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O AMBIENTE, A SOCIEDADE E O DIREITO EM TEMPOS DE CRISE ECOLÓGICA

1.1 A concepção da social do ambiente

1.1.4 A emergência da compreensão sistêmica do ambiente

A emergência do novo paradigma científico possibilitou sua aplicação a uma infinita gama de pesquisas realizadas nas mais diferente áreas da ciência; contudo nenhuma aplicação seria tão iluminada quanto à descoberta feita pelo químico James Lovelock.

Adotando uma compreensão eminentemente sistêmica, Lovelock, num momento de infinita inspiração, conceberia a mais surpreendente e fabulosa expressão da auto-organização e criaria, no ano de 1965, uma teoria científica ou hipótese como preferiu chamar, que seria de suma importância para que o ser humano começasse a perceber como sua conduta e seus padrões de comportamento perante a natureza, poderiam ser considerados altamente destrutivos e como isso era prejudicial para o planeta Terra como um todo, aí incluída a própria humanidade.

No início da década de 1960, a Administração Nacional de Aeronáutica Espacial dos Estados Unidos da América (National Aeronautics and Space Administration - NASA) convidaria Lovelock para trabalhar em seu programa espacial, atribuindo-lhe a missão de ajudá-los a projetar instrumentos que fossem capazes de detectar a existência de vida em Marte94.

Diante de tal missão, Lovelock indagou-se a respeito do que seria a vida e como seria possível reconhecê-la. Na busca de uma resposta para essas questões iniciais, o químico, especialista em atmosferas, aplicaria o conhecimento atualizado da teoria sistêmica, para conseguir concatenar uma resposta, chegando à conclusão de que a vida nada mais era do que 92 Idem, p. 39.

93 DE GREGORI, 1984, p. 26. 94 LOVELOCK, 1987, p. 17.

um membro da classe de fenômenos sistêmicos contínuos, capaz de diminuir a sua desordem (entropia95) interna, à custa de substâncias ou energia natural retirada do meio envolvente e posteriormente, rejeitadas numa forma decomposta, através de um fluxo constante de energia96.

De um modo geral, é inerente a todos os seres vivos a capacidade de extrair energia e matéria do meio em que se encontram, ao mesmo tempo em que descartam nele produtos residuais97.

Partindo dessa idéia, Lovelock pressupôs que em qualquer planeta a vida se encontraria permanentemente dependente da utilização dos meios fluídos – oceanos, atmosfera, ou ambos – que lhes serviria como correias de transmissão de matérias-primas e resíduos e que ao se utilizar desses meios, o sistema de vida poderia influenciá-los, alterando a sua composição. Diante de tal conclusão, evidenciou que a atmosfera de um planeta vivo seria completamente diferente da atmosfera de um planeta morto98.

Pretendendo demonstrar empiricamente o que até então não passava de mera suposição, Lovelock, auxiliado Dian Hitchcock, começou a estudar a composição da atmosfera marciana, comparando-a com a terrestre. Os resultados obtidos de tal comparação revelavam que ambas as atmosferas apresentavam uma composição química de gases muito semelhantes, embora em níveis bastante diferentes; entretanto, enquanto a atmosfera terrestre encontrava-se permanentemente afastada do equilíbrio químico, a atmosfera marciana era

95 Segundo CAPRA (1996, p. 241) a palavra entropia deriva da combinação das palavras “energia” e tropos, palavra grega utilizada para indicar transformação, evolução. DE GREGORI (1984, p. 42) define a entropia como o momento em que ocorre a realimentação do sistema (feedback) na busca do equilíbrio harmonioso, ou seja, quando o nível de desordem chega a um determinado patamar limite, o sistema utiliza seus mecanismos auto-reguladores a fim de restabelecer o equilíbrio dinâmico e a ordem sistêmica. LOVELOCK (1991, p. 19) por seu turno, salienta que a entropia é uma medida real destinada a medir a ordem ou a desordem no interior de um sistema. Quanto maior a ordem, menor a entropia, quando maior a desordem, maior a entropia. Na verdade, os três conceitos estão corretos e intimamente coligados, complementando-se.

96 Idem, p. 20.

97 CAPRA, 1996, p. 91.

constante e quimicamente equilibrada (equilíbrio estático)99.

Em outros termos, enquanto na Terra os componentes da atmosfera permaneciam reagindo entre si, na atmosfera marciana todas as reações químicas possíveis entre os gases da atmosfera, já haviam sido completadas há muito tempo atrás; não havendo, assim, mais reações químicas possíveis à atmosfera do planeta vermelho teria atingido a estabilidade química100. Desse modo, a atmosfera de Marte seria como os gases de escape, ou seja, já teria consumido toda sua energia101.

Diante de tais conclusões e retomando a análise da Terra, Lovelock chegaria à conclusão de que a única explicação viável para a persistência de sua atmosfera instável, em uma composição constante e por períodos muito mais demorados que os tempos de reação de seus gases, é a influência de um sistema de controle existente no planeta102.

Esse sistema de controle manifestava-se num processo de auto-regulação (autopoiese103) constante que opera no interior da biosfera, no qual participam desde as minúsculas algas dos rios, lagos e oceanos até as fantásticas e assustadoras erupções vulcânicas, num processo pelo qual a vida cria as condições para a sua própria existência.

Lovelock fundamentado nessas observações, concebeu então o planeta Terra como um imenso ser vivo, ou seja, um típico sistema aberto auto-regulador, onde a dissipação de calor atua como uma fonte de ordem, fazendo com que o sistema mantenha-se sempre

99 LOVELOCK, 1991, p. 25. 100 CAPRA, 1996, p. 91. 101 LOVELOCK, 1991, p. 26. 102 Idem.

103 A autopoiese foi o nome dado por MATURANA e VARELA (1973) ao complexo processo de auto- organização inerente a todo sistema vivo (seres vivo) e que envolve aspectos de desenvolvimento, aprendizagem, evolução e recriação. Consubstancia-se num processo de cognição, inerente à própria vida e que engloba em si a capacidade que os seres vivos têm de discernir, aprender, evoluir e se recriar ou se reconstruir de maneira autônoma, frente às constantes alterações a que estão sujeitos, em virtude das influências que recebem de outros elementos internos ou externos. Em termos simples, a autopoiese foi definida por MATURANA e VARELA (1980, p. 82) como sendo a auto-organização comum a todos os sistemas vivos. A autopoiese é realmente um processo muito complexo, explicado sucintamente por CAPRA (1986, p. 89) nos seguintes termos: “trata-se de uma rede de processos de produção, nos quais a função de cada componente consiste em participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede. Desse modo, toda a rede, continuamente, ‘produz a si mesma’. Ela é produzida por seus componentes e, por sua vez, produz esses componentes. Num sistema vivo

equilibrado, dentro de determinados níveis ou padrões de referência, garantindo assim a sua homeostase104 (equilíbrio oscilante) através do fenômeno da autopoiese (auto-regulação).

A existência do fenômeno da autopoiese foi demonstrado por Lovelock nas diversas maneiras pelas quais a Terra mantinha constante a composição química da atmosfera, os níveis de salinidade do mar e a constância da temperatura global, dentro de determinados limites mínimos e máximos, além dos quais a vida seria improvável105.

Em face de todas essas observações, Lovelock, auxiliado pela microbiologista Lynn Margullis, publicou, em 1972, sua teoria, a qual deu o nome de Hipótese de Gaia, em homenagem a deusa grega da Terra106.

O próprio Lovelock descreve sua teoria da seguinte forma:

Definimos então Gaia como uma entidade complexa que abrange a biosfera, os oceanos e o solo da Terra; na sua totalidade, constituem um sistema cibernético ou de realimentação que procura um meio físico e químico ótimo para a vida neste planeta. A manutenção de condições relativamente constantes por controle ativo pode ser descrita pelo termo “homeostase”107.

Em termos mais completos e atualizados, diria que:

Gaia, como um ser planetário total, tem propriedades que não são necessariamente perceptíveis pelo conhecimento apenas das espécies isoladas ou das populações de organismos que vivem juntos.

A hipótese de Gaia, quando a introduzimos na década de 70, pressupunha que a atmosfera, os oceanos, o clima e a crosta terrestre fossem regulados em um estado propício para a vida por causa do comportamento dos organismos vivos. A hipótese de Gaia dizia especificamente que a temperatura, o estado de oxidação, a acidez e determinados aspectos das rochas e das águas são mantidos constantes em qualquer momento e que esta homeostase é sustentada por processos ativos de realimentação, operados automaticamente pela biota. A energia solar mantém condições agradáveis e satisfatórias para a vida. As condições são constantes apenas no curto prazo e evoluem em sintonia com as necessidades cambiantes da (...), ‘o produto de sua operação é sua própria organização’”.

104 De acordo com DE GREGORI (1984, p. 43) homeostase nada mais é do que a flexibilidade inerente a qualquer sistema ou, como prefere CAPRA (1982, p. 266) a existência de diversas variáveis e opções que o sistema possui para interagir com os demais elementos do meio em que se encontra e, assim, manter seu equilíbrio. Aclarando ainda mais sua formulação conceitual, CAPRA (1996, p. 51) diz que a homeostase é o mecanismo regulador que permite aos sistemas manter-se num estado de equilíbrio dinâmico, com suas variáveis flutuando entre determinados limites de tolerância.

105 A forma mais utilizada pelos teóricos para ilustrar a auto-regulação do planeta, baseia-se na observação do ciclo do dióxido de carbono (CO2) na biosfera (CAPRA, 1996, p. 93 e LOVELOCK, 1987, p. 93-95).

106 CAPRA, 1996, p. 92. 107 LOVELOCK, 1987, p. 27.

biota enquanto ela evolui. A vida e seu ambiente estão ligados tão intrinsecamente que a evolução diz respeito a Gaia e não aos organismos ou ao ambiente tomados em separados108.

Através da teoria desenvolvida por Lovelock e seus colaboradores, a “Mãe-Terra” demonstrava toda sua capacidade de permanecer em condições compatíveis com a perpetuação do conjunto de referência e, assim, garantir a continuidade da vida na biosfera109.

Na esteira de sua construção teórica, Lovelock vislumbrou, ainda, que apesar de Gaia ser auto-reguladora, muitos fatores afetavam seu funcionamento, dentre eles a humanidade, o ritmo de seu progresso e a poluição dele oriunda, estavam influenciando a atividade sistêmica do planeta, podendo levá-lo, num período não muito longo de tempo, a não mais conseguir manter a estabilidade e o equilíbrio indispensáveis à perpetuação da vida no interior do sistema110.

A Teoria alertava para o fato de que Gaia apresentava determinadas áreas consideradas vitais para a manutenção do seu funcionamento sistêmico, que deveriam ser preservadas da degradação. Estas áreas concentravam grande parte da biosfera, a saber: os oceanos, a atmosfera, os estuários, as florestas tropicais e as zonas úmidas e a lama das plataformas continentais, bem como os seres vivos que nelas habitam111.

As conclusões do estudo desse imenso sistema vivo planetário, demonstravam, portanto, todo o seu funcionamento ordenado, destacando, ainda, a atuação de uma infinidade de fatores no seu interior112, dos quais destacou especialmente o papel da humanidade e da capacidade que tem de influir, através da forma, como se relaciona com o meio ambiente, em todo o funcionamento do ciclo de Gaia, ou seja, do Planeta Terra, seu único lar.

108 Idem, 1991, p. 17.

109 CAPRA, 1996, p. 82, 90-98.

110 LOVELOCK, 1987, p. 119-133; 1991, p. 145-172. 111 Idem, p. 119-133.

112 Destaque-se que os fatores externos, tais como os níveis de atividade solar, são indispensáveis para a perpetuação dos padrões de referência do sistema planetário. Contudo, no estágio atual da ciência e da técnica é impossível para o ser humano interferir nesses fatores. Por outro lado, a humanidade exerce papel determinante em relação aos fatores internos, nos quais se focam a análise do presente trabalho, haja visto os objetivos nele

Essa nova compreensão holística dos fenômenos naturais e sociais, bem como das relações e interações meio ambiente – sociedade, tem levado a humanidade, mesmo que de forma lenta e gradual, a rever seu posicionamento perante o meio em que vive e se insere, de modo a buscar novas formas de se comportar e de se relacionar com ele, procurando não criar ou ao menos evitar que ocorram grandes desequilíbrios sistêmicos, que acarretem intensas adaptações no interior de Gaia, capazes, inclusive, de tornar impossível a continuidade da vida humana na biosfera. O ser humano passou a visualizar a sua dependência perante a biosfera, seu único lar e a necessidade de se relacionar harmoniosamente com ela113.

A humanidade começa a visualizar a necessidade que tem de restabelecer e manter o equilíbrio que vem abalando a biosfera, corrigindo os erros que cometeu no passado114. A escolha é só dela e se for feita de maneira equivocada, “o ser humano, filho da Mãe-Terra, não seria capaz de sobreviver ao crime de matricídio, se um dia o cometesse. A punição para isso seria a autodestruição.”115

O alerta servia para mostrar a gravidade da crise ecológica que já havia sido notada, bem como para mostrar a necessidade urgente de se rever o relacionamento da humanidade com o meio em que se insere.

De um modo geral, a emergência da concepção sistêmica do ambiente e a tomada de consciência da crise ecológica é deflagrada a partir da constatação de que as condições tecnológicas e industriais, bem como as formas de organização e gestões econômicas da sociedade estão em conflito com o meio em que se desenvolvem e evoluem, acarretando o declínio da qualidade de vida que se propunham a melhorar116.

Da mesma forma, essa conscientização acarreta o reconhecimento de que a obcessão

perseguidos. 113 SILVA, D., 2003, p. 109. 114 TOYNBEE, 1987, 713. 115 Idem, p. 714. 116 LEITE, 2003, p. 21.

humana pelo progresso subordina a sociedade contemporânea a viver permanentemente diante do risco da ocorrência de catastrofes ambientais terríveis e até fatais.

Foi partindo dessas constatações, que o sociólogo alemão Ulrich Beck vislumbrou um novo padrão ou modelo social, ao qual deu o nome de “sociedade de risco”117, onde a percepção e a convivência cotidiana com os riscos criados pela própria humanidade, alterariam enormemente seus padrões de comportamento e, conseqüentemente, suas formas de ordenamento sócio-jurídico.