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3.1 Moçambique e África do Sul: do Pré-colonial ao Colonial

3.1.3 A Dominação Colonial em Moçambique e na África do Sul

Antes de finalizar este breve adendo à história de Moçambique e mais breve ainda sobre a da África do sul, importa falar, ainda que de modo sucinto, sobre os outros dois impérios supracitados – Zulu e Gaza –; impérios fundados em meados do séc. XVII e meados do XIX, respectivamente, por outros grupos Bantus que, na altura da migração, foram para as regiões

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No âmbito da abordagem comparativa, salienta-se que foram muito poucos (proporcionalmente a outros lugares para onde foram levados os escravos) os escravos que foram levados de Moçambique para o Brasil, devido à perigosa travessia na região do cabo da Boa Esperança. Entretanto, entre os séc. XVI e XVII, cerca de 10.000 escravos de diferentes regiões foram trazidos anualmente para este país.

mais ao sul do Changamire e do Mwenemotapa; portanto, mais ao sul do continente - inicialmente entre os territórios que vieram a ser, até pouco tempo, Transvaal (na África do Sul) e, hoje, Maputo (em Moçambique).

Essa região, por ser muito fértil e pelo rápido aumento na densidade populacional (o que levou à escassez de alimentos) tornou-se palco de disputas entre etnias. Nesse caso, e sendo a produção limitada às necessidades de consumo, as etnias viam-se obrigadas a expandir em busca de mais terras. É dessa expansão que nasce, efetivamente, o Império Zulu, que, primeiramente, amplia os seus territórios em direção ao norte, até Maputo (então Delagoa Bay).

O Império tinha uma organização político-militar. O chefe supremo – Tchaka – era também o chefe militar, com plenos poderes (apenas limitado pelos conselheiros que se reuniam para questões importantes). Com os seus planos expansionistas, a maioria da população, especialmente os jovens, era obrigada a servir o exército. O mesmo destino estava reservado aos prisioneiros das etnias conquistadas. Estes, quando jovens, eram recrutados para o exército, e os restantes eram feitos escravos. Assim, com um exército cada vez mais forte, Tchaka foi anexando várias outras etnias, submetendo-as à vassalagem.

Todavia, essas conquistas, embora bem sucedidas, custavam caro também ao próprio povo zulu, que tinha que observar uma série de sacrifícios, incidindo sobre os jovens, principalmente, e que, por isso, estavam proibidos de se casar e de constituir família152. Esses sacrifícios geravam revoltas internas, o que elevava o número de dissidentes. Entre os dissidentes, uma parte uniu-se a outras etnias anteriormente derrotadas em confrontos diretos com a etnia Zulu (também revoltados com os tributos cada vez mais pesados a serem endereçados ao rei) e que, em meados do séc. XIX, vieram a fundar o Império de Gaza. Outros grupos fizeram-se ao norte e se instalaram na região dos lagos Niassa e Tanganyka, mas sem antes de acabarem, durante o percurso, com o pouco que restava do Mwenemotapa. Houve também o grupo que se fixou entre a África do Sul e Moçambique, hoje, Suazilândia (terra do Suazi).

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Á altura da morte da mãe do Tchaka, muitos outros sacrifícios foram incutidos ao povo, que durante um ano não deveria cultivar a terra, beber leite, comer carne e nem manter relações sexuais; sacrifícios considerados desumanos e arbitrários, o que aumentou a revolta contra o rei, culminando com a sua morte.

Fundado por Soshangana, o Império de Gaza, com sede na parte sul de Moçambique, fez a sua expansão desde o sul ao centro de Moçambique. Para isso, fez alianças, ora com os portugueses ora com outras etnias, e conquistou os territórios das etnias não aliadas ou sob o domínio português (também não-aliados), incluindo as terras sob a vigência do sistema de prazos, que passaram a dever tributos ao rei. Sobre as conquistas de Gaza, cabe a referência de que, nessa época, meados do Séc. XIX, além dos portugueses, entraram em cena também os ingleses, vindos da parte sul do continente. Essa presença rendeu dividendos ao Gaza, que tirou proveito das desavenças entre os ingleses e os portugueses.

Entretanto, o final do século foi um período bastante conturbado para o Império de Gaza - sobretudo com a morte do seu fundador - que passou a perder muitas terras. Nesse período, e sobre essa questão, é importante destacar a mudança de postura das potências colonizadoras – especialmente depois da conferência de Berlim, em 1880 – que já não estavam muito interessadas no comércio dos escravos, mas, sim, em explorar as riquezas locais, sendo que, para isso, precisavam ter o domínio desses locais e da respectiva mão-de-obra.

Com isso, tornaram-se cada vez mais intensas as revoltas assumidas pelas etnias que não se submetiam ao domínio português153. Entre as revoltas, destaca-se a batalha de Lourenço Marques, em que os portugueses foram obrigados a refugiar-se na fortaleza e a recorrer aos navios de guerra para derrotar a resistência.

Aos poucos, os portugueses foram ganhando algumas batalhas e passaram a subjugar os reinos e a recrutar nativos para os seus exércitos, usando-os na linha, “especialmente os angolanos” (FRELIMO, 1971, 71). Nessa época e na região de Gaza, o principal objetivo dos portugueses era justamente a submissão do rei, fato que não acontece, senão depois de sangrentas batalhas, entre elas a de Coolela, em 1895, em que Gaza saiu derrotado. Com isso, a maioria dos seus chefes (tendo permanecido nos cargos) passou a prestar vassalagem aos portugueses. Contudo, a região centro-sul só foi efetivamente dominada em 1897, quando, sob o comando de Maguiguane, foi derrotado o último reduto de resistência ligado ao Império.

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Por seu lado, o Império Zulu também travava importantes batalhas - tanto em busca de mais terras (em direção ao sul), quanto em defesa dos territórios já conquistados - contra o regime bôer e/ou inglês. Ou seja, assim como em Moçambique, os originários da região que hoje comporta a África do Sul eram os Khoisan, que em finais do séc. XVI foram expulsos pelos holandeses154, quando fundaram a Cidade do Cabo.

Nos séc. XVII e XVIII, a seguir aos holandeses, vieram também os franceses, alemães e outros povos europeus – mistura que depois ficou conhecida como boers; povo falante do Afrikanser – e tentaram submeter os nativos à agricultura, mas que, à semelhança do que aconteceu com os que se convencionou chamar de Índios no Brasil, quase foram totalmente dizimados por não se prestarem a esse trabalho. Com isso, os colonos tiveram que trazer escravos de outros lugares, entre eles, da Índia e da Indonésia (o que cria um terceiro grupo étnico, os mestiços, determinante na segregação na época do Apartheid).

Ainda no Séc. XVIII, também chegam ao Cabo os ingleses e, em pouco tempo, tomam dos boers a Cidade de Cabo, criando, nessa região, a primeira cidade do que se designou de Império Britânico.

Mas essa não foi a única guerra entre os boers e os ingleses. Ou seja, com o fim da escravatura (formalmente abolida em 1885), por um lado, e, mais tarde, as notícias de que as terras sul-africanas eram ricas em diamantes e ouro (por volta de 1884), mobilizaram os então senhores de escravos (boers principalmente) a buscarem outras terras no interior do país, tomando-as dos nativos. À medida que iam dominando, iam fundando os seus próprios estados. Assim surgiram os Estados Livres de Orange e a República de Transvaal. Nessa época, a tentativa de fundar mais um estado – o Estado de Natal – porém, foi frustrada diante da resistência Zulu.

Entretanto, nem os estados boers, nem o Império Zulu resistiram às investidas britânicas do final do Séc. XIX e início do Séc. XX. Mas, a seguir, só os boers e os ingleses participam dos acordos que mudam a história do país e que culminou com a criação, em 1910, da União Sul- Africana, reunindo a Colônia do Cabo, os estados boers e o Estado do Natal (que pertencia aos Zulus), sob a regência da Grã-Bretanha. Só em 1961 é que a União Sul-Africana fica

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Os primeiros estrangeiros a chegarem a esse local foram os portugueses, em 1488, com Bartolomeu Dias, a caminho da Índia. Nessa altura, porém, não avançaram nenhuma ocupação efetiva.

independente do Reino Unido (do então Império Britânico) e se transforma na República da África do Sul.

Na realidade, a União Sul-Africana foi o berço do que, em 1917, recebeu o nome de Apartheid. Ou seja, apesar de esse regime ter sido homologado em 1948, foi na criação da União Sul-Africana que foram implantadas (e sucessivamente aprimoradas) as suas principais bases de ação, assentes numa constituição baseada na discriminação pela raça. Nesse caso, a constituição consistia em banir os “não-brancos” de todos os direitos como cidadãos sul- africanos, e, conseqüentemente, bani-los de todos os direitos inerentes à pessoa humana. A constituição, dessa forma, regia questões sobre a posse da terra, em que um pouco mais de 90% dela pertencia, por lei, aos brancos e os restantes aos negros - grupo que correspondia a cerca de 80% da população (lembrando que os mestiços não tinham direito à terra); regia a educação, em que cada criança negra “valia” apenas um décimo da criança branca; regia o emprego, em que alguns cargos não deveriam ser ocupados por “não-brancos”; regia os espaços públicos (jardins, praças, bancos das praças, calçadas, etc.) com lugares reservados “só para brancos”; e regia até questões relacionadas à “moralidade”, em que, por exemplo, não eram permitidas relações sexuais mistas.

Mas era sobre a ocupação das áreas que se materializava quotidianamente o Apartheid. A área, no caso, delimitava a fronteira entre o ser humano – na parte branca - e o ser menos humano – a parte permitida aos africanos (que, entretanto, não deveria ser tão distante para que os brancos pudessem se servir da quase gratuita mão-de-obra). Nesse caso, aos africanos só era permitido o acesso à parte branca mediante a apresentação do “passe”, que os identificava como empregados nessas áreas.

É também com base na ocupação das áreas que, inescrupulosamente, o Apartheid apresentou a chamada “lei de autodeterminação dos pretos”. Com essa norma, dividiram-se os espaços ocupados pelos africanos em 10 pequenos “estados” (os Bantustões)155 formalmente independentes - na realidade campos de concentração “independentes” – o que, fundamentalmente, serviu como uma tentativa de separar o país para que a parte branca não se responsabilizasse pela cidadania “não-branca”, além de tornar eficaz o controle sobre a movimentação “não-branca”.

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Do outro lado e paralelamente, Moçambique também vivia um período de efetiva dominação portuguesa. Isto é, os portugueses já controlavam praticamente toda a atividade política e comercial do país, especialmente através das chamadas companhias monopolistas, que eram as grandes empresas multinacionais (com o grosso de capital de outros países, de ingleses, sobretudo) que se especializavam na exploração agrícola e das riquezas naturais, tendo como base a exploração da mão-de-obra, a moçambicana, no caso, que também era “exportada” para as minas inglesas na África do Sul.

Apenas em 1975 Moçambique fica independente da colonização portuguesa. Apenas em 1990, o Apartheid foi declarado fracassado pelo então governo sul-africano.

Antes, porém, de finalizar o pequeno adendo em relação à história desses dois países, é importante destacar o papel das missões religiosas, por um lado, em Moçambique, como força apaziguadora das consciências, atenuando, desse modo, as revoltas contra a colonização; por outro, na África do Sul, como força de imersão das consciências a favor de uma certa hierarquia ontológica.

Mas, principalmente, em relação ao adendo, importa destacar que esses povos eram tidos, inclusive pelos colonizadores, como um povo culturalmente desenvolvido, donos de uma tecnologia variada e também desenvolvida; donos de um saber empírico notável; e de uma cultura acústica, usando o conceito de Lopes (2004), profunda e de extraordinária expressão intelectual.

Hoje, em contrapartida, o continente ao qual pertencem esses países é, de um modo geral, tido como o mais afetado pelas conseqüências desumanas da globalização neoliberal. Algumas outras proposições colocam-no como um continente que se tornou vítima de si mesmo e que, por tudo isso, está à margem do desenvolvimento, a despeito das chamadas “ajudas de desenvolvimento”, em grande parte patrocinadas pelas agências que incluem o FMI e o Banco Mundial e por alguns organismos não governamentais que, inclusive, financiam a adoção das novas tecnologias para os diversos setores de atividades nesses países.

Isso posto e diante da situação que se impõe, mais do que a técnica, algumas questões relacionadas à identidade e à problemática de desenvolvimento mostram-se pertinentes. Ou

seja, cabe aqui questionar se (1) não seria esse não desenvolvimento desses países – da África, em particular e também da América Latina - o resultado de uma vocação negada na exploração, na opressão, na violência e na injustiça, parafraseando Freire (2005)? Por outro lado, (2) não estaria esse desenvolvimento assente numa estrutura de exploração sem a qual a revolução industrial não teria sido possível (pelo menos nos moldes em que se deu)? (3) O desenvolvimento para o qual estes países são chamados a estar não seria um mito? Isto é, a imposição156 de uma opção de mundo sobre outro, impedindo que outros possíveis se concretizem? Assim sendo, (4) ao adotar certas posturas de desenvolvimento (representada pelo consumo de certos padrões simbólicos, tais como certo nível econômico, certo tipo de tecnologia, etc.), não estariam os países “em desenvolvimento” a adotar uma postura de aderência e de subserviência na qual não se desenvolvem, mas, sim, buscam se identificar com os países desenvolvidos? Isto é - por terem introjetado esses padrões etnocêntricos de desenvolvimento - aspiram apenas ser como os chamados países desenvolvidos?