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O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ETHOS E DE LOCI SEXUALMENTE

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO?

2.3. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ETHOS E DE LOCI SEXUALMENTE

Como tratei anteriormente, a escolarização e a ocupação de cargos no Espiritismo não se deu igualmente entre os sexos.

A diferença do grau de instrução entre intelectuais (experimentadores) e médiuns, entre homens e mulheres, já existente desde a época das irmãs Fox, se reproduziu na fase de sistematização com Kardec, igualmente, no período de implantação no Brasil, e de certa forma ainda é visível nos dias de hoje, embora não de forma tão acentuada como de início, tal é a assimetria nos centros espíritas do Brasil.

Esta escolarização diferenciada entre os sexos, não só em grau mas também diferenciada na qualidade e finalidade desta, tende a condicionar ou influenciar a ocupação de cargos na hierarquia doutrinário-administrativa, no meio espírita, gerando guetos mais femininos e outros, masculinos.

Diferente da ascensão de cargos em outras religiões, no Espiritismo a ascensão de cargos não se dá tanto em função da formação teológica, não obstante os centros espíritas ofereçam cursos específicos para formação de trabalhadores/as em geral, só que geralmente não há

diplomação e nem validação de estudos, de modo a facilitar a transferência de centro espírita pelo/a trabalhador/a, por vezes, recomenda-se recomeçar por de baixo da hierarquia e pelo início dos estudos oferecidos pela nova instituição.

Muito influi na distribuição e ocupação de cargos no Espiritismo uma relação ambivalente que os espíritas têm com a sua própria formação dividida entre reverência a uma heterogênea literatura sagrada119 e uma hermenêutica da suspeita, que tudo põe em dúvida, que se justifica pelo ânimo racionalista e cientificizante – por uma busca constante de “desmagificação do mundo”120 – daí o anticlericalismo empreendido pelo Espiritismo

(LEWGOY, 2000, p. 10-11; CAVALCANTI, 2008, p. 42).

Percebe-se este anticlericalismo na fala de Dora Incontri (2012), quando se refere ao processo de institucionalização do movimento espírita no Brasil, o qual se comparado ao de outras religiões é mais democrático, segundo ela, devido à “ausência de sacerdócios e

hierarquias e pela eleição de seus membros, que ocupam cargos administrativos”.

(INCONTRI, 2012, p. 168), o que estabeleceria, em tese, a igualdade de elegibilidade entre os sexos.

Fazendo uma leitura de gênero deste anticlericalismo, Costa (2001) afirma que

o Espiritismo não discrimina a figura da mulher, como fazem os católicos, que não permitem que ela tenha acesso ao sacerdócio e à hierarquia. Já para os espíritas, em termos de prática e participação nos trabalhos, quer mediúnicos, quer assistenciais, ou de pregação, a mulher participa em igualdade de condições com o homem. (COSTA, 2001, p. 160).

Neste sentido as autoras Cléria Bittar Bueno (2009), Maria Cláudia Novaes Messias e Ana Maria Jacó-Vilela (2011) concordam com Flamarion da Costa (2001) ao afirmarem que

muitas mulheres participaram do movimento espírita desde a sua constituição [...] especialmente, porque o espiritismo possuiu uma organização institucional bastante diversa das religiões tradicionais, pois não tem uma classe sacerdotal organizada

[...] (MESSIAS e VILELA, 2011, s.p.).

É preciso frisar que, de fato, não conheci em toda minha experiência espírita e nem na literatura espírita que li qualquer proibição explicita à ascensão e ocupação de cargos, no Espiritismo, por mulheres, entretanto o mesmo não se pode afirmar em relação à dominação masculina simbólica - em especial veiculada por uma educação sexista - que sempre existiu restringindo tal movimentação das mulheres espíritas na hierarquia dos centros espíritas

119 Aqui, estão compreendidos não só os livros espíritas, mas igualmente os livros sagrados de outras tradições

religiosas, em especial a Bíblia cristã.

120 Em seu livro “A GÊNESE: os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, no capítulo XIII “Caracteres

dos milagres” e no sub capítulo “O Espiritismo não faz milagres”, Allan Kardec (2003 [1868], p. 228), em seu positivismo cientifizante, afirma que “O Espiritismo, pois, vem, a seu turno, fazer o que cada ciência fez no seu

brasileiros, em geral.

A colocação de trabalhadores/as deve-se mais a certa performance fortemente determinada pela escolarização e por certa vocação, esta última pode apresentar certos elementos considerados inatos no meio espírita, mas é significativamente condicionada pelas representações de gênero do grupo social.

Desta maneira, mesmo naquelas ocupações onde são permitidos ambos os sexos ocuparem, as representações de gênero interagem de forma endógena, através de uma escolha ou motivação pessoal e também de forma exógena, quando há uma expectativa do grupo religioso, classificando diferentemente os homens das mulheres. (BRADBURY, 2013-a, p. 1147).

A diretora de um dos departamentos descreveu-me assim seu ingresso no centro: Eu cheguei aqui, era professora. Vi as crianças na evangelização. Interessei-me. A pessoa pergunta: "Qual o programa da casa, como posso me situar?", e procura se colocar conforme seus recursos.

Na reunião de jovens, na mesa mediúnica, nos estudos doutrinários, os espíritas, na medida em que progride a sua socialização nesse sistema de crenças, vão sendo classificados e encaminhados para tarefas específicas.

Como em todas as atividades humanas há os que vão se destacar.

Nesse movimento funda-se uma hierarquia sim, mas que os espíritas pensam como nascida do mérito, da moral individual, nas próprias circunstâncias do trabalho, uma hierarquia de potencial.(CAVALCANTI, 2008, p. 47)

No exemplo, acima, percebe-se que dois importantes fatores contribuem na colocação de pessoal: a disponibilidade e a necessidade.

Os/as neófitos/as depois de um tempo de centro espírita – mas nem sempre – passam por entrevistas e certa sondagem das qualidades das vocações destes/as. Neste momento, são importadas certas características vocacionais e ocupacionais da sociedade mais ampla, aproveitando potenciais e distribuindo-os conforme as necessidades mais urgentes da casa.

Em minha primeira ocupação como trabalhador espírita, iniciei na evangelização infantil, logo no primeiro dia que apenas visitava o centro. Explicou-me o diretor dos trabalhos que eles precisavam muito de alguém que ficasse com as crianças durante a reunião para os adultos. Tentei, sem sucesso, questionar minha inexperiência e a falta de preparo prévio para desenvolver aquela empreitada inesperada para mim, ao que me respondeu “os espíritos lhe

intuirão o que fazer”, ali, na área de infância fiquei por dois anos até que formei novo substituto

para a função, desta vez um estudante de pedagogia.

No exemplo de Cavalcanti, a novata espírita já era professora e provavelmente existia a carência deste/a profissional ali. E se ela fosse formada em Administração de Empresas (uma carreira entendida como tipicamente masculina), ela teria, em qualquer centro espírita do Brasil seu acesso facilitado a um cargo de liderança por este fato? Provavelmente não.

Clara Rodrigues Sousa (2013) questiona se os caminhos propostos aos homens espíritas são mais simples do que das mulheres. Não teriam eles, por conta do desprendimento das tarefas domésticas e cuidado da prole, consideradas de responsabilidade feminina, a liberdade e a disponibilidade de tempo para se dedicar às tarefas espíritas (CASTRO, 2008; AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009), além de uma pretensa racionalidade e espírito de liderança natos nos homens, melhores qualificativos para vencer as eleições para cargos de diretoria?

Mulheres na cozinha, costurando, poucas em direções de centros. Não precisa ir muito distante. Basta questionar por que a maioria dos médiuns célebres da história do espiritismo são homens, e não mulheres. Algumas poucas podem ser lembradas, mas o que, de fato, é mais comum? Esta enorme discrepância pode ser explicada por uma simples coincidência ou será que os caminhos propostos aos homens são mais simples? A quem é dada maior credibilidade? (SOUSA, 2013, p. 2) [Grifos meus.]

Uma das respostas para tal assimetria dos sexos, no Espiritismo, pode ser como a autora (SOUSA, 2013, p. 1) afirma: tanto o movimento espírita quanto os textos fundantes do espiritismo propagam o pensamento burguês e como tal “estão imbuídos de posições sócio-

políticas propagadas” no século XIX, de modo a se reproduzir no meio espírita a mesma ordem

vigente da sociedade mais ampla: suas representações e relações de gênero, sua divisão sexual do trabalho, e etc.

Para Ivone Gebara (2010) as representações de gênero constituem-se num “conjunto de

atribuições simbólicas dadas ao sexo das pessoas”, ou seja, a partir das diferenças biológicas

das pessoas, de homens e mulheres, todos nós “fizemos cultura, e cultura sexista”, que segrega e que castra potenciais humanos. Diz a autora (GEBARA, 2010, p. 18) que estas atribuições são aprendidas, ensinadas e transmitidas culturalmente de geração em geração por inúmeras instituições sociais, como a família, a escola e as religiões.

Sobre estas últimas, as religiões, Maria José Rosado-Nunes (2005, p. 363) afirma que têm “explícita ou implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e

histórica, uma específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos”.

No próximo capítulo retornarei a este assunto, por hora importa destacar que as representações de gênero no Espiritismo, como nas demais religiões, demarcam espaços e

habitus sexualmente diferenciados.

O certo é que as mulheres estão “ausentes dos espaços definidores das crenças e das

políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas”, sendo que o forte

investimento feminina divide-se entre a ação coadjuvante nos rituais e a educação religiosa das novas gerações (NUNES, 2005, p. 363). São elas as medidoras que proveem recursos simbólicos, afetivos e religiosos para toda a família (NOVAES, 2003, p. 12). Enquanto que

Historicamente, os homens dominam a produção do que é 'sagrado' nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas.(NUNES, 2005, p. 363)

Transpondo esta realidade geral das religiões para o Espiritismo, pode-se afirmar que as representações de gênero espíritas ou o “conjunto de atribuições simbólicas” ligadas ao sexo perpassado pela literatura espírita, em toda sua tipologia121, lida individual ou coletivamente, deixa sua marca na divisão sexual do trabalho, tal como vislumbrada por Eugenio Lara:

Na história do Espiritismo poucas foram as mulheres que se destacaram, seja como intelectuais ou como ativistas. Quase sempre seu papel situa-se num plano bem subalterno, à sombra do marido. Destacam-se mais no campo assistencial, organizando chás beneficentes, administrando entidades assistenciais ou promovendo eventos promocionais.(LARA, 2001, p. 1)

Como parâmetro para análise de gênero desta baixa presença feminina na liderança espírita proponho dois relatos:

O primeiro, Mercês Cabral (2006) a partir de sua experiência docente na Universidade Católica de Pernambuco (1986 até 2005) no curso de Psicologia registra a reprodução, em sala de aula, de um habitus (comportamento condicionado culturalmente) diferenciado entre as alunas e os alunos:

turmas com, no mínimo, 80% do corpo discente composto por mulheres. No entanto, via de regra, quando solicito a uma turma que se pronuncie acerca da matéria estudada, constato que os homens (gênero masculino), mesmo que não tenham tido a compreensão adequada e necessária do conteúdo estudado, colocam-se com mais desenvoltura e segurança que as mulheres (gênero feminino). (CABRAL 2006, p. 139)

O segundo relato, de Cordelia Fine:

Pesquisadores demonstraram que as nossas representações implícitas de grupos sociais são, com frequência, extraordinariamente reacionárias, mesmo quando as convicções que comunicamos conscientemente são modernas e progressistas. No que diz respeito ao gênero, as associações automáticas das categorias masculina e feminina não são alguns fios frágeis ligados ao pênis e à vagina. Medidas de associações implícitas revelam que os homens, mais do que as mulheres, são implicitamente associados à ciência, à matemática, à carreira, à hierarquia e à autoridade elevada. Em contrapartida, as mulheres, mais do que os homens, são implicitamente associadas às ciências humanas, à família e à vida doméstica, ao igualitarismo e à baixa autoridade. (FINE, 2012, p. 30)

121 Eliane Moura da Silva (1997) assim classifica os “vários gêneros literários espíritas: biografias, literatura

infanto-juvenil [...], textos de natureza científica, filosófica e doutrinária, romances variados e, acentuadamente, os romances históricos” (SILVA, 1997, p. 5). E segundo a autora estes “romances, já clássicos da literatura espírita, apresentam modelos de romance históricos como literatura edificante [...] tem como objetivo final o esclarecimento espiritual, uma positividade de ensinamentos que procuram levar os leitores à compreensão dos mecanismos da existência e dos objetivos da vida encarnada, da trajetória humana sobre a Terra, em constante provações e sofrimentos, através dos quais se alcança o aprimoramento espiritual.” (SILVA, 1997, p. 7), e,

completa ela, “Sob este ponto de vista, é uma literatura redentora, científica e soteriológica, revelando um sentido

Neste dois relatos percebe-se a ocorrência do mesmo fenômeno: as “representações

implícitas” ou “associações automáticas” de gênero que condicionam os homens a serem

líderes e as mulheres a serem submissas em trabalhos relacionados à vida doméstica. A questão-problema da professora Mercês Cabral, é como

mulheres universitárias, nascidas, em sua grande maioria na década de 80, ainda se comportam no ambiente público com receio de expor suas ideias e conhecimentos. Agem com timidez diante da voz masculina que se levanta. Poderíamos mesmo dizer que são "pouco ousadas", ou seja, não ficam à vontade para errar ou acertar e calam- se para ouvi-la. (CABRAL 2006, p. 140)

A hipótese que ela levanta é que algumas posturas que reforçam e são reflexo da condição de submissão e sentimento de inferioridade da mulher em relação ao homem na sociedade brasileira (CABRAL 2006, p. 139).

Para a autora esse habitus sexuado (BOURDIEU, 2012) revela que as representações de gênero que perpassam as relações de gênero “ainda são praticamente as mesmas utilizadas

desde o tempo em que a mulher ainda não atuava de forma significativa no ‘mundo do público’.” (CABRAL 2006, p. 139).

O estranhamento da professora Mercês Cabral deve-se ao fato de mulheres legalmente liberadas para estudar, nascidas numa época onde a mídia e a experiência cotidiana transbordam imagens de mulheres independentes, apresentarem comportamentos de uma época onde a submissão frente aos homens era encarado como algo natural e, portanto, incontestável (CABRAL 2006, p. 141).

Estranhamento semelhante experimentei quando em um auditório com aproximadamente 100 acadêmicos de medicina, onde a proporção entre os sexos pareceu-me igualitária, no IX Congresso Nacional da Associação Médico-Espírita (AME), em Maceió-AL, 2013. Quando se solicitou que se candidatassem os organizadores do próximo congresso, nenhuma espírita, estudante de medicina, se candidatara, mesmo após dois pedidos – um da comissão eleitora e o outro meu – de que se formassem uma chapa sexualmente mista.

O mesmo não estaria ocorrendo com as lideranças femininas nos centros espíritas? As mulheres espíritas não estariam inconscientemente adotando uma postura de submissão como as alunas da professora Mercês Cabral? O ethos feminino espírita de ser (LEWGOY, 2000; SILVA, 2006; STOLL, 2003): sensível, de sofrer calada e resignada, passível e submissa como se espera de uma boa médium não estaria reforçando as velhas representações de gênero de uma sociedade patriarcal?

Em contrapartida, estas representações de gênero não estariam favorecendo os homens espíritas, que assim concorrentes femininas, não teriam seu acesso facilitado (SOUSA, 2013,

p. 2) na ascensão ao cargos de liderança nos centros espíritas? Pois, como afirma Cabral em relação aos alunos, “mesmo que não tenham tido a compreensão adequada e necessária do

conteúdo estudado, colocam-se com mais desenvoltura e segurança” (CABRAL 2006, p. 139).

Assim não bastam as afirmações de Kardec e de Denis de que o Espiritismo abre as portas da emancipação feminina, se nos centros espíritas continuam a reforçar as representações de gênero que colocam a responsabilidade da família como incumbência das mulheres e dos homens, a provisão da casa.

Gleide Silva (2006) descreve um exemplo semelhante, onde, embora seja igual o domínio do “conteúdo literário” entre homens e mulheres espíritas, a autora reconhece que há uma tendência das mulheres não desempenharem as funções de liderança:

Assim, para os quatro homens representantes desta nossa diminuta amostra, os dois deles que ocupam tais cargos [de liderança] não só leram na integra toda obra kardequiana, como demonstram um conteúdo literário e referencial acerca da

religião, de fato, espantoso. Sob este aspecto as mulheres também não se fazem de

rogadas. Todas que desempenham tais papéis não só leram os livros de Kardec e muitos outros, como demonstram um profundo conhecimento acerca do espiritismo. O interessante deste cruzamento de informações, todavia, não diz respeito a quem está ocupando estes cargos e desempenhando tais papéis, mas, sim, a quem encontra- se fora deles, pois outras três mulheres que também leram toda a obra espírita, que promovem palestras, que dão cursos, que, enfim, demonstram um igual profundo conhecimento religioso não os desempenham. (SILVA, 2006, p. 159-160).

Questiona ainda a autora que sendo o Espiritismo “uma religião que valoriza os estudos

e nível de conhecimento – muito por ser constituída por camadas médias”, o grau de

escolarização formal dos entrevistados parece não influir na ocupação dos cargos de liderança, pois “das quatro que ocupam cargos desta natureza, apenas uma tem superior completo,

enquanto seis delas que o possuem não pertencem a este quadro” (SILVA, 2006, p. 159).

A realidade apresentada pela autora parece ser bem pontual ou própria de centros espíritas centrais, de grande ou médio porte, que apresentem um alto nível de escolaridade entre seus/suas trabalhadores/as122. Neste caso não é tanto pela formação superior que se tem acesso aos cargos de liderança espírita, tal como Gleide da Silva (2006) afirma, mas é de grande relevância, na ocupação de cargos, um contrato simbólico onde as representações de gênero prevaleçam e, por consequência, formatem espaços (loci) e comportamentos (ethos) sexualmente distintos nas instituições espíritas.

122 A autora (SILVA, 2006, p. 162) destaca que “ao realizar um estudo semelhante em um centro frequentado por

camadas populares a presença da mulher no desempenho destes últimos papéis [liderança] era praticamente nula”. Ali, provavelmente não só a escolaridade maior seja dos homens, e bem como o domínio doutrinário destes

seja maior do que o apresentado pelas mulheres espíritas. Estes são os dois fatores mais recorrentes na indicação e colocação de pessoal na hierarquia de centros espíritas mais periféricos e frequentados por camadas populares.

Parece haver aí a permanência de uma dominação simbólica (masculina) que mesmo já não mais existindo as interdições que se colocavam às mulheres em exercer cargos de liderança religiosa, como o grau de escolaridade ou um sacerdócio exclusivamente masculino.

Como Cordelia Fine afirma mesmo alguns grupos sociais se mostrem conscientemente mais modernos e progressistas, as representações de gênero – como diz a autora “representações implícitas” – são “com frequência, extraordinariamente reacionárias” e conduzem a classificar as pessoas pelo seu sexo (FINE, 2012, p. 30).

Parece ser o caso de alguns grupos espíritas e da maioria dos/as escritores/as espíritas (encarnados ou não) pesquisados, como por exemplo Rodolfo Calligaris:

Enquanto o homem se conduz pela razão e precisa raciocinar para entender os fatos, a mulher, dotada de intuição, pode sentir de imediato a realidade deles.

A inteligência do homem dá-lhe maiores aptidões para as artes, as ciências e a filosofia, onde é reclamada a capacidade de concentrar-se, pesquisar, lucubrar; a da mulher, para as profissões de contato e comunicação com o público: comerciários, professoras, telefonistas, secretárias, nas quais comprovam a maior facilidade que têm para falar e escrever.(CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 47-48)

Essa dominação simbólica androcêntrica, que libera os homens e restringe as atividades e funções das mulheres ao lar, faz com que elas continuem alegando não terem disponibilidade para assumir grandes responsabilidades, porque elas têm de cuidar da casa e da família, como se pode constatar nas análises abaixo, que relacionam liderança feminina e divisão sexual do trabalho nos centros espíritas:

Obviamente, que tal análise deve ser relativizada com informações provenientes das próprias mulheres acerca de disporem de tempo escasso para um maior desempenho

de tais atividades, já que o repartem com atenção à família, ao trabalho, etc. [...] é

algo que extrapola, e muito, o âmbito do centro ou da religião, sendo estes apenas reflexos da dinâmica social mais ampla, em que o gênero, às vezes de forma muito

desfavorável à mulher, se sobrepõe a outros indicadores e variáveis. (SILVA, 2006,

p. 159-160). [Grifos meus.]

Os organizadores do Lar de Tereza são em sua grande maioria mulheres, em geral aposentadas ou donas-de-casa que em alguns casos preferiram largar o trabalho fora para dedicar-se ao centro. (CAVALCANTI, 2008, p. 44).

Nas descrições acima percebe-se que as mulheres que ocupam as funções no topo da hierarquia espírita tem dificuldades em conciliar esta jornada religiosa com mais uma dou duas

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