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Os precedentes obrigatórios e seus elementos: ratio decidendi e obiter dictum

CAPÍTULO 2 – O EFEITO “VINCULANTE” DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS

2.3 O precedente judicial no sistema da common law

2.3.3 Os precedentes obrigatórios e seus elementos: ratio decidendi e obiter dictum

Para que se operacionalize a teoria do stare decisis é necessária a existência de ferramentas eficientes e acessíveis, que oportunizem aos aplicadores do direito consultar os precedentes já produzidos. Daí o surgimento das compilações de precedentes, chamadas de law reports.

Na Inglaterra, o law reporting system é formado pelas decisões judiciais proferidas pelos Tribunais superiores que apresentem o caráter de obrigatoriedade e que, além disso, carreguem consigo a argumentação sobre a qual a decisão se baseou.

A mera publicação de uma decisão judicial em uma das compilações de decisões não lhe assegura a característica de precedente judicial com efeito vinculador145. Para que um precedente seja vinculador, deve integrar a decisão um

143 Op. cit., p. 97.

144 Conquanto o assunto seja merecedor de maiores incursões teóricas, não nos ocuparemos neste

trabalho do seu aprofundamento.

145

A essas decisões judiciais publicadas, que não se caracterizem como precedentes judiciais, é conferido o nome de court record ou Plea Rolls. Cf. Richard Wards apud Marcelo Alves Dias de Souza, ao afirmar: “A law report contains most of these and, in addiction, the judgment of the court containing the reasoning upon which the decision has been based. It is this reasoning which is important element in the decision for the purpose of the doctrine of precedent. For this reason court

princípio jurídico utilizado para decidir referido caso, o qual se denomina de ratio

decidendi ou holding.

Deixemos de lado, por ora, a ratio decidendi e voltemos aos law reports.

Algumas considerações merecem ser feitas, antes de tudo, para melhor compreender o sistema de publicação de precedentes.

No sistema inglês, de forma bem sintética, o repertório mais consultado é o The

Law Reports, que é organizado seguindo a estruturação da alta justiça. Assim, existem

quatro séries de publicações: AC (publica os precedentes da House of Lords e do

Judicial Committee of the Privy Council), QB (decisões da Queen’s Bench Division da High Court e decisões das apelações julgadas na Court of Appeal), Ch (decisões da Chancery Division da High Court e decisões das apelações à Court of Appeal) e Fam

(decisões da Family Division da High Court e decisões das apelações à Court of

Appeal).

Além disso, há outras publicações como o Weekly Law Reports, repertório também oficial e semanal, e o ALL England Law Reports – ALL ER (semanal), o ALL

England Law Reports (European Cases) – ALL ER (sobre casos de direito

comunitário), bem como o Criminal Law Review – Crim LR146.

Nos Estados Unidos, onde a quantidade de precedentes é consideravelmente superior, os law reports ganham ainda mais relevância. Lá, há os repertórios de precedentes oficiais e os não-oficiais, e a regra é a publicação dos precedentes apenas das cortes de apelação.

As publicações oficiais, chamadas de reports, ficam a cargo de um funcionário do governo, a que se chama de reporter.

records, such as the Pleas Rolls, copies of which dating from the twelfth century are preserved in the Public Record Office, are of little value as precedent” (op. cit, p. 104).

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O repertório de precedentes oficial mais consultado é o United States Reports, compilação das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. No âmbito federal, podem-se citar os repertórios oficiais da West Publishing Co.: o Supreme Court

Report, o United State Reports (U.S.), o Federal Reporter e o Federal Suplement, e as

compilações privadas da United States Supreme Court Reports e Lawyers’Edition. Nos Estados-membros, têm relevância as publicações do American Law Reports (A.L.R.) e o National Reporter System (Regional Reporters), divididos em regiões.

Ademais, os americanos utilizam o sistema dos digestos e citações. Os primeiros consistem em uma compilação dos precedentes, com diversos índices e correlações entre os inúmeros julgados, e os últimos listam as decisões posteriores julgadas baseadas em um mesmo precedente147.

Volvendo a atenção aos elementos que integram o precedente, pode-se afirmar que ele é formado basicamente por duas partes: a ratio decidendi ou holding e o

dictum ou obiter dictum.

A ratio decidendi (Inglaterra) ou holding (Estados Unidos) consiste, pois, na aposição das razões que levaram determinado tribunal a julgar naquele sentido.

Os estudiosos, em suas muitas definições de ratio decidendi, levam em consideração dois aspectos que não podem aqui passar despercebidos. Nas razões de decidir, fazendo uso da literalidade da expressão, o tribunal justifica que sua decisão se baseou em determinadas questões sociológicas, históricas, ou mesmo psicológicas: são as questões fáticas determinantes para o julgamento, a que a doutrina denomina de “ratio decidendi no sentido descritivo”. Por outro lado, o “aspecto prescritivo da ratio

decidendi” enfatiza os fundamentos jurídicos, estes sim vinculadores nos casos

posteriores. Isso é indicativo de que a expressão apresenta mais de uma acepção.

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Salmond, citado por Celso de Albuquerque Silva148, faz as seguintes observações: “Um precedente é uma decisão judicial que contém dentro de si um princípio. O princípio subjacente que contém o elemento de autoridade é freqüentemente chamado ratio decidendi. A concreta decisão é vinculante para as partes, mas é a abstrata ratio deciendi que sozinha possui força de lei com relação ao resto do mundo”.

Para nós, pode-se dizer que a ratio decidendi nada mais é do que os enunciados prescritivos veiculados na decisão intitulada de precedente judicial, que tem caráter de obrigatoriedade para as decisões futuras em razão da existência de uma norma jurídica geral que lhe confere esse efeito “vinculante” e, por conseqüência, autoriza que aquela decisão ultrapasse os limites daquele caso concreto decidido e atinja outras situações semelhantes. Nesse sentido é a lição de Hans Kelsen149:

“Como a decisão que constitui o precedente apenas pode ser vinculante para a decisão de casos iguais, a questão de saber se um caso é igual ao precedente é de importância decisiva. Como nenhum caso é igual ao precedente sob todos os aspectos, a ‘igualdade’ de dois casos que a esse respeito interesse considerar apenas pode residir no fato de eles coincidirem em certos pontos essenciais – tal como, na verdade, também dois fatos que representam o mesmo delito não coincidem em todos os pontos, mas apenas em alguns pontos essenciais. Porém, a questão de saber em que pontos têm de coincidir para serem considerados como ‘iguais’ apenas pode ser respondida com base na norma geral que determina a hipótese legal (Tatbestand), fixando os seus elementos essenciais. Portanto, só com base na norma geral que é criada pela decisão com caráter de precedente se pode decidir se dois casos são iguais. A formulação desta norma geral é o pressuposto necessário para que a decisão do caso precedente possa ser vinculante para a decisão de casos ‘iguais’ ”.

Mister uma última consideração sobre o tema: a ratio decidendi não é individualizada pelo juiz ou pelo tribunal que produz a decisão, mas pela corte vinculada. Com efeito, é o juiz do caso em julgamento que tem a incumbência de

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Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação, p. 183.

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construir o precedente vinculador e delimitar o que se configura como ratio decidendi e a parte que se caracteriza como obiter dictum.

Essa questão tem gerado inúmeras discussões, notadamente sobre a perda da força vinculadora dos precedentes, e o desenvolvimento de várias teorias que se propõem a estabelecer métodos adequados de identificação da ratio decidendi, variando entre aquelas teorias menos formalistas, que acatam maior flexibilidade na identificação dos enunciados vinculadores, e outras mais ortodoxas, que concebem a

ratio decidendi como algo determinado e fixo, imutável, portanto150.

Por outro lado, o que não é ratio decidendi no precedente judicial pode ser chamado de dictum ou obiter dictum, que nada mais é do que os enunciados prescritivos veiculados na decisão posta sob julgamento, que tem efeito somente inter

partes, e que não integram o núcleo do caso decidido.

São questões decisórias incidentais sobre as quais muitas vezes o juiz ou tribunal tem de se debruçar para possibilitar, na seqüência, a análise do problema central discutido, v.g., preliminares processuais argüidas.

Dessa forma, ainda que um obiter dictum contenha fundamentação consistente, se não disser respeito à questão central posta sob julgamento, não será alcançado pela norma jurídica que concede efeito “vinculante” e, por conseqüência, só terá valor persuasivo sobre outros julgados. Nesse sentido, professa Michael Zander, citado por Marcelo Alves Dias de Souza151:

“Dicta podem ser de grande peso persuasivo, mas não podem, sob circunstância alguma, ser obrigatórias para qualquer corte. A afirmação mais cuidadosamente considerada e deliberada do Direito, apesar de feita por todos os cinco Law Lords, mas que é uma dictum, não pode obrigar nem mesmo o juiz de grau mais inferior do país. Tecnicamente, ele está livre para seguir seu próprio caminho. Na prática, é claro, as fortes decisões obiter das cortes superiores

150

Para um maior aprofundamento sobre referidas teorias, consultar Marcelo Alves Dias de Souza, op.

cit, p. 126 e ss.

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são seguidas e certamente receberão a maior atenção; mas, nos termos precisos da teoria, elas não são obrigatórias. Este é o motivo por que, tecnicamente, a Court of Appeal não está obrigada pelos pronunciamentos da House of Lords no sentido de que a Court of Appeal deveria seguir suas decisões. Tal pronunciamento não pode fazer parte da ratio da decisão da House of Lords, já que um caso na House of Lords não requer uma decisão sobre o manuseio dos precedentes pela Court of Appeal e, portanto, algo dito sobre o assunto é necessariamente obiter.”152

2.3.4 Hipóteses de não aplicação dos precedentes obrigatórios: distinguishing,

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