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O AMBIENTE, A SOCIEDADE E O DIREITO EM TEMPOS DE CRISE ECOLÓGICA

B) A Deep Ecology ou econcêntrismo

Em meados do século XX, mais precisamente a partir da década de 1960 e mais profundamente na década de 1970, com a emergência da concepção sistêmica da vida e dos fenômenos naturais, materializada especialmente na teoria de Lovelock sobre o funcionamento do Planeta, começaria a emergir uma nova forma de concepção humana da natureza192.

Daí fixa-se a idéia do ambiente como sistema (ecossistema) 193, “que como quaisquer

190 SENDIM (1998, p. 91) acrescenta que a compreensão da natureza formulada com fundamento no antropocentrismo-utilitarista só permite a recuperação da lesão ambiental, se o custo de tal atividade for inferior ao valor atribuído ao bem natural a recuperar.

191 Conforme pontua LEITE (2003, p. 70) quando o biólogo alemão Haekcel propôs, em 1866, uma disciplina científica com o objetivo de estudar a relação das espécies animais com seu mundo orgânico e inorgânico, atribuindo-lhe o nome de “ecologia” – síntese das palavras gregas: oikos (casa) e logos (estudo) – para designar a “ciência da casa”, não incluiu, a princípio, em seu objeto de análise, o ser humano. Tal fato somente ocorreu posteriormente, quando se partiu para a “sinecologia”, que trabalhando com um conceito mais amplo, passou a tratar do estudo das relações entre as diversas comunidades animais ou vegetais e o meio ambiente, através da integração e interação de diversas áreas do saber.

192 SENDIM, 1998, p. 78.

193 Conforme pontua SENDIM (1998, p. 78) o termo ecossistema foi proposto em primeiro lugar por Tansley, em 1935 e embora o conceito não seja tão recente, é possível encontrar alusões à idéia da unidade dos

sistemas – são essencialmente um conjunto de elementos e de processos funcionais que, pela sua interação, tornam possível a prossecução de objetivos sistêmicos essenciais: a sobrevivência, a diferenciação, a auto-regeneração e a reprodução”194.

Da idéia do ambiente como sistema, emergiram conceitos até então ignorados na compreensão social do ambiente. Conceitos como os de interdependência, capacidade de

auto-regulação, capacidade de auto-regeneração e capacidade funcional ecológica dos elementos ambientais195, antes eclipsados pela proeminência da capacidade de uso ou aproveitamento humano do ambiente.

O conceito de interdependência conduz à idéia de integração e dinamicidade das relações entre as espécies e o meio ambiente, que por sua vez compreende as noções de globalidade e processualidade.

O noção de globalidade ensina que tudo constitui sistema da natureza, estabelecendo- se uma interdependência de todos os elementos naturais, a partir de uma abordagem holística, que vislumbra o Planeta Terra como “um único ser vivo, em procura constante do seu equilíbrio homeostásico”196.

Sendim destaca os aspectos de interdependência do ambiente pontuando que

(...) a principal função do conceito de ecossistema é, precisamente, a de realçar, por um lado, as relações causais de interdependência entre seu componentes – por exemplo entre a comunidade biótica e abiótica ou entre as componentes autotróficas e heterotróficas – e, por outro lado, entre os vários ecossistemas. Note-se que esta interdependência não é circular ou linear, mas antes múltipla: os elementos do sistema têm várias ligações recíprocas (...) Desse modo, os sistema ecológicos são sistemas abertos, semelhantes a zonas autônomas de uma complexa teia global: a biosfera. Em conseqüência: uma perturbação num elemento pode afastar qualquer outro componente do sistema em que está integrado, e a desestabilização de um ecossistema pode gerar instabilidade nos sistemas vivos a ele organismos e do ambiente (assim como a unidade entre o ser humano e a natureza) tão remotamente como se queira. Contudo, foi só a partir do século XIX que começaram a aparecer, de forma paralela, exposições formais na literatura acerca da idéia de ecossistema, tal como é compreendida hoje.

194 SENDIM, 1998, p. 78. 195 SENDIM, 1998, p. 81-84.

196 Conforme OST (1997, p. 107) valendo-se da teoria de LOVELOCK, que segundo ele constitui o eixo central do paradigma ecológico emergente. No mesmo sentido, CAPRA, 1996, p. 36.

relacionados197.

A processualidade, por sua vez, demonstra que “a integralidade dos meios de vida se baseia em equilíbrios complexos, em ciclos de reprodução e em faculdades de regeneração, mais do que na conservação estática dos espaços, dos recursos e das espécies”198. Nesta idéia destacam-se as inúmeras trocas físicas, químicas, energéticas e biológicas que se estabelecem no âmbito dos ecossistemas e entre estes, com vista à manutenção de sua integralidade, diversidade, e sobretudo do seu potencial evolutivo. Extraem-se também vários princípios da representação dinâmica dos fenômenos naturais: as idéias de ciclo, de evolução, de irreversibilidade e de equilíbrio dinâmico199.

A capacidade de auto-regulação parte do pressuposto de que os sistemas ecológicos mantêm-se em equilíbrio dinâmico, capaz de assegurar a automanutenção e a auto-regulação das suas funções básicas. Sendim refere que esta capacidade

Significa, por um lado, que uma intervenção humana no ambiente pode ser tolerada sem determinar necessariamente um perda da capacidade funcional do ecossistema. Mas significa, por outro, que os sistemas ecológicos têm limites de tolerância aos fatores limitantes, que uma vez ultrapassados, determinam a perda do equilíbrio dinâmico. Assim, o que se revela essencial, como objetivo do sistema jurídico (...) é a preservação da capacidade de auto-regulação dos sistemas ecológicos200.

A capacidade de auto-regeneração constitui a tendência que tais sistemas têm para, quando alterados, regressarem por si mesmos a um estado de equilíbrio (princípio da homeostasia). Portanto, algumas lesões ambientais podem ser regeneradas sem qualquer intervenção humana. Por outro lado, uma lesão que determine a perda ou a alteração significativa da capacidade de auto-regeneração, é tendencialmente grave, visto que pode ser irreparável se o sistema afetado não for suscetível de recuperação, mediante intervenção

197 SENDIM, 1998, p. 81-82. 198 OST, 1997, p. 105. 199 Idem, p. 108.

humana201. Aqui, deve-se ter em conta que a ação humana deve ser realizada com vistas a não perturbar ou a perturbar de forma mínima, os ciclos naturais que permitem a renovação e a regeneração do ambiente, destacando-se que, como regra, a natureza nunca se repete e é apenas em nível de percepção humana que se forma a impressão de retorno ao estado anterior.

Já a capacidade funcional ecológica inerente a todo sistema ecológico, manifesta-se nas funções exercidas pelos componentes ambientais, na manutenção do equilíbrio ecológico que redunda em qualidade de vida e bem-estar social. Seu reconhecimento resulta das descobertas científicas da Ecologia e da Biologia e centra-se nas funções ecológicas que os elementos naturais têm no ecossistema a que pertencem ou em outros que dependam dele. Aqui, vale destacar que quando existe plena capacidade funcional ecológica, isto é, quando todas as funções ecológicas estão asseguradas, existe um estado de equilíbrio dinâmico ecológico auto-sustentado202.

A hipótese sobre o funcionamento de Gaia certamente serviu para destacar todos esses aspectos antes ignorados, mas ao ser analisada conjuntamente com os comportamentos e padrões adotados pela humanidade, ao longo da história, revelou a insustentabilidade dos modos de vida do ser humano, fez emergir a percepção da crise ecológica e a constatação da sociedade de risco ambiental.

Tais fatos correlacionados influenciaram o surgimento de diversos movimentos sociais, que não guardavam uniformidade ideológica, mas que tinham um consenso único de que a Terra estava realmente ameaçada. Essa percepção deu impulso ao surgimento dos movimentos ambientalistas.

Tais movimentos surgiram quase que simultaneamente com as descobertas científicas que revelaram a crise ecológica e se inspiraram na filosofia tradicionalmente denominada de Deep Ecology ou Ecologia Profunda, consistente numa filosofia de caráter

ecocêntrico, cuja principal proposta é o retorno do ser humano à natureza, através da retomada da aliança com a Terra, hoje comprometida pela urbanização e pela industrialização203.

Seus adeptos afirmam que “o homem moderno se distanciou da natureza e se tornou negligente”204; é preciso agora, antes que seja tarde, que retorne à natureza e reconheça que sua existência depende dela, já que ela é a fonte de toda a vida. De acordo com Serres este reconhecimento implica

(...) acrescentar ao contrato exclusivamente social a celebração de um contrato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio e possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e o respeito, em que o conhecimento não suportaria já a propriedade, nem a ação o domínio, nem este os seus resultados ou condições estercorárias. Um contrato de armistício na guerra objetiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita – o nosso atual estado – condena à morte aquele que pilha e o habita sem ter consciência de que, a prazo, se condena a si mesmo ao desaparecimento205.

Caracteriza-se pela defesa incondicional da natureza, já que esta possui um valor em si mesma, independentemente da utilidade econômica que tem para o ser humano que nela apenas habita. Assim, toma a humanidade como parte inseparável, física, psicológica e espiritualmente do ambiente em que vive206.

No contexto da Deep Ecology

o princípio do antropocentrismo é substituído por um princípio biocêntrico, não no sentido em que o valor da Natureza se substitui ao valor do Homem, mas sim no sentido em que o valor radica na existência de uma comunidade biótica em cujo vértice nos encontramos. Assim, a natureza passa a ter um valor intrínseco e a medida moral das ações deixa de ser a utilidade para o homem e passa a ser a sua utilidade biótica. Numa palavra: de acordo com uma ética ecocêntrica holística uma ação é boa quando tende a preservar a estabilidade e integridade da Natureza e é má quando não contribui para esse objetivo207. 202 Idem, p. 83-84. 203 PELIZZOLI, 1999, p. 25. 204 SERRES, 1991, p. 79-82. 205 SERRES, 1991, p. 65-66. 206 AVELINE, 1999, p. 9. 207 SENDIM, 1998, p. 94.

Agora, a natureza é tomada como majestade mítica do sagrado. Personifica-se na figura da Deusa grega da Terra: Gaia, regente de toda a vida. Logo, o primeiro pressuposto dessa corrente filosófica é fazer da natureza sujeito de direitos, superando-se a concepção de que a natureza é mero objeto de direitos, a fim de reconhecer-lhe uma dignidade própria, para fazer valer direitos fundamentais oponíveis aos humanos. A partir desta premissa, estabelece- se um universo mental ecocêntrico, superando-se o humanismo que, pelo menos desde o Renascimento, fazia do homem a medida de todas as coisas. Com isso, o ser humano perde “o duplo privilégio de ser fonte exclusiva do valor e seu fim. A medida de todas as coisas alarga- se, com efeito, ao universo inteiro”208.

Efetivamente, para a Deep Ecology, todos os elementos bióticos ou abióticos, sem qualquer distinção, têm um valor intrínseco; nesta concepção, “os seres humanos são apenas um fio particular da teia da vida”209. Importa destacar uma passagem radical do dualismo ao monismo absoluto, uma fusão por osmose, onde o ser humano é absorvido por toda a plenitude da natureza210.

De fato, a Deep Ecology apresenta inegáveis pontos positivos, dos quais destaca-se o fato de propor a proteção do ambiente pelo seu valor intrínseco e não por sua mera utilidade para o ser humano211. Entretanto, em razão de seu radicalismo, foi e continua sendo duramente criticada. Sendim assinala que ao tornar a natureza não só princípio de vida mas também a única forma de conhecimento e de ação, condena o ser humano à imanência absoluta da ecosfera, negando-lhe qualquer possibilidade de se elevar e qualquer história fora da evolução natural212.

Ost, por sua vez, direciona quatro objeções principais especialmente a perspectiva

208 OST, 1997, p. 178. 209 CAPRA, 1996, p. 26. 210 SENDIM, 1998, p. 94. 211 Idem, p. 96. 212 Idem, p. 95.

contida na proposta fundamental da ecologia profunda: atribuição de personalidade jurídica e direito aos elementos naturais. Segundo ele: em primeiro lugar, o Direito é produzido pelos homens e para os homens; em segundo lugar, a personalização da natureza é uma estratégia mais simbólica que operatória; em terceiro lugar, a Deep Ecology exige da ciência, ora demasiado ora demasiado pouco; e, por último, que não temos acesso direto à natureza213.

Em sua obra, o autor francês, destaca que o Direito deve assegurar uma proteção desinteressada e a longo termo do meio ambiente, mas não recusando, simultaneamente, o quadro do humanismo prático. Assim, sugere que a proteção da natureza será sempre mais efetiva no domínio dos interesses humanos futuros (gerações futuras), devendo o Direito ocupar-se de regular “a nossa relação com a natureza, os nossos modos de acesso à natureza, como os nossos métodos agrícolas, as nossas técnicas de produção, o nosso habitat, o nosso consumo de energia”. E questiona: “em lugar de vestir a natureza com os ouropéis de sujeito de direitos e confiar-lhe um papel fictício na cena judicial – levando, assim, ao cúmulo, a paródia antropomórfica – não será mais conveniente atribuir, definitivamente, um direito real de ação em justiça às associações que a defendem?”214.

Por seu turno, Castelo refere que um dos riscos mais inquietantes das posições ambientalistas radicais, é chegar ao sacrifício do bem dos indivíduos215.

A importância da perspectiva ecocêntrica (ou algumas tendências dessa visão) reside no fato de que através dela começa

(...) a desenhar-se uma tendência no domínio do pensamento jurídico no sentido de superar a limitação antropocêntrica e de admitir a proteção do patrimônio natural pelo seu valor intrínseco e não pela utilidade que tenha

213 OST (1997, p. 212) refere que com relação ao conhecimento científico, ora a Ecologia Profunda associa a ciência ao paradigma cartesiano da apropriação e da manipulação, ora lhe trata como uma nova sabedoria, devendo-se perceber que boa parte da nova consciência ecológica é devida aos trabalhos científicos, que clarificaram as interações dos ecossistemas e lançaram os primeiros alarmes quanto à sua atual situação. Seu quarto argumento está relacionado à ausência de acesso humano a uma natureza virgem e intocada, ou seja, há uma idéia romântica do que seja a Natureza, que desconsidera o fato de que ela é, em verdade, um produto cultural.

214 OST, 1997, p. 234. 215 CASTELO, 1996, p. 223.

para o Homem, sem contudo cair no confusionismo da deep ecology. Esta orientação parece possível até porque (...) o Direito como realidade cultural e histórica está marcado por uma natureza restritiva, prefixada e imutável do Homem, pelo que é, por definição, aberto à incorporação de novas axiologias, mesmo que num dado momento histórico possa parecer que tal mudança significa a alteração radical de sua arquitetura216.

Uma expressão desta evolução materializa-se, por exemplo, nas Declarações das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, de 1972 e sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, onde se prevê uma síntese das compreensões ecocêntricas holísticas e humanistas, cujo objetivo maior é conciliação da manutenção e preservação do ambiente natural com os demais interesses do ser humano.