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Quando a capacidade criativa do Homem se volta para a descoberta de suas potencialidades e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos de desenvolvimento. Este somente se efetiva quando a acumulação conduz à criação de valores que se difundem na coletividade.

Celso Furtado (1998, p. 47).

Está, entre os objetivos do presente trabalho, identificar e analisar as políticas e estratégias (macro e micro) que nortearam a adoção dos Sistemas Integrados de Gerenciamento de Bibliotecas (SIGB) nas bibliotecas universitárias de referência empírica. Nesse sentido, os dados colhidos mostram: (a) interferência direta dos regimes políticos vigentes, com destaque para as transformações que vêm ocorrendo com o fim do Apartheid na África do Sul, com impactos no modelo de informatização e na formação do quadro de pessoal, inclusive; (b) interferência dos sistemas econômico-financeiros, com marcas do neoliberalismo nas três sociedades analisadas, nas quais a gestão dos fundos públicos é feita com privilégios dados à economia (em busca de estabilidade monetária), com cortes extraordinários nos encargos sociais e com reflexos sobre as relações de trabalho e financiamento público, como se destaca no caso brasileiro; (c) interferência também direta das agências de fomento internacional (cada vez mais importantes nos cenários políticos locais), inclusive para a aquisição de equipamentos, como revela o caso moçambicano. Assim, (d) a educação – tal como a informatização, por conseguinte – aparece como reflexo desse cenário político-econômico mais amplo, do qual, de forma específica, nem as universidades e menos ainda as suas bibliotecas estão isentas.

Os dados colhidos e até aqui relatados confirmam o pressuposto levantado na parte introdutória da presente tese, de que estes sistemas de bibliotecas, atentos às expectativas e alheios ao fato de que a adoção tecnológica é um processo endógeno à instituição, adotaram os SIGB sem que a sua capacidade de uso, por assim dizer, estivesse à altura do empreendimento. Nesses termos, e embora os dados mais específicos e relativos à capacidade institucional fiquem para mais adiante, as políticas em nível macro, por si só, já denunciam esse anacronismo institucional – em parte associados aos condicionalismos da dependência externa que acabam por influenciar, por exemplo, a contratação de pessoal qualificado para o setor público e, por conseguinte, para as bibliotecas em causa. Nesse caso, reféns, esses

setores - o próprio Estado, como conseqüência - não mais podem contratar os quadros necessários, mas, sim, os possíveis.

Esses dados reforçam a tese segundo a qual, na informatização, a técnica em si pouco explica sobre esse mesmo processo. Ou seja, a de que a técnica não é uma variável independente, mas, sim, o produto das relações sociais e de produção sobre as quais foi desenvolvida. Nos países em desenvolvimento, sendo, em geral, essas tecnologias, importadas, elas contrastam com a má-formação social local, caracterizada, entre outras e de forma absoluta, pelos baixos indicadores sociais; pelas desigualdades, isto é, e por um lado, por um grupo de co-cidadãos voltados para a modernização tecnológica (como oportunidade de mercado) e, por outro, pelo grupo cuja preocupação maior é com a melhoria imediata das suas condições de subsistência, a considerar pelos baixos padrões de renda e da grande perspectiva de empobrecimento.

Desse modo, parece-nos que a adoção da alta tecnologia nessas sociedades – em que os Sistemas Integrados de Gestão de Bibliotecas (SIGB) representam apenas mais um tipo – deve ser vista, na realidade, como parte de um processo mais amplo orquestrado pelas economias centrais em busca da homogeneidade técnica, cultural e dos processos de produção e de consumo; economias essas que, por sua vez, em espaços locais são coadjuvadas pelos grupos fundamentais, que não adquirem a tecnologia em si - já que a sua capacidade de aproveitamento fica muito aquém da capacidade instalada - mas aquilo que ela representa como símbolo de desenvolvimento208.

Nessa perspectiva e como meio, a tecnologia se apresenta como um instrumento de acumulação de capital, regido, portanto, pelo mercado e que, submersas diante de um discurso autorizado (que confunde mais do que esclarece ao abordar a informatização com privilégios dados à técnica), as sociedades em desenvolvimento são (compulsoriamente) persuadidas a informatizar-se (tendo como recurso a última de geração de software) como garantia de emancipação, quando, na realidade - sobretudo, diante de um Estado demissionário – esse processo acaba por erosar os valores e potencialidades locais.

Dessa maneira, sob o jugo do mercado - e em que o amparo do Estado não se estende a todos – é natural que, com o advento da alta tecnologia, os grupos com maior influência econômica

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Neste caso e nas sociedades em desenvolvimento, quanto maior a complexidade da tecnologia, maior é a expectativa e tanto maior é a defasagem entre a expectativa e a realidade.

e financeira tornem-se sucessivamente mais bem-sucedidos do que os demais, aprofundando as desigualdades. Nesse sentido, note-se, mesmo que os SIGB funcionem com o mínimo de falhas nos sistemas de bibliotecas e nas respectivas universidades, isso não seria sem conseqüências indesejadas para a coletividade nessas sociedades, na medida em que tal funcionamento beneficiaria diretamente um grupo social restrito. Ou seja, beneficiaria os que teriam acesso a essas universidades, visto que – e como traduz Cloete (2002), ao analisar os impactos da reestruturação do ensino superior na África do Sul e como também mostram os dados do acesso ao ensino superior nessas sociedades - “... esse nível de ensino é ainda para as elites” (CLOETE, 2002, s/p).

Parece-nos que, do ponto de vista geopolítico, a alta tecnologia se apresenta como instrumento direto de poder, substituindo-se, dessa forma, a colonização (descrita no capítulo anterior) pela “periferização”. Neste caso, a supremacia Norte-Sul não se dá pela coerção física, mas pela aceitação, em última instância, por parte do bloco subalternizado, dos valores defendidos e difundidos pelo bloco hegemônico. Uma espécie de servilismo - dissimulado e ideológico – que é, em nível local, introjetado e assumido pelos grupos econômicos e sociais fundamentais (incluindo o Estado) que assumem para si o perfil e os parâmetros de investimentos dos chamados países desenvolvidos209, a despeito de toda uma inércia burocrática e administrativa nos seus países. Aqui, o subdesenvolvimento é visto como sinônimo de atraso, daí que a alta tecnologia figure, para a periferia, como fetiche de desenvolvimento.

Por fim, do ponto de vista da coletividade, nessas sociedades - caracterizadas pela má- formação social e pela omissão do Estado para as áreas sociais - não nos parece que a alta tecnologia seja, de fato, emancipatória. Essa suposição é, de alguma maneira, também referendada por Lopes (2004) – que embora teça as suas considerações sob ponto específico da etnicidade, fá-lo sobre o mesmo contexto: o dos países em desenvolvimento, em geral, e o de Moçambique, em particular – que avança o seguinte:

É de se supor que a tolerância para com a transformação rumo à economia de mercado (de tipo neoliberal), no decurso da qual a desigualdade invariavelmente aumenta [...], será mais provavelmente obtida se for afastado o perigo de que parte substancial da população fique por um longo período em situação muito pior (LOPES, 2004, p. 95 – grifo nosso).

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Não é o que ocorre nessas sociedades, diante do perigo (do qual o autor chama a atenção) sempre iminente. Ou seja, como explicita o autor, para uma emancipação, seria necessário, no mínimo, que o sucesso de uns, em breve espaço de tempo, corresponda ao sucesso de todos – ainda que precário para a maioria – a longo prazo.

Entretanto, o que se observa é que essas maiorias, sendo funcional e tecnologicamente analfabetas, tornam-se supérfluas ao processo de produção, sobretudo se considerarmos o vertiginoso processo de precarização dos seus saberes210. Dessa forma e na melhor das situações, o indivíduo nessas condições, desqualificado, uma vez inserido no processo de produção, torna-se “aquilo” que qualquer outro pode substituir, já que no cerne, para o mercado de trabalho, está a produção de mais valor (e para a qual as inovações vêm em auxílio), acima do conhecimento dos indivíduos: paradoxo na era e sociedade do conhecimento!

Assim sendo - do ponto de vista da inovação tecnológica e organizacional, a qual essas sociedades almejam ao adotar tais tecnologias – é de se supor que, no rumo e na velocidade a que elas (as sociedades) se submetem, apenas os grupos fundamentais apossar-se-iam imediata e sucessivamente de cada nova tecnologia e dos investimentos ostensivos a ela relacionados, acabando, em última análise, por reforçar aquilo que elas (as sociedades) pretendem erradicar.

Diante disso, parece-nos que uma das opções para se fazer frente a esse desafio estaria numa moratória tecnológica211. A tecnologia tem potencialidades que devem ser reconhecidas, mas, em função do lastro histórico destas sociedades, tende a fomentar a desigualdade e a divisão na direta proporção da sua complexidade, na medida em que cada vez menos pessoas são

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A qual os sucessivos e esporádicos avanços da tecnologia se encarregam de fazer.

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Isso não significa, de modo algum, um desprezo à tecnologia, antes pelo contrário. Significa, sim, que tecnologia e contexto histórico são complementares, isto é, que a tecnologia não é imune ao lastro histórico da sociedade que a adota. A moratória, nesse caso, seria o compasso necessário a um efetivo “desconto da história” (história da própria evolução tecnológica, no caso), em que as sociedades em desenvolvimento não precisariam passar por todas as fases dessa sucessão. Enquanto isso, o período de abstinência seria o de aperfeiçoamento das aptidões e dos mecanismos administrativos capazes de maximizar o aproveitamento tecnológico, mas em solidariedade – e não em sobreposição - ao que se pretende realizar).

contempladas pelos investimentos (que representam uma parte considerável do erário) nesse setor212.

Nesse sentido, falando em moratória, de um modo geral e ao que tudo indica, é melhor optar pelo desenvolvimento das aptidões hoje (aptidões que, muito além do domínio de determinadas técnicas, primam pela valorização das especificidades locais) do que fazer a inclusão (seja ela social, tecnológica ou digital) amanhã.

Dito de outra maneira, num campo em que a técnica e o conhecimento inerente são amplamente dominados pelo Norte (geopolítico), o conhecimento enraizado (centrado na própria realidade) parece ser o caminho. Isso, sob pena, ao contrário, de um processo de “desenraizamento” perpétuo que acarreta uma sucessiva perda de identidade e da capacidade de desenvolvimento de tecnologias e de projetos efetivamente autóctones, ao mesmo tempo em que, às sociedades em desenvolvimento, não lhes será permitido pertencer efetivamente ao grupo hegemônico: seria sempre uma inserção marginal e tardia.

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Isso não afeta a coletividade ou sociedade de uma forma abstrata, mas também aos próprios funcionários das bibliotecas, neste caso específico, que rapidamente se tornam obsoletos em relação as suas próprias ferramentas de trabalho, consoante a velocidade da inovação da técnica.

CAPÍTULO 5

Caracterização dos Sistemas de Biblioteca:

Organização Administrativa e Análise Comparativa dos Modos de Gestão

Pretende-se aqui, na seqüência, fazer a caracterização e a análise mais específica dos sistemas de bibliotecas que serviram de referência empírica para o presente estudo. Para isso, leva-se em consideração os aspectos relacionados à organização administrativa e aos modos de gestão (financeira, de pessoal e seus correlatos) dessas bibliotecas, tanto no nível dos sistemas de biblioteca, como um todo, quanto no das bibliotecas setoriais/“satélites”. Além de situá-los (sistema e setoriais/”satélites”) dentro da universidade, a partir das suas mais diversas redes de relações, espera-se também elucidar as relações que, diretamente, afetam a universidade e, indiretamente, a biblioteca e, por conseguinte, a informatização.