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A organização judiciária da Inglaterra e a vinculação dos precedentes

CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS

2.3 O precedente judicial no sistema da common law

2.3.1 Aplicação do precedente judicial na Inglaterra

2.3.1.2 A organização judiciária da Inglaterra e a vinculação dos precedentes

Um breve cotejo da organização judiciária inglesa mostra-se relevante na medida em que clareia a forma como se constituem e se aplicam os precedentes judiciais, bem como o modo de elaboração dos repertórios de jurisprudências (law

reports).

Duas considerações hão de ser feitas antes de tudo: (i) na Grã-Bretanha existem três sistemas jurídicos diferentes, um para a Inglaterra e Gales, outro para a Escócia e um terceiro para a Irlanda do Norte. Circunscrevemo-nos ao sistema inglês. E (ii) a partir do ingresso do Reino Unido na Comunidade Européia, em 1973, aqueles países passaram a se sujeitar ao Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, quando as causas versam sobre direito comunitário.133-134

132 A relevância do direito comum para os ingleses pode ser sentida com o pronunciamento de Otto

Mayer: “A lei comum manifesta-se, assim, como um ser de razão. Não é uma lei escrita, nem suscetível de ser redigida e escrita. Não existe em parte alguma e existe por toda parte. Reside em todos os espíritos e se exterioriza em todos os usos e, dessarte, revela um traço nacional, como lei comum. Os juízes, depositários, de certo modo, da consciência pública, declaram esta lei comum, aplicam-na em suas decisões e, através destas decisões, ela se torna conhecida. O juiz é reputado infalível: sua sentença é havida, sem contestação, como conforme à lei comum e, embora não constitua lei, embora jamais se haja atribuído ao juiz algum poder legislativo, a própria decisão basta para se considerar provada a existência das disposições por ele declaradas, criando, por este modo, um precedente obrigatório. A semelhante presunção de infalibilidade do juiz, a essa autoridade dos precedentes, é que se deve a possibilidade de se enquadrar a lei comum em corpo e doutrina” (De la

codificación en Angleterre, p. 212-213).

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A organização judiciária na Inglaterra é dividida entre a alta justiça (haute

justice), formada pelos tribunais superiores, e a baixa justiça (basse justice), que

congrega as jurisdições inferiores e alguns organismos quase-judiciários. Os precedentes judiciais, que são seguidos pelos demais órgãos do Judiciário, são formados no âmbito da alta justiça.

Integram a alta justiça:

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O art. 35º do Tratado da União Européia especifica a competência do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia. Transcrevemos o referido dispositivo: “Artigo 35.º 1. O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é competente, sob reserva das condições constantes do presente artigo, para decidir a título prejudicial sobre a validade e a interpretação das decisões-quadro e das decisões, sobre a interpretação das convenções estabelecidas ao abrigo do presente Título e sobre a validade e a interpretação das respectivas medidas de aplicação.

2. Mediante declaração feita no momento da assinatura do Tratado de Amsterdão, ou posteriormente, a todo o tempo, qualquer Estado-Membro pode aceitar a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial, nos termos do n.º 1.

3. Qualquer Estado-Membro que apresente uma declaração nos termos do n.º 2 deve especificar que: a) Qualquer órgão jurisdicional desse Estado cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno pode pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente perante esse órgão jurisdicional relativa à validade ou interpretação de um acto a que se refere o n. º 1, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, ou que

b) Qualquer órgão jurisdicional desse Estado pode pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente perante esse órgão jurisdicional relativa à validade ou interpretação de um acto a que se refere o n. º 1, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa.

4. Qualquer Estado-Membro, quer tenha ou não feito uma declaração nos termos do n.º 2, tem o direito de apresentar ao Tribunal alegações ou observações escritas nos casos previstos no n.º 1.

5. O Tribunal de Justiça não é competente para fiscalizar a validade ou a proporcionalidade de operações efectuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela aplicação da lei num Estado-Membro, ou o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna.

6. O Tribunal de Justiça é competente para fiscalizar a legalidade das decisões-quadro e das decisões no âmbito dos recursos com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de poder, interpostos por um Estado-membro ou pela Comissão. Os recursos previstos no presente número devem ser interpostos no prazo de dois meses a contar da publicação do acto.

7. O Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre qualquer litígio entre Estados-Membros decorrente da interpretação ou da execução dos actos adoptados em aplicação do n.º 2 do artigo 34º, sempre que o diferendo não possa ser resolvido pelo Conselho no prazo de seis meses a contar da data em que lhe tenha sido submetido por um dos seus membros. O Tribunal de Justiça é igualmente competente para decidir sobre qualquer litígio entre os Estados-membros e a Comissão decorrente da interpretação ou da aplicação das convenções elaboradas ao abrigo do n.º 2, alínea d, do artigo 34º.” (Texto extraído do sítio eletrônico oficial da União Européia, na versão em português, indicado pelo seguinte endereço: <http://eur- lex.europa.eu/pt/treaties/dat/12002M/htm/C_2002325PT.000501.html>.)

(i) Câmara dos Lordes (House of Lords): representa a mais alta corte de justiça inglesa e é formada por lordes leigos e juristas. É presidida pelo Lord Chancelier. Detém competência cível e criminal, predominantemente recursal, de processos advindos normalmente da Court of Appeal e, excepcionalmente, da High Court. O exercício da função jurisdicional não compete aos lordes leigos, restringindo-se ao Comitê de Apelação (Appellate Committee of the House of Lords), que é formado pelos Lords of Appeal in Ordinary.

(ii) Comissão Judiciária do Conselho Privado: formada pelos juízes da Câmara dos Lordes, tem a competência de julgar recursos advindos das altas cortes dos territórios britânicos do além-mar ou dos Estados da Commonwealth (Nova Zelândia, Gâmbia, Serra Leoa, Austrália (em alguns casos), entre outros).

(iii) Suprema Corte de Justiça (Supreme Court of Judicature): composta por três tribunais, a Court of Appeal, a High Court of Justice e a Crown Court.

(iii.a) A Court of Appeal detém competência predominantemente recursal. É um tribunal formado pela Divisão Cível (Civil Division), presidida pelo Master of the

Rolls, e pela Divisão Criminal (Criminal Division), que tem como chefe administrativo

o Lord Chief of Justice. Em sua composição, são responsáveis pelos julgamentos dos recursos um colégio de três juízes, formado por um Lord of Justice of Appeal e por dois juízes, os quais integram o Queen’s Bench Division (uma divisão da High Court

of Justice).

(iii.b) A High Court of Justice divide-se em três seções: a Queen’s Bench

Division, a Chancery Division e a Family Division. É um tribunal composto pelo Lord Chief of Justice, responsável por presidir a seção do Banco da Rainha, pelo Vice- chancellor, que preside a seção da Chancelaria, responsável pelas questões de equity,

assessores, no máximo de 70, escolhidos entre os advogados barristers135 que detenham no mínimo dez anos de exercício profissional. No interior de cada seção, pode haver juízes especialistas em determinadas matérias. Nesse caso, o próprio tribunal admite a criação de sub-grupos especiais, para julgar as respectivas causas, a exemplo das sub-divisões intituladas de Corte de Falências (Bankruptcy Court), Corte Societária (Companies Court) e Corte Comercial (Commercial Court).

(iii.c) A Crown Court foi formada, recentemente, por meio do Courts Act de 1971 e é uma corte que detém atribuições originárias e recursais, no âmbito criminal.

Complementam a organização judiciária inglesa os órgãos da baixa justiça, entre os quais as county courts, os magistrates e os tribunais administrativos (boards,

comissions ou tribunals).

(i) As county courts são os tribunais de condados ou distritais e servem aos vários distritos espalhados por toda a Inglaterra. As causas apreciadas englobam questões de pouca complexidade e de baixo valor econômico.

(ii) Os magistrates são cidadãos a quem foi conferido o título de justice of

peace e detêm competência para julgar infrações penais de menor potencial lesivo e

infrações maiores na fase preliminar. São auxiliados gratuitamente por um secretário jurista (clerk).

135 É interessante notar a distinção existente na Inglaterra e em Gales entre os advogados credenciados

para atuar nas instâncias inferiores (solicitors) e os advogados autorizados a atuar nas instâncias recursais (barristers). Oportuno é o comentário de Marcelo Alves Dias de Souza: “Ao contrário do que ocorre na maioria dos países, inclusive no Brasil, existem, na Inglaterra e no País de Gales, dois tipos de ‘advogados’: os solicitors e os barristers. Isso nos traz certa dificuldade de entender tal sistema. Quanto aos primeiros, eles são mais de 100.000 (cem mil) em atividade e são supervisionados por seu próprio ‘conselho’ profissional, a Law Society. O direito de eles ‘advogarem’ é normalmente restrito às Magistrates Courts e às County Courts, instâncias inferiores. Excepcionalmente, com o ‘certificate of advocacy’, eles podem advogar nas higher Courts, mesmo assim de modo limitado. Já os barristers são mais de 8.000 (oito mil) em atividade. Conhecidos coletivamente como ‘The Bar’, eles são supervisionados também por seu conselho profissional, mais especificamente pelo General

Council of the Bar. Eles podem advogar em qualquer instância, ressaltando sua importância nas

(iii) Os tribunais administrativos (boards, comissions ou tribunals), por fim, são órgãos administrativos que se encarregam de resolver conflitos em diversas áreas, tais como econômica, fiscal, trabalhista e de locação. São órgãos fiscalizados pelo Council

on Tribunals.

A teoria do precedente obrigatório, também denominada de stare decisis ou

doctrine of binding precedent ou, ainda, case system, determina a obrigatoriedade da

aplicação dos precedentes existentes aos casos análogos a serem decididos. A regra é a compulsoriedade da aplicação das regras contidas em referidas decisões judiciais no âmbito dos tribunais da alta justiça. Neste caso, o juiz não as consulta como mera orientação ou guia.

Na estrutura judiciária inglesa, pode-se resumir a vinculação dos precedentes da seguinte forma:

“1º – as decisões tomadas pela Câmara dos Lordes constituem precedentes obrigatórios, cuja doutrina deve ser seguida por todas as jurisdições, salvo excepcionalmente por ela própria; 2º – as decisões tomadas pela Court of Appeal constituem precedentes obrigatórios para todas as jurisdições inferiores hierarquicamente a este tribunal e, salvo em matéria criminal, para o próprio Court of Appeal;

3º – as decisões tomadas pela High Court of Justice impõem-se às jurisdições inferiores e, sem serem rigorosamente obrigatórias, têm um grande valor de persuasão e são geralmente seguidas pelas diferentes divisões da própria High Court of Justice e pela Crown Court.”136

As decisões proferidas pela baixa justiça não produzem precedentes, quer obrigatórios, quer persuasivos.

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