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O AMBIENTE, A SOCIEDADE E O DIREITO EM TEMPOS DE CRISE ECOLÓGICA

1.1 A concepção da social do ambiente

1.1.2 A face ecológica da crise da modernidade

A percepção crescentemente difundida da capacidade humana de autodestruição, é fruto dos próprios padrões sócio-econômicos adotados durante séculos em grande escala pelo ser humano. A criação incessante de ameaças ecológicas, é resultado da equivocada obcessão humana pelo progresso, que subordina a sociedade contemporânea a viver permanentemente mergulhada as beiras de uma exaustão ecológica sem precedentes, bem como diante do risco da ocorrência de catastrofes ambientais terríveis, senão apocalípticas.

A definição dos padrões que conduziriam a humanidade à atual crise ecológica foram definidas séculos atrás e inspiravam-se na racionalidade científica então dominate, que dissossiava o humano do natural, tomando a natureza como fonte infinita de recursos, capaz de ser ilimitadamente apropriada e colocada a serviço do deleite e do bem- estar humano24.

Sacralizando o método científico cartesiano, a humanidade o colocou a seu serviço para dominar e espoliar a natureza, extraindo dela tudo o que fosse necessário para seu bem-

21 SANTOS, B. 2002, p. 56.

22 Idem.

23 CAPRA, 1996, p. 23.

24 Sobre as principais características do racionalismo científico, predominante entre o século XVI e o início do século XX, ver o item 1.1.3, infra.

estar, adotando padrões e sistemas de produção25, consumo e modos de vida que não levavam em consideração o desgaste ambiental.

De um modo geral, a humanidade organizou-se fundamentada numa obsessão insaciável pelo progresso, pelo lucro, pelo desenvolvimento e pelo crescimento econômico a qualquer custo26.

A concentração equivocada no progresso para solução dos problemas econômicos, como meio de equacionar os demais problemas enfrentados pela humanidade, pecou ao ignorar todos os custos sociais e ambientais advindos do próprio progresso, gerando na sociedade, ao contrário dos resultados esperados, apenas “desorientação, insegurança, medo do outro, medo do diverso.”27

Ao lado dos infindáveis benefícios trazidos pela revolução científica e pela forma de organização sócio-econômica industrial, baseada na economia de mercado, adotada pela a humanidade séculos atrás, vieram também diversos malefícios sociais, dos quais destaca-se, no contexto do presente trabalho, a geração contínua de um desperdício constante e elevado de riqueza, consubstanciado na perda sistemática dos recursos naturais, que compõem a base da riqueza social e que gradativamente conduziu a humanidade diretamente à crise ecológica28.

Conforme salienta Santos, o sistema produtivo29 (sobretudo o capitalista) sofre de

25 No presente trabalho, as expressões “padrões e sistema de produção” não estabelecem qualquer distinção entre os sistemas econômico-sociais capitalista e socialista, pois conforme salienta LEITE (2003, p. 22) verifica-se que tanto as ideologias liberais como as socialistas, não souberam lidar com a crise ambiental, considerando o capitalismo industrialista, no primeiro caso, e o coletivismo industrialista, no segundo, puseram em prática um modelo industrial agressivo aos valores ambientais da comunidade. CORDEIRO (1995, p. 144) afirma, ainda que o desperdício e a produção de escassez estão intrinsecamente inseridos na sistemática de produção da mais- valia capitalista, sendo que a promessa socialista era justamente superar essa lógica produtiva perversa, porém, a história do século passado veio mostrar que a humanidade está longe de encontrar uma efetiva alternativa econômica e social ao mercado, pois perversidades muito piores emergiram na sociabilidade socialista real. 26 Nesse sentido, ver as conclusões das obras de MONTIBELLER-FILHO (2001, p. 281-291) e de CORDEIRO (1995, p. 182-183).

27 DE GIORGI, 1994, p. 45. 28 CORDEIRO, 1995, p. 143.

29 Conforme salienta CORDEIRO (1995, p. 144) a apropriação do mundo natural, o desperdício e a produção de escassez que fomenta a crise ecológica estão intrinsecamente inseridos na sistemática de produção da mais-valia

uma contradição que envolve as chamadas condições de produção, ou seja, tudo é tratado como mercadoria apesar de não ter sido produzido como mercadoria – especialmente a natureza e a mão-de-obra. Tal contradição consiste na tendência que o sistema produtivo tem para destruir a suas próprias condições de produção, já que sempre que confrontado com uma crise de custos, os produtores procuram reduzir estes últimos para sobreviver na concorrência. À luz dessa contradição, o mercado tende a apropriar-se ilimitadamente do que é limitado, evidenciando uma conduta autodestrutiva perante a natureza e o ambiente em geral30.

Após séculos dessa apropriação31 indiscriminada dos recursos naturais, não havia mais como negar um fato que se tornava cada vez mais evidente e que foi muito bem exposto por Mateo, ao afirmar que “o industrialismo havia ignorado um fato óbvio, a saber, que a Terra é finita e que não se pode utilizar ilimitadamente de recursos esgotáveis”32 ou, em palavras já expressadas em outra ocasião:

(...) emergiu a consciência de que a humanidade habita um mundo onde impera uma dicotomia muito complexa: os recursos naturais, indispensáveis para a sobrevivência da humanidade ou são finitos ou levam determinado tempo para se regenerar e, por isso, devem ser utilizados de maneira racional, de modo que, não se exaurindo, possam ser utilizados pelas gerações futuras, ao passo que, concomitantemente, é indispensável à geração, pelo progresso, de riquezas e valores que possam ser utilizados para propiciar a toda humanidade padrões mínimos de qualidade de vida, o chamado bem- estar social33.

Assim, o ser humano caminhou até prostrar-se diante da crise ecológica, ou seja, “a escassez de recursos naturais e as diversas catástrofes em nível planetário, surgidas a partir capitalista, sendo que a promessa socialista era justamente superar essa lógica produtiva perversa, porém, a história do século passado veio mostrar que a humanidade está longe de encontrar uma efetiva alternativa econômica e social ao mercado, pois perversidades muito piores emergiram na sociabilidade socialista real. Desse modo, apesar de todas as diferenças entre as economias ocidentais, dominadas pelo mercado e as economias planificadas, inerentes ao socialismo e suas respectivas ideologias, quando existe a necessidade de tomar-se uma atitude quanto ao mundo natural, suas visões são surpreendentemente semelhantes. Agrega-se, portanto, à questão da titularidade sobre os recursos ambientais, o modelo de desenvolvimento adotado e as concepções a respeito de progresso, desenvolvimento e crescimento econômico, como pilastras basilares para o bem estar social

30 SANTOS, B. 2003, p. 44.

31 O termo “apropriação” deve ser entendido como sendo a utilização dos recursos naturais, tanto para extração de matéria prima, quanto para destino final dos dejetos do processo de produção e consumo.

32 MATEO, 1995, p. 30. 33 SILVA, D., 2003, p. 112.

das ações degradantes do ser humano na natureza”34 apresentava, agora, a sua pior face à humanidade.

Na penúltima década do século passado, a publicação do Relatório Brundtland35 serviria apenas para declarar publicamente o que já era observado no cotidiano, ou seja, que a manutenção dos padrões e ritmos de produção e consumo adotados pela sociedade, desde a revolução industrial, colocaria em risco o futuro da humanidade, alertando para a necessidade de uma alteração urgente de comportamentos36. O Relatório constatava a gravidade da crise ecológica, afirmando categoricamente que:

No mundo, de um modo geral, aumentaram os despejos de fertilizantes e dejetos em rios, lagos e águas costeiras, causando impactos sobre a pesca, o abastecimentos de água potável, a navegação e as belezas naturais. Ao longo dos anos, a quantidade da água na maioria dos principais rios não melhorou muito, tendo mesmo piorado em muitos deles, bem como em vários rios menores. Os países industrializados ainda apresentavam formas “tradicionais” de poluição do ar e da água. Os níveis de óxido de enxofre de nitrogênio, de partículas em suspensão e de hidrocarbonetos ainda permanecem elevados e em certos casos aumentaram. Nos países do Terceiro Mundo, a poluição do ar em certas partes das cidades chegou a índices jamais registrados nos países industrializados durante os anos 6037.

Acrescentava, ainda, o Relatório que:

É cada vez mais evidente que as origens e causas da poluição são muito mais difusas, complexas e inter-relacionadas – e seus efeitos muito mais disseminados, cumulativos e crônicos – do que se julgara até então. Os problemas de poluição, antes localizados, agora se apresentam em escala regional ou mesmo global38.

O Relatório concluiu que, ao contrário do que se esperava, os padrões adotados pela sociedade era a grande fonte de pobreza e miséria generalizada de determinados países.

34 LEITE, 2003, p. 21.

35 O Relatório Brundtland, como também ficou conhecido o documento Nosso Futuro Comum, recebeu essa denominação em homenagem a Gro Harlem Brundtland, primeira ministra da Noruega e também presidente da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1983. Brundtland atuou como coordenadora do Relatório sobre Desenvolvimento Sustentável preparado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) para basilar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Nesse sentido, ver: COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.

36 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 26, 29-30 e 383. 37 Idem, p. 235

Segundo seus apontamentos, a ânsia pelo progresso e pelo crescimento econômico desenfreado, o crescente consumo energético e de matérias-primas, acrescido ao lançamento indiscriminado dos dejetos da produção industrial na natureza, bem como o descaso com a segurança alimentar, somada à crescente utilização de agentes químicos na agricultura, à diminuição da biodiversidade e ao aumento desenfreado da população, causavam uma pressão sem precedentes sobre o meio ambiente, fato que por sua vez, diante da escassez de recursos naturais que gera, serve apenas para agravar ainda mais a pobreza e a miséria, levando ao aumento do fluxo migratório e da degradação de outras áreas, num círculo vicioso e continuo, que precisava ser urgentemente interrompido39.

Em seu prefácio, já afirmava o Relatório que “o necessário agora é uma nova era de crescimento econômico – um crescimento convincente e ao mesmo tempo duradouro, do ponto de vista social e ambiental”40, e não meramente do ponto de vista econômico.

Em face de tais apontamentos, revelou-se diante dos olhos do ser humano o fato de que, sem dúvida, a ciência, a técnica e a indústria geraram o progresso que impulsionou o desenvolvimento. Contudo, revelou também que a humanidade, adotando uma concepção redutora destes termos, passou a considerá-lo necessário e suficiente para que se alcançasse o estado de bem- estar pretendido. Agindo dessa forma, criou-se o falso mito de que era preciso sacrificar tudo em nome do desenvolvimento e assim, marchou-se silenciosamente rumo ao desastre41.

Diante de tais considerações, restou evidente que o progresso e o desenvolvimento econômico trouxeram infindáveis benefícios à humanidade, mas já não tinham o caráter providencial atribuído a eles outrora42.

38 Idem.

39 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 4-9 40 Idem, p. XIV.

41 MORIN e KERN, 1995, p. 83. 42 Idem, p. 80-81.

Abordando a crise ecológica, Leite pontua que:

Essencialmente, a crise ambiental configura-se num esgotamento dos modelos de desenvolvimento econômico e industrial experimentados. De fato, o modelo proveniente da revolução industrial, que prometia o bem estar para todos, não cumpriu aquilo que prometeu, pois, apesar dos benefícios tecnológicos, trouxe, principalmente, em seu bojo, a devastação ambiental planetária e indiscriminada43.

Em termos mais filosóficos, Ost44 argumenta que a crise ecológica é, antes de qualquer coisa, uma crise de vínculos, resultado do relacionamento deturpado que a humanidade vem mantendo com a natureza, ou seja, o meio que a envolve e no qual se insere45.

Tais constatações indicaram a necessidade de uma mudança drástica na forma como o ser humano se portava diante do mundo e dos fenômenos nele existentes, uma mudança na forma de pensar e de agir perante o meio em que se insere.

1.1.3 A superação da crise a partir de sua compreensão sistêmica: a transição em