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O AMBIENTE, A SOCIEDADE E O DIREITO EM TEMPOS DE CRISE ECOLÓGICA

A) Princípio da custódia coletiva

À medida que a concepção sistêmica do Planeta Terra ganha fôlego e aprofunda-se na inconsciente coletivo, há uma acentuada aceleração nos esforços de povos e governos para se alcançar entendimentos comuns, sobre assuntos que afetam o futuro da humanidade, dentre eles, a conservação do equilíbrio ambiental, tido como condição intrínseca, à materialização de qualquer futuro possível.

Com a unificação física do planeta verificada no século que passou e o reconhecimento da interdependência de todas as formas de vida que nele vivem, a história da humanidade passou a ser encarada como a história de um só povo, ligado por vínculos invisíveis de suma importância entre si e com o meio em que habita.

O longo e vagaroso processo civilizatório do caráter humano desenvolveu-se de modo esporádico, desigual e reconhecidamente injusto, quanto às vantagens materiais que proporcionava. Porém, dotados da riqueza de toda a diversidade genética e cultural que evoluiu ao longo das eras passadas, os habitantes da Terra são hoje desafiados a recorrer à sua herança coletiva para assumir, de maneira consciente e sistemática, plena responsabilidade pelo traçado de seu futuro.

Não seria realístico imaginar que a visão do próximo estágio do avanço da civilização, possa ser formulada sem um reexame minucioso das atitudes e premissas

337 O presente item foi elaborado de acordo com as exposições do professor Rogério PORTANOVA, nas aulas das disciplinas Ecologia Política e Teoria Social e Ambiente, ministradas respectivamente nos anos de 2002 e 2003, no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC) bem como na palestra sobre “O princípio da custódia coletiva no Direito Ambiental: os Direitos Humanos do século XXI”, proferida durante os “Seminários de Direito Ambiental Internacional”, realizados na cidade de

subjacentes às atuais abordagens do desenvolvimento sócioeconômico. No nível mais óbvio, essa reflexão terá de levar em conta questões práticas relacionadas à política, à utilização dos recursos naturais, às normas de planejamento, às metodologias de implementação e à organização. Mas, à medida que essa reflexão se aprofundar, rapidamente virão à tona questões fundamentais relacionadas com os objetivos de longo prazo que se têm em vista, as estruturas sociais exigidas, as implicações para o desenvolvimento de princípios de justiça social, também com a natureza e o papel do conhecimento na produção de mudanças duradouras. Na realidade, este reexame encontra-se em pleno processo de desenvolvimento e está orientado para a busca de um amplo entendimento da própria natureza humana e da redefinição do papel do ser humano no mundo em que habita.

O reconhecimento de que o conjunto da humanidade e do meio ambiente em que se insere é uno e indivisível ,oriundo da compreensão sistêmica dos fenômenos, bem como do fato de que os padrões de comportamento e as ações humanas, hoje globalizadas e potencializadas pelos avanços científicos e tecnológicos, exercem influência determinante sobre o funcionamento de todo o sistema planetário, faz com que cada um e todos os membros da raça humana assumam neste mundo, um papel de guardião do todo.

Emerge também a noção de que os resultados de uma conduta individual pode ter alcance mínimo e ao mesmo tempo, um efeito coletivo gigantesco338, diante do que, os indivíduos tornam-se coletivamente responsáveis pela custódia do futuro do Planeta e, consequentemente, de seu próprio futuro.

Decorre desse princípio, a necessidade de se meditar individual e coletivamente, de forma prévia e profunda, a respeito de cada ato que se pretenda realizar e de cada padrão de comportamento que se pretenda adotar, com vistas a evitar que das atitudes ou comportamentos realizados, decorra um ônus pesado demais para todos.

Florianópolis/SC, no dia 05 de setembro de 2003.

O princípio da custódia coletiva também cria, para cada pessoa, o direito fundamental de esperar que as condições essenciais à sua realização humana, dentre eles, o desfrute de um ambiente saudável e equilibrado, tenham a proteção de leis nacionais e internacionais e sejam respeitados coletivamente.

Quando aplicado na seara ambiental, o princípio da custódia coletiva implica no reconhecimento da solidariedade para com o futuro, expressada no conceito de direito intergeracional339.

O reconhecimento social da eqüidade intergeracional decorrente deste, direito se materializou inicialmente no princípio da utilização racional dos recursos naturais, de modo que o uso desse patrimônio comum pudesse ser feito com vistas a beneficiar tanto a geração presente como as gerações futuras (direito intergerações).

A declaração expressa dessa eqüidade entre as gerações humanas foi insculpido pela primeira vez no preâmbulo e no princípio número 2, da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano adotada em Estocolmo, no ano 1972. Consta igualmente de maneira implícita no princípio do desenvolvimento sustentável, previsto no princípio número 3, da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, adotada no Rio de Janeiro, em 1992, que estabelece que “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido, de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e ambientais de gerações presentes e futuras”.

Ost, esmiuçando o conceito de humanidade proposto por Kant, conclui que a definição de humanidade compreende intrinsecamente em si a continuidade do ser humano340; daí, a necessidade de preocupação com os direitos das gerações que ainda estão por vir.

De acordo com Derani, partindo dessa premissa, é possível afirmar que humanidade 338 OST, 1997, p. 305.

339 STEIGLEDER, 2003, p. 152 e seguintes. 340 OST, 1997, p. 314-318.

se realiza realmente, apenas quando garante a manutenção das bases vitais para a produção e

reprodução do próprio ser humano e de suas atividades, garantindo igualmente, uma relação

satisfatória entre os seres humanos e destes, com o ambiente em que se inserem341.

Weiss, por sua vez, pontua que a eqüidade intergeracional estabelece-se em duas modalidades de relações: a primeira, envolve a relação da geração presente com outras gerações da espécie humana e a relação destas com o sistema natural, do qual faz parte. Pressupõe-se que a “espécie humana está vinculada integralmente às outras partes do sistema” e sendo o homem a única espécie capaz de planejar significativamente sua relação com o ambiente, pode utilizar esta capacidade tanto para a construção de uma base sustentável como para o exaurimento dos recursos naturais. A segunda relação fundamental apontada por Weiss, matem-se entre gerações diferentes da espécie humana, denotando o vínculo existente entre todas as gerações passadas e futuras entre si, no uso do patrimônio comum da Terra, a partir da premissa de que todas elas possuem um espaço igual na relação com o sistema natural.

Leite e Ayala afirmam que existem três princípios informativos na base da eqüidade intergeracional e que permitem compreender de forma mais exata, essa igualdade complexa, que envolve a custódia coletiva, em relação ao sistema planetário e de onde decorre uma inafastável solidariedade para com o futuro: (i) o princípio da conservação de opções, segundo o qual “cada geração deve conservar a diversidade da base dos recursos naturais e culturais, sem diminuir ou restringir as opções futuras de avaliação das futuras gerações na solução de seus problemas e na satisfação de seus valores, e que deve ser comprável com a diversidade que foi usufruída pelas gerações antecedentes”; (ii) o princípio da conservação da

qualidade, segundo o qual cada geração deve manter “a qualidade do planeta para que seja

transferida nas mesmas condições em que foi recebida, bem como a qualidade do planeta que

seja comparável àquela usufruída pelas gerações passadas”; (iii) o princípio da conservação

do acesso, segundo o qual “cada geração deveria prover seus membros com direitos iguais de

acesso ao legado das gerações passadas e conservar o acesso para as gerações futuras”.

Sem dúvida, a compreensão da eqüidade intergeracional estabelece direitos para as gerações futuras, aos quais correspondem apenas deveres para as gerações presentes. Cabe, portanto, às gerações presentes aceitar responsavelmente seu papel de guardião, cuja tarefa é exercer a custódia do Planeta. Assim, a geração presente deve zelar para que as expectativas das gerações futuras se realizem, sobretudo limitando sua atuação incidente sobre o ambiente, mediante a adoção de comportamentos mais precavidos e prudentes.

Efetivamente, a custódia coletiva ambiental resulta do fato de que numa compreensão sistêmica do meio ambiente, em que convergem infinitas causas e possibilidades, tudo é possível, tanto as piores catástrofes quanto as evoluções positivas e flexíveis e que, diante disso, cada vez mais os equilíbrios naturais dependerão dos comportamentos e dos níveis de intervenção dos seres humanos no meio, sendo imprescindível a adoção de uma política voltada, em todos os sentidos, para o destino da humanidade342.

B) Princípio da cooperação

O princípio da cooperação decorre do próprio caráter sistêmico que envolve a questão ambiental. “Hoje ninguém mais ignora a existência das dimensões transfronteiriças das atividades degradadoras exercidas no âmbito das jurisdições nacionais e urge a necessidade de uma troca de informações e de outras formas de cooperação entre os Estados,

342 GUATTARI, 1995, p. 52.

em face da questão ambiental.”343

Tal princípio encontra-se enunciado nos princípios 7, 9, 12, 13, 14, 18 e 27, todos da Declaração adotada na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Carta da Rio 92), bem como no artigo 5º e 18, da Convenção da Biodiversidade344 e prescreve, de um modo amplo e geral, que os Estados devem cooperar entre si, visando à conservação e à utilização sustentável da natureza, pressupondo, portanto, uma compatibilização entre liberdade individual e necessidade social.

Conforme salientam Leite345 e Derani346, o princípio da cooperação encontra-se intimamente vinculado aos princípios da participação e da informação, uma vez que para atingir seus objetivos, pressupõe o exercício de uma cidadania participativa e, mais que isso, uma co-gestão dos diversos Estados na preservação da qualidade ambiental.

Segundo Leite, integram o ideal de efetivação da cooperação internacional, elementos como:

1) o dever de informação de um Estado aos outros Estados, nas situações críticas capazes de causar prejuízos transfronteiriços;

2) o dever de informação e consultas prévias dos Estados a respeito de projetos que possam trazer prejuízos aos países vizinhos;

3) o dever de assistência e auxílio entre os países, nas hipóteses de degradações importantes e catástrofes ecológicas;

4) o dever de impedir a transferência para outros Estados de atividades ou substâncias que causem degradação ambiental grave ou que sejam prejudiciais à saúde humana – é o problema da exportação de poluição347. Considerando que a crise ambiental tenderá a exigir uma cooperação compulsiva entre os Estados, em sua ação multilateral, parece inevitável um aprofundamento diplomático nas relações internacionais, no que tange à questão ambiental. Nessa perspectiva, o princípio da cooperação evidencia que seu fundamento maior é alcançar o consenso entre diversos

343 LEITE, 2003, p. 52.

344 Assinada e ratificada pelo Brasil; aprovada pelo Decreto Legislativo n° 2, de 03.02.1994 e promulgada pelo Decreto n° 2.519, de 16.03.1998.

345 LEITE, 2003, p. 52. 346 DERANI, 1997, p. 157. 347 LEITE, 2003, p. 52.

grupos sociais, impondo-se uma adequação de diversos interesses relevantes348.

Por meio desse princípio, o Direito Ambiental procura fazer com que os indivíduos, as organizações, as instituições e os Estado, saiam de um estado de meros beneficiários e passem a assumir a responsabilidade na gestão dos interesses das gerações presentes e futuras.