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A Epidemia do HIV e a produção pública brasileira

4.2 Mecanismos de transferência de valor e o SUS

4.2.2 A Epidemia do HIV e a produção pública brasileira

A negociação para promulgação da Lei orgânica do SUS, nº. 8080/1990, também foi difícil, tanto que vinte e cinco artigos foram vetados por Collor de Mello, nos aspectos que diziam respeito ao controle social e ao financiamento da política de saúde. A Lei nº.

8.142/1990, editada em dezembro também de 1990, mostrou a resiliência dos militantes, recuperou o componente da participação comunitária, mas a questão do financiamento permaneceu com várias lacunas.

O Governo de Collor durou dois anos e duzentos e oitenta e nove dias (1990-1992) e as dificuldades no financiamento foram muitas, causadas principalmente pela não implantação do orçamento da seguridade social, que provocava instabilidade nas fontes de receita, com destaque para a baixa participação da União (LEVCOVITZ, LIMA e MACHADO, 2001).

Aliás, a participação da União na realidade foi reduzida de 18,9% em 1989 para 9,1% em 1993 (LEVCOVITZ 1997, apud RODRIGUES, 2014 p. 164), quando o recurso deveria ter crescido para estruturar a nova política pública.

defendendo que a doença não estava restrita aos homossexuais (FPABRAMO, 2015).

Os julgamentos morais colocavam a população em maior vulnerabilidade devido a falsa ideia de que a doença atingiria somente “grupos de risco” denominados 5 H – Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável), Hookers (profissionais do sexo em inglês). Mas, logo vieram as notificações de infecção por HIV em crianças, mulheres, os relatos de transmissão heterossexual e da contaminação de profissionais de saúde.

Em 1986, finalmente, o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids e a ciência brasileira também deu suas respostas, isolando o HIV-1 pela primeira vez na América Latina em 1987. Também em 1987, foi iniciada a terapia com azidotimidina nos EUA, medicamento mais conhecido como AZT e acessível a uma pequena parcela da população contaminada, devido ao alto custo. Em 1989, o Estado de São Paulo iniciou uma pequena disponibilização de AZT que atendeu apenas 7%

dos pacientes, depois a Prefeitura de Santos também começou a distribuir para um pequeno grupo (TEIXEIRA, 2003, p. 3).

Dentre os avanços almejados pelo SUS, a descentralização foi um processo positivo para aquele momento, porque desconcentrou as decisões políticas, administrativas e financeiras do Ministério da Saúde, transferindo responsabilidades para milhares de gestores.

No caso do HIV, isto foi fundamental porque iniciou um processo de baixo para cima quanto ao enfrentamento da doença e o início da oferta de medicamentos. Além disso, a aprovação do direito constitucional a saúde foi fundamental para que ativistas já engajados nos movimentos municipais pressionassem o Estado para ampliação do acesso.

Após muita mobilização social, o Ministério da Saúde decidiu adquirir os medicamentos para distribuição universal (TEIXEIRA, 2003), porém o alto custo era um fator limitador e, em função disso, pessoas eram diagnosticadas e permaneciam aguardando uma grande fila para ter acesso ao tratamento, o que gerou a pressão de ativistas sobre a indústria farmacêutica em 1989, resultando no desconto de 20% sobre o preço do AZT fornecido no Brasil pela empresa americana Burroughs Wellcome46 subsidiária da Inglesa Wellcome.

46 O AZT foi sintetizado pela primeira vez em 1964 na Michigan Câncer Foundation, instituição não lucrativa dedicada a pesquisa e suporte na área de oncologia. Pesquisadores da Burroughs descobriram que o AZT apresentava efeitos positivos contra certos vírus animais similares com o HIV. A Burroughs-Wellcome é

Após o impeachment de Fernando Collor de Mello, assumiu Itamar Franco, que trazia em sua equipe econômica o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), nomeado como pai do Plano Real. FHC foi eleito como Presidente da República em 1994 e, desse modo, após 21 anos de regime militar, o Brasil elegeu um político neoliberal, lutou por seu impeachment e elegeu outro político neoliberal.

Naquela altura, o Estado brasileiro estava comprometido com medidas subalternas, contudo, importantes cargos do Ministério da Saúde estavam ocupados por militantes da reforma sanitária e eles conseguiram, com muita criatividade, iniciar o processo de organização do SUS, adotando as chamadas Normas Operacionais Básicas (NOBs), que modernizaram e alteraram os critérios de transferência de recursos federais para os demais entes.

Seguindo o formato de portarias do Ministério da Saúde, as NOB 91, NOB 93 e NOB 96 afirmaram a atribuição do ministério para normatizar e definir as ações de saúde no âmbito do país e conseguiram uma grande adesão de programas considerados estratégicos, como Saúde da Família, por exemplo.

O drama do HIV, que já vinha pautando a discussão sobre a saúde e o acesso aos medicamentos, ganhou centralidade na segunda metade dos anos de 1990. Não bastava ter um sistema de saúde de acesso universal, se os bens e serviços existentes não fossem assegurados, incluindo evidentemente as tecnologias de alto custo.

A luta pelo acesso a medicamentos para HIV mobilizou a discussão sobre a assistência farmacêutica no SUS, viabilizou a atualização da Relação de Medicamentos Essenciais (RENAME), incluindo o debate sobre o uso racional de medicamentos, a definição dos componentes básicos, componentes especializados e componentes estratégicos no bojo do financiados pelos três entes do Estado.

No caso do tratamento do HIV, a maior parte dos medicamentos estavam sob patentes e em total contra censo com a necessária proteção do mercado interno que estavam em vigor desde a década de 1930, FHC assinou o Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) sem vetos e sem salvaguardas em 1996, submetendo-se

subsidiária da empresa inglesa Wellcome P.L.C. Fonte: https://admunip.files.wordpress.com/2013/03/estudo-de-caso-azt.pdf.

a um sistema dominado pelos países centrais, o que criou uma disputa entre a universalização do tratamento do HIV/AIDS e os detentores dessas patentes.

O Governo determinou a política de acesso universal e realizou dois acordos de empréstimos junto ao Banco Mundial (1994-1998) e (1998-2002), que permitiram o avanço na implementação de ações de prevenção e tratamento e de redes alternativas assistenciais que possibilitaram a revitalização do setor público de saúde no Brasil (BRASIL, 1999, p.11).

Possivelmente, os decisores do BM perceberam os benefícios que as líderes farmacêuticas teriam com a política de acesso universal que o Brasil havia determinado.

É importante notar que, no mesmo período em que o mundo enfrentava a epidemia da doença causada pelo vírus HIV, os países centrais se ocupavam de dificultar o acesso científico e tecnológico aos bens essenciais para proteção da vida humana. O desfecho do evento denominado “Rodada do Uruguai”, iniciado em setembro de 1986 e concluído somente em 1994, representou regressão de várias conquistas que os países em desenvolvimento haviam obtido em sucessivas negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) de 1947 (PRESSER, 1996, p.223).

O autor relata que a Rodada do Uruguai foi convocada para cumprir três objetivos: I.

aumentar as obrigações dos países em desenvolvimento no GATT e reduzir a flexibilidade quanto às suas políticas comerciais e políticas industriais; II. restabelecer a disciplina do GATT sobre alguns setores que deveriam ter sido incluídos ou ter permanecido no Acordo original, como têxteis e agricultura; III. colocar sob a disciplina do GATT os "novos temas", serviços, investimentos de empresas transnacionais e propriedade intelectual.

Dentre os resultados desse evento, foi criada uma estrutura para o sistema de comércio exterior, a Organização Mundial do Comércio (OMC), que passou a funcionar em janeiro de 1995, incluindo em seu escopo de atuação a gestão do Acordo Geral de Tarifas e de Comércio de 1947, as sete negociações multilaterais de liberalização de comércio e todos os acordos negociados na Rodada do Uruguai. Nesse evento, também foi aprovado o acordo mais rígido de proteção aos direitos de inovação, incluindo as patentes, o copyright (ou direito do autor), uso de marcas, indicações geográficas, desenhos para indústria e para circuitos integrados e proteção de informação confidencial (THORSTENSEN, 1998).

A pressão pela adesão brasileira ao sistema de patentes vinha crescendo desde o governo militar, como mencionado no item 4.1. Durante a presidência de José Sarney (1985-1990) os EUA exigiram mudanças na legislação de propriedade intelectual, chegando a impor

retaliações tarifárias de 100% sobre as importações brasileiras de produtos farmacêuticos, eletrônicos e celulose (SELL, 1995 apud SOUZA, 2011, p. 327). Com a criação da OMC, a pressão aumentou, porque todos os países que integravam a organização precisavam acatar também os acordos, tratados e negociações validadas no âmbito do comércio internacional.

Assim, o projeto de Lei nº. 824 de 1991 sobre propriedade intelectual iniciado no Governo de Collor de Mello tramitou durante vários anos, mas rompendo com uma posição histórica que datava de 1969 em relação às patentes, no governo de FHC, o projeto escrito em inglês acabou sendo transformado na Lei de Propriedade Intelectual (LPI) nº. 9.279 promulgada em 1996 e que entrou em vigor em 1997, com elementos que foram muito além dos parâmetros mínimos que eram obrigatórios para assinatura do Acordo, o que ficou conhecido como “TRIPS-plus” e “TRIPS-extra”.