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CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS

2.4 O precedente judicial no sistema do civil law

2.4.1 A uniformização da jurisprudência e o efeito “vinculante” nos países de civil law

2.4.1.1 Em Portugal

A uniformização da jurisprudência e o efeito “vinculante” em Portugal encontram-se intimamente ligados com o instituto dos assentos portugueses.

A sua origem remonta a época das façanhas (fazañas y albedrios)167, consideradas julgados importantes sobre determinada matéria, que deveriam ser seguidos sempre que as mesmas situações se repetissem.

Entretanto, foi a partir dos assentos da Casa da Suplicação168, cuja vinculação foi decretada pelas Ordenações Manuelinas (Livro V, Título 58, 1º) , nos idos de 1521, que o instituto passou a efetivamente ser conhecido e aplicado. O primeiro assento de que se tem notícia é datado de 27 de fevereiro de 1523, tendo sido emitido na cidade de Évora169.

Os assentos eram interpretações autênticas das leis do Reino de Portugal e tinham força de lei. Foram aplicados no Brasil Colônia, em virtude das disposições contidas nas Ordenações Manuelinas e na Lei da Boa Razão.

Com a Lei da Boa Razão, em 1769, não só a Casa da Suplicação poderia expedir assentos, mas também os Tribunais chamados de Relações (desde que os seus assentos fossem confirmados pela Casa da Suplicação).

Entretanto, em 22 de março de 1822, por influência das idéias liberais, a Casa da Suplicação, e, conseqüentemente o seu poder para expedir assentos, foi extinta. Em

167 Vale ressaltar o comentário de José Alberto Dos Reis sobre o primórdio dos assentos em Portugal:

“Muito cedo se esboçou entre nós essa tendência. A primeira manifestação que se descobre é a das façanhas. Lê-se em Lobão: ‘chamavam-se “façanha” ao juízo ou assento que se tomava sobre algum feito notável e duvidoso, que, por autoridade de quem o faz e dos que o aprovaram, ficou servindo de aresto para se imitar e seguir como lei quando outra vez acontecesse’” (Código de Processo civil

anotado, p. 234).

168

A Casa da Suplicação correspondia ao atual Supremo Tribunal de Justiça, tribunal que decidia em última instância na monarquia portuguesa, e acompanhava o rei e a corte onde quer que fossem.

169

seu lugar, foi criado o Supremo Tribunal de Justiça170, com atribuições para estabelecer unidade na interpretação e aplicação da lei, sem, contudo, editar assentos. A proposta não funcionou, especialmente porque inexistia um instrumento processual destinado à uniformização da jurisprudência.

Seguiu-se um tempo de forte característica individualista e aversão à formação de correntes jurisprudenciais, o que aumentou a divergência e, por conseguinte, a insegurança jurídica.

Preocupado em conciliar o princípio da separação de poderes com a uniformização da jurisprudência, o governo editou, em 1918, o Decreto 4.620, no qual propôs a uniformização por intermédio de recursos interpostos no Supremo Tribunal de Justiça contra acórdãos divergentes do Tribunal das Relações ou do próprio Supremo Tribunal de Justiça. A proposta não resultou exitosa, tendo sido substituída pelo Decreto 12.353, de 1926.

Em referido sistema, “perante um conflito de jurisprudência, criado por soluções opostas da mesma questão de direito por parte do Supremo, o litigante vencido no acórdão ainda não transitado em julgado, tem o direito de interpor recurso, fundado na oposição de acórdãos. Este recurso há de ser julgado em tribunal pleno; e a jurisprudência que em tal julgamento for estabelecida fica revestida para o futuro, de força obrigatória tanto para os tribunais inferiores, como para o próprio Supremo, enquanto não for modificada por outra, igualmente emitida por tribunal pleno”171.

A partir daí, o Supremo Tribunal passou a chamar essas decisões de Assentos, embora o Decreto não as intitulasse assim.

170

Atualmente, a organização judiciária portuguesa compreende: (i) o Tribunal Constitucional, (ii) o Supremo Tribunal de Justiça, (iii) os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância (Relações), (iv) o Supremo Tribunal Administrativo e demais órgãos administrativos e fiscais, (v) o Tribunal de Contas, (vi) os tribunais marítimos e (vii) os tribunais arbitrais e julgados de paz.

171

O Código de Processo Civil de 1939 e o de 1961 reincorporaram ao sistema jurídico português a denominação de assentos, mas o caráter de vinculação somente adveio com o Código Civil, em 1966, que autorizava os tribunais a fixarem “doutrina com força obrigatória geral”, nos casos previstos em lei.

O instituto mantém características bem peculiares, que o distinguem de outras ferramentas utilizadas para a uniformização jurisprudencial em outros países. Isso porque o assento consiste em uma norma jurídica geral e abstrata, formulada para o futuro, expedida por um tribunal ou um órgão integrante do Poder Judiciário, que pretende solucionar um conflito de jurisprudência, e detém obrigatoriedade geral (e não apenas aos tribunais hierarquicamente inferiores, na organização judiciária).

Nessa trilha, Castanheira Neves172 já defendia que o assento é “uma prescrição jurídica (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstracta, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só se impõe com a força ou a eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente o caráter de fonte do direito”.

E continuava, professando que diverge de outros

“institutos do tipo da doutrina legal (doutrina jurídica de origem jurisprudencial) do Supremo Tribunal espanhol ou da ‘jurisprudência obrigatória’ da Suprema Corte mexicana. Em ambos os casos o que se torna vinculante é a orientação jurídica, que através de uma jurisprudência reiterada ou de certo número de decisões jurisdicionais, estes supremos tribunais mantiveram constante, enquanto que nos assentos não se trata de dar relevo a uma jurisprudência constante ou uniforme, mas de impor, mediante uma norma expressamente formulada para o futuro, a solução de um conflito de jurisprudência – solução norma que nem tem de cingir-se às teses jurisprudenciais em conflito, optando apenas por uma delas, nem de traduzir qualquer orientação jurisprudencial anteriormente seguida. O assento é ‘norma’ (constitui-se ex-novo visando o futuro) e não ‘jurisprudência’ (consagração de soluções que vêm do passado e persistem). (...) Igualmente se não se pode identificar o regime dos assentos ao regime do

172

‘precedente obrigatório’, que vigora nos sistemas da common law. O ‘precedente’ é uma concreta decisão jurisprudencial, vinculada como tal ao caso historicamente concreto que decidiu – trata-se também aqui de uma estrita decisão jurisdicional – que se toma (ou se impõe) como padrão normativo casuístico em decisões análogas ou para casos de aplicação concretamente analógica. Não se ultrapassa assim o plano do concreto casuístico – de particular a particular, e não do geral (norma) ao particular (o caso) – com todas as decisivas conseqüências, quer na intencionalidade jurídico-normativa quer metodológicas, que esse tipo de fundamentação e decisão implica.”173

Em 1993, por meio do Acórdão 810/1993, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, uma vez que violava o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição portuguesa.

Mais adiante, por ocasião da reforma do processo civil, entre os anos de 1995 e 1996, foi revogada a parte não considera inconstitucional do art. 2.º do Código Civil, e, em conseqüência, foram extintos os assentos. Em seu lugar, foi previsto o julgamento ampliado da revista, para uniformizar a jurisprudência.

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