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UMA INTRODUÇÃO AOS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?

1.1. UMA INTRODUÇÃO AOS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO

Os primórdios do Espiritismo foram marcados por um processo de consolidação das lideranças masculinas, ainda no movimento espiritualista – anterior ao Espiritismo e que transmitiu a este como legado as suas relações de gênero conflitivas.

Esta consolidação das lideranças masculinas – enquanto validação das relações de gênero da sociedade mais ampla – ocorreu devido às condições socioculturais destas mulheres médiuns em relação ao grupo dominante na hierarquizada sociedade americana do século XIX.

E numa sociedade onde homens subjugavam outros homens43 as diferenças etno-raciais, formação acadêmica, entre outras diferenças, as relações sociais de gênero se projetavam igualmente para a academia, para as religiões, para os salões parisienses e também para o nascente Espiritismo, o qual não surge de forma institucionalizada como religião circunscrita em igrejas e nem como ciência circunscrita pelos muros de uma universidade.

Este surge de forma espontânea, clandestina, improvisada num cômodo de uma residência44, e é justamente nestes espaços domésticos45, demarcados como femininos

(BOURDIEU, 2012), sobre uma mesa46, típico utensílio (mobiliário) feminino, primeiro objeto

desta nova epifania47, que as manifestações espíritas se irrompem (ELIADE, 1992, p. 17), pela ação conjunta de médiuns femininas48 e espíritos.

Segundo M. L. V. de Castro (1988), a denominação “casa” ou “lar” – como qualificativo carinhoso ou como parte da razão social – para as instituições espíritas, ainda hoje, “não é gratuita”, pois:

43 E bem como também mulheres brancas e ricas subordinavam outras mulheres indígenas, negros de ambos os

sexos, mulheres e crianças e ou homens brancos pobres embora estivessem abaixo de homens brancos ricos.

44 Somente algum tempo depois, com a grande repercussão do fenômeno é que este será exibido em salões de festa

ou estudados em laboratórios de renomados cientistas.

45 “A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina

sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres [...].” (BOURDIEU, 2012,

p. 18).

46 No Brasil, a prática popular, quase institucionalizada, de evocação de espíritos dos mortos para resolver

perturbações e enfermidades (SILVEIRA e SILVA, 2013, p. 113) denominou-se de “mesa branca”. Esta consistia, como descreve Dona Marina da Ilha de Colares-PA, em: “A gente fazia uma mesa branca, botava umas flores,

botava um copo com água, mandava os médiuns sentarem, rezava e pronto”. (SILVEIRA e SILVA, 2013, 117).

47 Outras experiências mediúnicas se utilizarão e consagrarão o copo (de boca para baixo, rodeado de letras do

alfabeto e outros sinais), o pêndulo e a tábua-jogo “ouija”, todos com estrutura e funcionamento semelhantes entre si.

48 Os primeiros fenômenos mediúnicos foram os de efeito físico, como já havia me referido anteriormente (sobre

os “raps” e as “mesas girantes”), produzidos pelos espíritos a partir da doação de ectoplasma da/o médium, como a levitação e transporte de objetos, escrita e voz direta, e a própria materialização dos espíritos (KARDEC, 2003 [1861]).

Historicamente os lares foram os seus focos de difusão e, ainda hoje, embora exista orientação da Federação no sentido de que se evitem determinadas reuniões nos lares (basicamente as de caráter mediúnico), eles permanecem ativos [...] uma das formas

de nascimento de um novo centro é a ampliação das atividades de um lar. Esse laço

com a casa, com o doméstico é um dos responsáveis pela vitalidade da presença feminina nessa religião. (CASTRO, 1988, p. 18).

Esta afirmação de Castro confirma o processo de implantação, descrito por Brito (2013), das primeiras experiências mediúnicas, na cidade de Goiás, empreendidas por grupos espíritas constituídos basicamente de familiares, que funcionavam de forma precária, sem estatuto e/ou denominação, em residências construídas na periferia da cidade (casas de veraneio, das fazendas e das chácaras) para fugir do controle direto da Igreja e do Estado49, pois por serem reprovadas pela Igreja Católica, eram realizadas a princípio de modo velado, pelo fato de que nesse período a prática do espiritismo era considerada crime (BRITO, 2013, p. 23-25).

Este contexto sociocultural de repressão e de recolhimento ao espaço privado, bem mais que as poucas orientações de Kardec a respeito da organização de sociedades espíritas, marcou profundamente toda a estrutura e organização do movimento espírita: a arquitetura simples, com a adaptação de prédios residenciais; o mobiliário e ornamentação comuns a residências, a mesa com uma toalha alva, as cortinas de renda, os vasos de flores, o filtro de barro na entrada; o ritual de reuniões fechadas ou de acesso restrito, de portas fechadas; a aplicação de passes em câmaras reservadas, semi-iluminadas e longe das vistas de curiosos e perseguidores; a prece silenciosa.

Bernardo Lewgoy (2000) confirma o “domínio cultural da casa” enquanto modelo estruturante das associações espíritas50, afirmando que

o espiritismo é um religião do domínio do interno [...] só atua em ambientes internos, repelindo procissões e demonstrações públicas, na rua, sendo portanto, referido, basicamente, ao domínio cultural da casa. [...] Nesse sentido, o culto do evangelho no lar e as ações de caridade são as principais ações extra-centro legítimas.

(LEWGOY, 2000, p. 78).

Assim, pode-se afirmar que o Espiritismo nasceu e ainda se dá – naqueles centros espíritas cujas atividades são centradas na reunião mediúnica – em um lócus feminino cuja “dominância de valores do feminino é rica e complexa” (LEWGOY, 2000, p. 78) forja um ethos

49 A Constituição do Império (1824), no seu art. 5, embora mantivesse a “Religião Catholica Apostolica Romana”

como religião oficial do Império, em tese, permitia a coexistência de “todas” as outras religiões desde que seu culto fosse doméstico ou em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo. Isto certamente colaborou que a arquitetura das instituições espíritas mantivesse como característica essencial a simplicidade de sua fachada e a disposição de seus cômodos internos, desde sua implantação no Brasil aos dias de hoje. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 05 jan. 2015.

50 Denomino de associações espíritas aqueles grupamentos espíritas que realizam, de forma precária, reuniões de

estudos e/ou exercício mediúnico em locais improvisados como a residência de um dos membros ou um local cedido ou alugado para este fim até que seja feita sua institucionalização legal como centro espírita.

igualmente feminino (SILVA, 2006), principalmente naquelas atividades relativas à mediunidade, onde as mulheres são a esmagadora maioria, ou seja,

nos trabalhos que envolvem diretamente o corpo na comunicação com os espíritos ou com as energias de maneira mais ostensiva, ao passo que a presença dos homens

enquanto médiuns é ainda muito acanhada. Isso, obviamente, contribui para a

conformação de um determinado ethos mediúnico, pois apesar das especificidades individuais há um tom emocional coletivo permeando as reuniões onde ocorre o transe condicionado tanto pela religião, quando pelo grupo que as compõe. (SILVA,

2006, p. 160) [Grifos meus.]

Na ilustração abaixo é possível perceber, a partir da análise das fachadas, este domínio doméstico das reuniões espíritas, principalmente se for considerado o contraste com a Igreja Católica, esta claramente caracterizada como espaço público e religioso, pela sua arquitetura com crucifixo, porta larga de entrada, torre e sino. Nela aparece o Centro Espírita “Luiz Gonzaga”, fundado por Chico na própria residência da família Xavier – primeiro na residência de José Cândido Xavier e depois, a nova sede foi construída no local onde se erguia, antigamente, a casa de Maria João de Deus, genitora de Chico Xavier – em 1927, em Pedro Leopoldo, onde iniciou o exercício mediúnico.

Figura 1 - Centro Espírita “Luiz Gonzaga” (fachada alva à direita)

Fonte: Página “A Nova História do Espiritismo” 51

Para Lewgoy (2000, p. 78), os atributos e valores culturalmente atribuídos ao gênero feminino emprestam à atividade mediúnica um caráter marcadamente feminino, onde “A

passividade é necessária para o bom funcionamento da mediunidade, assim como a atitude de humildade é condição extremamente valorizada para a elevação moral e espiritual.”

51Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_waHqo7COehs/TTrWrp18TnI/AAAAAAAAHiU/H-

Assim, não obstante o movimento espírita ter nascido a partir de médiuns-mulheres, no interior de um lar, em redor de uma mesa – espaço e instrumento ideológica e pretensamente atribuído às mulheres52, e estas mulheres comuns até então, marginais em uma sociedade androcêntrica, mesmo tendo recebido certa forma de “empoderamento” 53 – contraditoriamente, não são elas, mas os homens que – até então eram apenas mero espectadores – passam a desempenhar funções de liderança, fiscalização, controle e sistematização doutrinária.

Assim, as mulheres mesmo “empoderadas”espiritualmente – pela mediunidade, ou seja, pela capacidade de comunicação com o sagrado e de produzir melhoras de saúde – continuaram rebaixadas, em relação ao seu status social, tanto na sociedade quanto no próprio movimento espírita, nos embates da institucionalização deste.

Boa parte das mulheres-médiuns era pobre, de uma etnia estrangeira, com pouca ou nenhuma escolarização, muito jovem e tida como desviada da igreja – como as irmãs Fox – o que era compreendido como premente necessidade de tutela. Estes tutores eram o extremo oposto das mulheres: homens bem sucedidos, intelectuais – homens de ciência.

Difícil dizer que estas mulheres que acumulavam caracteres tão depreciativos na escala de valores sociais foram valorizadas, tal como afirmam muitos historiadores nativos (KARDEC, 1995 [1857]; DENIS, 1988 [1903]; DOYLE, 1960 [1926]) e pesquisadores da academia (SILVA e SGARBI, 2007; BUENO, 2009; VILELA e MESSIAS, 2011; BRITO, 2013).

É neste contexto sociocultural androcêntrico que destaco algumas “her-storys” do Espiritismo.

52 Até mesmo no espaço destinado às mulheres – segundo a divisão sexual do trabalho - ainda os homens são

entendidos como “chefes de família”, numa clara definição de hierarquia nas relações de poder e gênero no interior das famílias, também em relação aos filhos e agregados. Culturalmente, exigia-se que o pai, o chefe da família fosse tratado - e respeitado seu comando - pela esposa e filhos com deferência extremada (LARA, 2001, p. 2).

53 Michelle Marinho Veronese (2013, p. 199) sustenta a tese de “empoderamento ao afirmar que “Circulando entre

o público e o privado, combinando ciência e religião e ousando negar os papéis então imposto às mulheres, estas figuras encontraram em pleno século XIX, uma forma de empoderamento.”

No documento Download/Open (páginas 32-36)