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4.2 Política e Informatização nos Sistemas de Bibliotecas Analisados

4.2.2 Tecnologia e os Determinantes Educacionais: algumas contradições

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Fundos dispensados trimestralmente aos setores da Universidade pela Direção de Finanças para a aquisição de consumíveis (materiais de escritório, etc.) e cobrir gastos inerentes às atividades do setor, em geral.

A falta de preparo (em qualidade e quantidade) para manejar esse nível de técnicas e a falta de habilidades (não só pelos potenciais usuários dessas bibliotecas mas sobretudo pelas massas sociais) para aproveitar as vantagens oferecidas por essas mesmas técnicas estão entre os fatores de desconexão e de entropia198: situação macro que se repete nos sistemas de bibliotecas e que é trazida como preocupação pela Diretora do Sistema de Bibliotecas da UCT (África do Sul):

Na África do Sul o que existe, e acho que nos países em desenvolvimento, é uma lacuna (déficit) de formação/competências... Você sabe, Aleph [software de grande porte em uso no Sistema de Bibliotecas da UCT] é um pacote que dizem que tem isto e aquilo, precisa destas e aquelas pessoas, e que tem isto de treinamento [...] o que não faz sentido, porque há uma lacuna de formação nos países em desenvolvimento. Você não está no nível que essas companhias te propõem que você esteja. Essas companhias têm o hábito de vender para o mercado europeu, americano e australiano, onde a educação anda bem. Nos países em desenvolvimento é sempre mais duro em termos de custos com pessoal... Não se pode gastar tanto dinheiro no sistema... Eles não sabem o que são bases de dados; não sabem de nada... Nunca tiveram experiência com o sistema. Eu acho que os que vendem esses produtos devem estar claros sobre essas lacunas de formação, porque isso é um dos problemas. O acesso e uso desses jornais eletrônicos, bases de dados e o que for, é um coro de conhecimento e de competências que não se compra no mercado. E você não tem como comprar... (dirigente sul-africana – grifo nosso).

Quanto à carência no “coro de conhecimentos e de competências”, é importante notar que esta - assim como o emprego – torna-se estrutural, sobretudo se tivermos em conta o caráter demissionário do Estado em vários setores públicos, especialmente da educação.

A considerar pela forma de inserção desses países no cenário mundial, a omissão do Estado, referida acima, não pode ser entendida sem ao menos citar as mudanças que vêm ocorrendo na cena política, isto é, sem ao menos citar as mudanças que vêm ocorrendo na composição da ágora, com a participação, hoje, de organismos supranacionais, que chegam a exercer funções públicas, antes incumbidas aos órgãos instituídos e legitimados pelo voto. Esses organismos extra-sufrágio, entre eles o FMI199 e o Banco Mundial (mais econômicas do que políticas), impõem as suas exigências – que passam pelos cortes do déficit público, pelas privatizações, pelo ajuste fiscal, etc. - como contrapartida ao repasse das “ajudas ao

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O preparo para lidar com essas técnicas e as habilidades para aproveitar as vantagens correlatas aparecem como fatores determinantes.

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Vale lembrar que o FMI joga um importante papel de consultor monetário nos e entre os países membros. Nesses casos, os empréstimos (e investimentos, como conseqüência) são condicionados pelo aval (ou não) desse organismo.

desenvolvimento” (em forma de empréstimos). A influência desses organismos desloca os espaços de decisão, da esfera pública (e política) para a esfera privada (e econômica), sendo tais decisões – para as quais o Estado é forte o suficiente - tomadas em benefício dos organismos e do mercado, distorcendo, em última instância, a alocação de recursos nessas sociedades.

As “ajudas” – fragmentadas e segmentadas - para o caso dos organismos citados, a exemplo de Moçambique, equilibram a balança de pagamentos, garantem um nível de crescimento econômico considerável, mas também têm implicações sociais consideráveis, com impactos indisfarçáveis sobre a educação, o desemprego, entre outros.

Assim, o crescimento econômico (ou qualquer outro benefício, entre eles, o acesso à alta tecnologia) que, como resultado dessa “política” possa advir, servirá apenas como “anestésico” para essas sociedades, sobretudo para as massas sociais em desvantagem relativa, na medida em que – diante de um Estado passivo em relação às exigências do mercado - a sua capacidade de absorção das potenciais vantagens, como referimos acima, torna-se bastante limitada.

Do ponto de vista da tecnologia, por exemplo, a UNCTAD e UIT (2006)200 relatam que um habitante de um país de renda elevada tem 22 vezes mais chances de ter acesso à Internet do que o de um país de baixa renda. Ainda de acordo com essas entidades, há, no continente africano, apenas 1,57 computadores para cada 100 habitantes e nas Américas (sem distinção do Norte e da América Latina) 33,62 computadores para cada 100 pessoas. Com esses dados, pode-se inferir que: (a) à semelhança do que já ocorre com a renda (que tende a estar concentrada nesses países) e com o Estado omisso para os assuntos sociais, o acesso à tecnologia tenderia a estar concentrada, na medida em que o seu acesso seria diretamente proporcional à renda (ou ao acesso aos investimentos do Estado); e (b) as chances de que a modernização sirva a apenas um grupo muito limitado de co-cidadãos - que, a despeito, passam a submeter os demais à forma única e hegemônica de produção – é muito maior. Com isso, ao que tudo indica, por sua vez e no tocante ao acesso à tecnologia, as chances do indivíduo que já tem um computador (equipamento, software e serviços) adquirir um segundo são maiores do que quem não tem nenhum adquirir o seu primeiro, na medida em que esse

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Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento e União Internacional de Telecomunicações, respectivamente.

sistema tende a ser benevolente com os seus membros, na direta proporção da exclusão de quem não pode se adaptar.

Desse modo, tudo indica, também, que, apesar do potencial de desenvolvimento inerente à alta tecnologia, esta não tem virtude em si e, no que tange à inovação social, nas circunstâncias de desigualdades, como as descritas anteriormente, pelo contrário, ela acaba por perpetuar a má-formação já existente no interior de cada um desses países. Portanto, sob condições políticas socialmente desfavoráveis, as inovações técnicas acabam, elas mesmas, por se tornar extensão do mercado, trazendo, a reboque e como reféns, as massas sociais.

Do mesmo modo, a Educação201 não está isenta da ação do mercado e das influências dos organismos supranacionais acima referidos. Como setor, e tido como “não produtivo”, a educação tem sido um dos primeiros a ser negligenciado. É um dos que, invariavelmente, nos três países analisados, sofreu com as exigências de redução do déficit público e com a inanição do Estado, refletido nos cortes nas suas despesas. Nesse sentido, o Brasil, sem dados em 1990, gastou, entre 2000 e 2002, cerca de 4,2% do PIB com a educação; a África do Sul, de 5,9% em 1990 passou para 5,3%, entre 2000 e 2002; e Moçambique (que já chegou a investir cerca de 12%) gastou, em 1990, 3,1% e entre 2000 e 2002, 2,4% do PIB (PNUD, 2005).

Assim sendo, nessas sociedades, de um modo geral, tudo leva a crer que quanto mais alto o investimento em tecnologia, menos elas conseguem oferecer as habilidades e as competências técnicas e culturais necessárias para o pleno aproveitamento dessas tecnologias - habilitações, entretanto, disponíveis para certos segmentos da população que podem pagar por elas, já que o seu acesso passa a depender, em grande parte, da posição relativa dos indivíduos na sociedade. Isso corrobora a tese de Lastres (2000), citada na parte introdutória da presente tese, segundo a qual a maior gravidade para essas sociedades (e suas bibliotecas, no caso específico) não está na falta do acesso às tecnologias e às informações, mas, sim, na falta de conhecimentos para usá-las em plenitude.

Dado esse conjunto de fatores, supõe-se que, nessas sociedades, o acesso à alta tecnologia e às fontes de informação202 seja inversamente proporcional à sua utilização. Ou seja, é de se

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Aqui vista sob um ângulo mais amplo, procurando não privilegiar o saber técnico mais do que o intelectual, atentos aos preceitos de Ribeiro (2003) e outros autores citados na fundamentação teórica e conceitual, (p. 29).

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supor que a sucessiva inovação tecnológica e o aumento na produção e a disponibilização da informação sejam inversamente proporcional ao número de pessoas que dessas vantagens possam usufruir, o que pode agravar, por conseguinte, os níveis e a estrutura de exclusão em relação à renda, ao letramento e, hoje, à própria tecnologia.

Ainda sob o viés da educação, vale referir, de modo específico, que, como parte integrante e constitutiva da sociedade, o cenário aqui descrito não exclui a educação superior. As análises desse nível, como vimos no Capítulo anterior, (p. 128), mostram que esse nível não está isento das “idéias e práticas neoliberais, hoje dominantes” (CHAUÍ, 2001, p.35) e cujas evidências estão na ampliação, durante os últimos anos, do número de vagas no ensino superior nas instituições públicas, mas, sobretudo, nas privadas, isto é, com o aumento do número de instituições privadas.

Nos países analisados, o aumento de instituições privadas de ensino superior é indisfarçável no Brasil, onde 70,8% das matrículas estão no setor privado. Em Moçambique, pelos dados de 2004, as instituições públicas de ensino superior estavam com o maior número de matrículas, cerca de 68%, embora tenda a aumentar o número de instituições privadas nesse nível. Na África do Sul, de acordo com Sedgwick (2004), depois de uma vertiginosa expansão do setor privado nesse nível na década de 1990, nos últimos anos, após a reavaliação feita pela High Education Quality Committee (HEQC), muitas instituições privadas tiveram que ser encerradas, como vimos no Capítulo 3, (p. 126).

As análises sobre esse panorama tendem a confirmar a interpretação de Peixoto (2001), citada tanto na fundamentação teórica e conceitual quanto no Cap. 3, p. 28, para quem o aumento da participação privada no sistema de ensino representa uma transferência da responsabilidade da educação da esfera pública para a esfera privada, direcionado pelo mercado e de modo a estar em conformidade com as exigências das agências de fomento mercantil. Ou seja, “ ... não respeita um projeto maior de desenvolvimento econômico e social do país [Brasil], está em sintonia com as exigências estatísticas dos órgãos internacionais – Banco Mundial – e objetiva a obtenção de lucros” (PEIXOTO, 2001, s/p).

Mas diversos outros elementos fazem parte do cenário da educação superior nessas sociedades e que são parte da contradição tecnologia e educação. Entre esses elementos

citam-se, por exemplo, a privatização do próprio espaço público (MORAES, 1998; RIBEIRO, 2003;); isto é, a própria gestão privada das universidades públicas, em relação às suas principais finalidades (MILTON SANTOS, 1998; CHAUÍ, 2001). Ainda entre os elementos, cita-se também a questão da obsessão pelo conhecimento técnico e pragmático em detrimento do intelectual (WOLF203 apud MORAES, 1998; BOAVENTURA SANTOS, 1997), além do uso privado do conhecimento ali (nas universidades públicas) produzido (RIBEIRO, 2003).

Entretanto, um dos expoentes desse modelo está, justamente, no uso privado do espaço público, como demonstra o caso do regime de estudos pós-laboral na Universidade Eduardo Mondlane (UEM – Moçambique). Nesse caso, embora pública, os estudantes nesse regime chegam a pagar USD 150,00 de mensalidade204.