista denomina de subsistemas, a saber: o primeiro (S1) integra o conjunto

de enunciados espraiados nos textos do direito positivo. É o suporte físico para as significações jurídicas; o segundo (S2) congrega os conteúdos de significações dos

enunciados prescritivos. É nessa ocasião que o intérprete seleciona as significações e constrói o sentido aos enunciados. O terceiro subsistema (S3) é formado pelo conjunto

articulado das significações normativas. É neste estágio que são construídas as normas jurídicas, isto é, nele reside o sistema das normas jurídicas strictu sensu. Por fim, o quarto subsistema (S4) se preocupa com a organização das normas jurídicas

construídas no plano S3. Aqui, estabelecem-se os vínculos de coordenação e de

subordinação entre as normas jurídicas integrantes do direito positivo106-107-108.

É por ocasião do subsistema (S4) que o processo interpretativo se completa,

uma vez que, ao se organizarem as normas em um sistema hierarquizado, fixando as relações de coordenação e de subordinação, possibilita-se a contextualização da norma jurídica no sistema de que faz parte. O mestre paulista completa sua tese afirmando que “a interpretação só se completa quando faz surgir o sentido, inserido na profundidade do contexto e sempre impulsionada pelas fórmulas literais do direito

105 Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 57. 106 O subsistema S

4 foi introduzido por Paulo de Barros Carvalho nas obras Curso de Direito

Tributário, 18ª edição, e Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4ª edição, a partir de

2006.

107 Inexiste obstáculo para a validade simultânea de normas jurídicas com conteúdos contraditórios. É

o sistema do direito positivo, por meio de ato do intérprete, que vai operar a harmonização do sistema, estabelecendo os vínculos entre as normas e a permanência de duas normas conflitantes.

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É no subsistema S4 que se realiza, por exemplo, o controle de constitucionalidade das normas

infraconstitucionais e a integração entre normas jurídicas que contêm princípios aparentemente divergentes, como o princípio constitucional da segurança jurídica e o da livre convicção do magistrado, tão debatidos por ocasião da aplicação da súmula “vinculante”.

documentalmente objetivado. Esta é a razão para se concluir que ‘não há texto sem contexto’ ”109.

Daí por que se diz que a interpretação é uma atividade mental, um processo de alcance e atribuição de sentido, com a conseqüente construção pelo intérprete.

Portanto, não se interpreta a norma, visto que ela será sempre produto da interpretação dos enunciados prescritivos contidos nos textos legais e que difere do ato de vontade, cujo sentido ela constitui.

109

CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS

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