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4.2 Política e Informatização nos Sistemas de Bibliotecas Analisados

4.2.1 Dependência Técnica e suas Contradições

Dentro das relações internacionais de produção e para a coletividade, Schmitz (1988) já alertava para o fato de que, com a automação microeletrônica (pelo menos no setor industrial, no qual está concentrado o seu trabalho), a criação de empregos fica contraída nos países importadores e se sobressai nos países “geradores de inovação”, na medida em que estes surgem nos setores de produção e venda de tecnologia e de instalação de novos equipamentos.

Mas não é só de forma direta que ocorre a drenagem dos recursos ao exterior. Ou seja, com a informatização, grande parte das bibliotecas, as estudadas inclusive, inverteram e aumentaram as assinaturas dos recursos eletrônicos, especialmente de periódicos, sendo a grande maioria estrangeira195. Sobre esse aspecto, vale referir que, se por um lado, esse acesso permite aos usuários dessas bibliotecas o acesso rápido a publicações científicas mais avançadas, por outro, atentos às suas circunstâncias, isso não os isenta de um certo mimetismo informacional e cultural-tecnológico. Pelo contrário!

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O software Aleph, adotado pela UCT, é de fabricação israelita e o Millennium, adotado na UEM, é norte- americano. Há uma defasagem, nesse caso, entre o acesso a essa tecnologia e a transferência de conhecimento inerente. Até porque o grosso do treinamento é feito em dois momentos: referentes ao modo operatório e à administração do sistema (neste caso, cabe à contratante providenciar a qualificação necessária para poder acompanhá-lo). O domínio da tecnologia exigiria um treinamento de terceiro nível. Mas, mesmo assim, em programas de código fonte fechado (como são os casos do Millennium e do Pergamum, adotados na UEM e na UFMG, respectivamente), ainda que se tenha pessoal qualificado, estas universidades não poderiam fazer modificações substanciais nos programas, ficando essas modificações a cargo dos fabricantes. Código fonte é o conjunto de termos ordenados logicamente, com instruções em uma das linguagens de programação. Uma vez compilado, transforma-se em programas executáveis (software). É fechado quando esse código não é acessível, senão aos fabricantes.

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Um caso concreto foi o do Sistema da UEM (Moçambique), que ficou conhecido como o “Processo INASP”. Sem muitos detalhes, soube-se que, em 2003, o Sistema deveria arcar com uma “suposta” dívida de USD 50,000.00 a serem pagos ao INASP (International Network for Availability of Scientific Publications, entidade britânica de promoção de acesso a publicações técnico-científicas) pelo também “suposto” acesso aos periódicos (estrangeiros) administrados por essa instituição. Vale referir que a essa altura, a UEM não dispunha (de forma mais acentuada) de praticamente nenhuma capacidade instalada para o acesso a essas publicações. Ultrapassada a questão, atualmente, o INASP negocia diretamente com o doador (parceiro da UEM) a venda desses acessos. Vale também destacar que nem todo o acesso eletrônico é pago (pelo menos diretamente). E um terceiro destaque, e quanto aos orçamentos envolvidos nas assinaturas dos periódicos, apesar de esta questão ter sido abordada, os entrevistados manifestaram o seu desejo de não revelar os valores (ou todos os valores) envolvidos.

Visto sob o plano local, por sua vez e ainda sob o signo neoliberal, é de se supor que o estigma da contradição permaneça. Isso quer dizer que, apesar da inserção, nesses locais, das mesmas tecnologias e das vantagens correlatas produzidas pelas economias centrais, esse processo, de um modo geral, acaba por romper o frágil (e assimétrico) elo social a favor de um pequeno grupo/região pioneiro na absorção desse conjunto de vantagens e dos valores dos países fornecedores dessas tecnologias, estabelecendo-se, a partir das expectativas relacionadas a essa inserção, a pauta dos futuros investimentos públicos, centrando-os na inovação tecnológica e que, em última análise, acabará por contrapor, num mesmo cenário, tecnologias avançadas e processos obsoletos, em quase todos os setores - talvez uns mais que os outros - já que a escassez dos outros determinantes (e não determinismo), além da tecnologia, é generalizada.

Essa dependência196, em especial o conjunto de contradições e em particular a distribuição seletiva de recursos a favor da vertente técnica, podem ser inferidos a partir dos processos de informatização nos sistemas analisados, como testemunham as entrevistas a seguir, desde a forma de aquisição dos equipamentos às implicações no próprio processo:

O novo software...isso enquadra no Plano Estratégico da Universidade. Então, a própria Universidade concebeu um projeto para tecnologias de informação, e a informatização do sistema de bibliotecas era um dos subprojetos. Nesse projeto nós tínhamos um financiamento para a aquisição do servidor, para a aquisição dos computadores, para o treinamento e para pagar o próprio software. Então isso foi com a cooperação da NUFFIC, que é a instituição holandesa para o Desenvolvimento Internacional. Creio que devem ter sido gastos, por aí, USD 200,000 (dirigente moçambicano – grifos nossos).

Na seqüência e no que tange à manutenção, o mesmo dirigente faz saber que:

[...] sim, a começar pela manutenção, creio que está prevista a manutenção. Além do

software, temos o servidor que tem que ser pago anualmente. Como o projeto MHO já

acabou [financiado pela NUFFIC, referido acima], a Universidade tem que encontrar outras formas de cobrir a manutenção do software e do servidor e isso já foi integrado no Orçamento Geral do Estado. Temos o problema da obsolescência tecnológica, portanto, dos meios tecnológicos, isso também já foi orçado no projeto do Banco Mundial para a renovação dos equipamentos, para treinamento, para o aumento do número de licenças, se for necessário, etc., etc. Portanto, só a partir do próximo ano -que vamos pagar as licenças - então é que vamos ver da efetividade ou não dessa planificação e do desembolso dos dinheiros [...] E o orçamento para a manutenção das licenças é de USD 20,000 e creio que outros USD 20,000 para a obsolescência tecnológica, formação, etc. Isso por ano (dirigente moçambicano – grifos nossos).

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Chamemo-la de técnico-financeira, já que as entrevistas, desde já, revelam o financiamento externo no processo de inserção tecnológica.

Até aí o contraste não se evidencia, até que se tenha noção dos limites do Orçamento Geral do Estado (OGE) que, nesse caso e um ano depois da implantação do programa, deverá suportar o financiamento da manutenção do sistema, como um todo (software, servidor, entre outros); limites esses evidenciados durante a entrevista com outro dirigente do mesmo sistema de bibliotecas (UEM – Moçambique):

[Em relação à dotação orçamentária] Normalmente eles nunca dão tudo o que precisamos porque eles também dependem do bolo grande que vem do Ministério das Finanças. Eles dão-nos algum dinheiro, mas é exíguo! É exíguo! O que temos do fundo de maneio197 (gastos correntes que nós podemos fazer) são 2 milhões de Meticais [entre USD 80,00 a 100,00] por mês e há vezes que eles não nos dão sequer. Não funciona para nada [...] o dinheiro não chega [...] Não é culpa das Finanças; não é culpa da Universidade; não é culpa do Ministério das Finanças. É da pobreza, se calhar. Os recursos acabam sendo poucos. Por isso mesmo, até agora nunca se tinha planejado a compra da bibliografia pela OGE. Todas as vezes que nós compramos bibliografia, fizemo-la atrás de outras instituições, como doadores, assim como crédito - o caso que eu falei, do Banco Mundial e da SIDA/SAREC [doadores e parceiros da Universidade] (dirigente moçambicano – grifos nossos).

Assim, portanto e nesse caso, findo o projeto inicial que financiara a aquisição do sistema, o risco de que venham a faltar recursos para a manutenção torna-se iminente; fato que poderia levar à obsolescência desse sistema. Confirmando-se o fato, isso corroboraria o estudo de Murahwi (2000), citado na parte introdutória, (p. 12), que aponta a indisponibilidade financeira para a manutenção entre os motivos da obsolescência precoce do sistema descrito em seu trabalho. Mas, por outro lado, havendo cobertura orçamentária pelo Orçamento Geral do Estado, ainda nesse caso (que representa apenas um setor do público), essa cobertura – somada aos gastos já assumidos com a montagem de infra-estrutura tecnológica, com as licenças dos sistemas operacionais, entre outros, neste ou em outros setores cobertos pelo mesmo erário – passa a ser mais um investimento a cargo do tesouro, estabelecendo-se, assim, e em relação aos outros, uma hierarquia de aplicação dos recursos e dos investimentos nessas sociedades como um todo, que, nesse sentido, tendem a seguir os padrões dos países centrais - tendo como base os seus parâmetros (supostamente universais) - a despeito dos desníveis que as caracterizam, e que, por isso, não conseguem impor um padrão de consumo que corresponda a “um grau de acumulação e sofisticação técnica” (CELSO FURTADO, 2001, p. 48) e assumem um padrão de consumo marginal e tardio.