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Antecedentes da política universal de saúde no Brasil

Segundo Vilas (2014), o alinhamento dos governos da região com as diretrizes do Consenso de Washington (1989), evento que traduziu a pauta neoliberal para os países periféricos, fez com que os governos adotassem medidas liberalizantes, desregulando a economia e o sistema financeiro e mantendo os juros altos para atrair investimentos externos.

Mais esse foi período de efervescência no Brasil. O momento era de luta pela redemocratização do país que vivia sob o regime da ditadura militar desde 1964. Com pautas muito bem definidas e grandes movimentos, estudantes, professores, setores populares, movimentos sociais e entidades profissionais reivindicavam mudanças estruturais na sociedade brasileira. Dentre esses movimentos, destacou-se o grupo da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), que denunciava os altos custos da saúde, a falta de acesso para um enorme contingente de pessoas, a corrupção sistêmica e as disfunções do modelo de assistência pautado em práticas individualistas, hospitalocêntricas e privatistas.

Mas a crise previdenciária dos anos de 1980 foi creditada ao Estado, que teria sido corrupto e ineficiente na provisão dos serviços e na alocação dos recursos. A velha ideia de uma iniciativa privada impoluta e hiper eficiente voltava com força total na imprensa e nos debates políticos. Nos anos 2000 o Relatório da OMS apontou para uma ‘crise da saúde pública’, com iniciativa da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e da OMS em torno de propostas tais como a “Nova Saúde Pública” e as “ unções Essenciais de Saúde Pública”

(PAIM, 2008), implicando duas metas centrais: contenção de custos da assistência e incentivos ao mix público-privado, através da descentralização de atividades e responsabilidades para os níveis subnacionais de governo e para o setor privado, assim como prevê o aumento da participação do usuário no custeio.

A passagem de médicos brasileiros pelo Instituto Pasteur, em Paris, abriu a perspectiva de novos campos do conhecimento para os jovens interessados em ciência.

Oswaldo Cruz trouxe a bacteriologia e após assumir o Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1901, inspirado no instituto francês, decidiu que a produção de insumos para saúde humana e animal deveria ser acompanhada de investimento em pesquisa científica e em formação de novos cientistas. Em 1905, Oswaldo Cruz e um grupo de cientistas inspecionaram os 23 portos brasileiros e, em seguida, esse grupo se dirigiu para o interior do país para compreender a situação de saúde do sertanejo, do ribeirinho, do trabalhador do campo (REVISTA DE MANGUINHOS, 2005).

Gradualmente, as políticas de saúde foram assumindo um importante papel na construção de uma ideologia nacional. Nas áreas centrais, as ações de saneamento e urbanização foram seguidas de ações de combate a doenças epidêmicas, como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. A partir dos relatórios dos médicos sanitaristas que realizaram expedições pelo país foi apontada a necessidade de uma ampla política de Estado na área da Saúde. A primeira campanha bem-sucedida contra malária foi coordenada por Carlos Chagas em 1906 e teve foco nos operários que trabalhavam na construção da Usina Hidrelétrica de Itatinga (BENCHIMOL, SILVA, 2008). Em 1909, o cientista descobriu o ciclo completo da Trypanosoma cruzi – a doença de chagas – e a ciência brasileira alcançou prestígio internacional (KROPF, 2009, pp. 13, 253).

Os capitalistas dependiam de equipes de saúde para avançar nos seus planos expansionistas e solicitaram apoio na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, onde a malária também causava uma altíssima rotatividade de trabalhadores. Até o ano de 1910 não havia serviços de saúde dedicados ao atendimento da população. As ações eram realizadas por intervenções sobre o ambiente, por meio de expedições sobre agentes infecciosos e, em casos específicos, voltadas para o coletivo com quarentenas e vacinação.

A partir da instalação dos primeiros Postos de Saneamento e Profilaxia Rural (PHPR) em 1916 se inicia o combate a doenças endêmicas em base territorializadas, de forma permanente, com recursos de diagnóstico e de prevenção, com imunizações (CAMPOS, COHN, BRANDÃO, 2016, p. 1352).

Oswaldo Cruz e Carlos Chagas foram fundamentais para despertar a consciência sobre a interface entre o desenvolvimento do país e as necessidades de saúde da população.

Eles e outros médicos, como Belisário Penna (1868-1939), Artur Neiva (1880-1943) e Edgar

Roquette-Pinto (1884-1954), realizaram expedições e produziram relatórios que tiveram muita influência no campo médico, intelectual e político sobre a necessidade do saneamento e de serviços médicos nas regiões interioranas e em territórios indígenas (RODRIGUES, 2021).

As instituições de pesquisa e de formação médica se expandiam, mas enormes contingentes continuavam sem acesso aos serviços de saúde. Neste período, trabalhadores urbanos, influenciados pelos imigrantes europeus, iniciaram agitações culminando nas greves de 1917 e 1919. O movimento sindical chamava atenção para suas reivindicações e tencionava a agenda política dos representantes da burguesia, exigindo melhores condições de trabalho e maiores proteções sociais.

O chefe de Polícia Eloy Chaves criou Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) para os trabalhadores que faziam parte dos grupos mais organizados e que estavam ligadas às atividades de exportação vinculadas as grandes empresas marítimas e ferroviárias (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 1985).

As CAPs eram organizadas por empresas numa espécie de seguro de saúde financiadas com contribuições prévias dos empregados e dos empregadores em que o Estado não contribuía financeiramente. Somente os trabalhadores urbanos tinham acesso a essas caixas e nem todas as empresas ofereciam ao trabalhador a possibilidade da formação de uma caixa, porque esse era um benefício mais comum nas grandes empresas. O Decreto nº 4.682 de 1923, que ficou conhecido como a Lei Eloy Chaves, instituiu benefícios nesta ordem: 1º) assistência médica, inclusive aos familiares; 2º) medicamentos a preços especiais; 3º) aposentadoria e 4º) pensão (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2012).

O clamor por mudanças na área da saúde não arrefeceu, porque fazia parte de demandas mais amplas e que diziam respeito a insatisfação política de diversos setores sociais, ganhando destaque os movimentos dos trabalhadores e dos militares de baixa patente.

A agitação política culminou na Revolução de 1930 e no governo de Getúlio Vargas.

Getúlio Vargas, buscando legitimação através de uma política de massas, mesmo entrando em choque com os técnicos da previdência, ampliou a cobertura para os trabalhadores rurais, domésticas, autônomos, profissionais liberais, subempregados e desempregados e, na sequência, criou o Instituto do Serviço Social Brasileiro (ISSB), inspirado nos princípios da uniformização, unificação e universalização e em 1935 as caixas e institutos foram fundidas em uma única Caixa (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2012).

A contribuição dos trabalhadores e a entrada da União como fonte de receita previdenciária permitiram a geração de uma super receita. Entre os anos de 1923 e 1930 o número de trabalhadores ativos chegou a 140.000 e entre 1930 e 1945 esse número subiu para 2.888.000 (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 1985, p.59).

Inobstante ao balanço positivo das receitas, as CAPs iniciam políticas de contenção, separando a previdência e a assistência. O argumento era de que as aposentadorias e as pensões eram obrigações contratuais, enquanto a assistência médica, hospitalar, farmacêutica só deveria ser prestada de acordo com a disponibilidade das instituições. Logo em seguida, as medidas de contenção avançaram também sobre as aposentadorias e pensões, com suspensão temporária das aposentadorias ordinárias, maior rigidez dos critérios de concessão de benefícios e diminuição dos valores dos benefícios (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2012).

Com a criação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI) em 1938, foi elaborado um novo modelo com base nos conceitos atuariais. Os teóricos defendiam a eliminação dos serviços médicos, o que não ocorreu por ser uma medida antipopular. Como solução para conter os gastos, foram fixados limites máximos para os serviços e optado pela não construção de serviços próprios, comprando de terceiros a assistência hospitalar e ambulatorial. Esse aspecto moldou todo sistema de saúde dali em diante (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2012).

O regime atuarial de capitalização garantiu boa parte das ações de desenvolvimento industrial no Brasil, mas os fundos previdenciários foram desviados da previdência e assistência aos trabalhadores para o financiamento de grandes companhias estatais em áreas estratégicas, em companhias estatais, investimentos de baixa rentabilidade destinados a conjuntos habitacionais adquiridos pelos beneficiários, empréstimos privados, depósitos no Banco do Brasil ou em bancos privados, entre outras iniciativas estatais (PORTAL EDUCAÇÃO, 2012, p. 18).

Na saúde pública, o principal avanço foi os serviços de saúde implantados pelo Departamento Nacional de Saúde, no total de 51 Centros de Saúde, 54 Postos de Higiene; 140 Postos de Higiene 2; 304 Subpostos; 13 Postos Especializados e 12 Postos Itinerantes (CAMPOS, 2006, p. 136 apud RODRIGUES, 2021). Esses centros, assim como o Instituto Evandro Chagas (IEC) no norte do país, foram absorvidos pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) criado pelo Decreto-lei nº 4.275, de 17/4/1942 (RODRIGUES, 2021).

O SESP foi instituído a partir de um acordo com o governo dos Estados Unidos da América (EUA) e funcionava com autonomia jurídica, administrativa e financeira, apesar de estar vinculado diretamente ao Ministério da Educação e Saúde. Para os estadunidenses, o acordo tinha como objetivo desenvolver ações de saúde no Amazonas e no Rio Doce, regiões ricas em matérias primas necessárias ao esforço militar durante a segunda guerra mundial (CAMPOS, 2006). O SESP contou com financiamento dos EUA de mais 87% em 1942 e 80% em 1943. Esse financiamento caiu para 5% em 1953 até se encerrar em 1960 (CAMPOS, 2006, apud RODRIGUES, 2021, p. 51)22, mesmo ano em que foi transformado na Fundação Serviço de Saúde Pública vinculada ao Ministério da Saúde pela Lei nº 3.750.

Durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), ocorreu a primeira grande crise financeira na previdência. Segundo Jaime Antonio de Oliveira e Sonia Maria Fleury Teixeira (1985), a crise resultou na substituição do regime de capitalização pelo regime de repartição e tornou-se pauta prioritária nos governos de JK, culminando com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) em agosto de 1960. Esta lei unificou os institutos, uniformizou o plano de benefícios, mas manteve a fragmentação do sistema da previdência e a exclusão de grandes contingentes, como os trabalhadores rurais (OLIVEIRA e TEIXEIRA, 1985, p. 155). Segundo Hesio (1984), a LOPS foi fruto da coalização entre partidos políticos no conjunto das negociações que visavam a reforma eleitoral e a continuação do projeto desenvolvimentista de JK (1984, p.38).

A uniformização dos direitos entre os segurados não resolveu os fatores responsáveis pela crise financeira, passando o sistema previdenciário a ser deficitário nos meados da década de 1960. Essa questão financeira foi apontada como a principal responsável pelas medidas que levaram a uma maior intervenção do Estado já no período militar, unificando os IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1966 e ampliando a privatização dos serviços.

22 Durante seus 48 anos de existência, o SESP/FSESP combinou atividades preventivas, inclusive de saneamento básico, com atividades de assistência médica curativa. Quando, em 1990, a FSESP foi integrada à estrutura da FUNASA, contava com 861 unidades de saúde em todo o território nacional, entre postos de saúde, centros de saúde e unidades mistas – estas combinavam serviços ambulatoriais com hospitalares (BRASIL, 2011: 14). No final dos anos 1990, suas unidades de saúde foram descentralizadas para os municípios, por decisão da Portaria GM/MS nº 3.842, de 5/11/1998 (BRASIL, 2004: 185).

Em 1967 foram criados outros formatos para o financiamento da previdência, como a poupança obrigatória por meio da criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Programa de Integração Social (PIS) instituído pela Lei complementar nº 7 de setembro de 1970 e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), criado pela Lei Complementar nº. 8 de dezembro de 1970.

Ademais, ao mesmo tempo em que a matriz de financiamento era ampliada, o número de usuários também se ampliava. Em 1971 a cobertura previdenciária incluiu os trabalhadores rurais (Funrural) pela Lei Complementar, nº 11, de junho de 1971. Em dezembro de 1972, as empregadas domésticas (Lei nº. 5.839) e, em junho de 1973 (Lei nº.

5.890), os trabalhadores autônomos também passaram a gozar dos benefícios previdenciários, desde que contribuíssem para a Previdência Social. Essas iniciativas aumentam em 13,5 vezes as despesas com a assistência à saúde (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2012, p. 17).

Depois, a questão do atendimento de emergência ganhou projeção, sendo criado o Plano de Pronta Ação (PPA) em 1974. O PPA incluiu toda população não segurada, desburocratizando o atendimento nas emergências e incorporando as Secretarias de Saúde e Hospitais Universitários ao sistema previdenciário, através de convênios globais. Costa (1996) aponta que “aquele foi um momento expressivo de perda de controle dos atendimentos pela burocracia previdenciária” (1996, p. 4).

Em 1975 foi aprovada a Lei nº 6229 criando o Sistema Nacional de Saúde (SNS). O SNS foi um passo na tentativa de organizar um único sistema de saúde no Brasil, que integrasse as estruturas do serviço público, os hospitais universitários e as entidades privadas, incluindo as filantrópicas. Suas regras apontavam para o modelo de atenção baseado na medicina preventiva e o objetivo era a racionalização por meio da regionalização e da hierarquização dos serviços, visando ampliar a cobertura para toda a população, mas passados dois anos desde a sua criação, Hesio Cordeiro e Antônio Augusto Quadra escreveram sobre suas disfunções.

Para os autores, a preservação da separação histórica entre saúde pública e saúde previdenciária dificultava o desenvolvimento dos elementos de um sistema. Cordeiro e Quadra (1977) afirmavam que o SNS não mudava a lógica do financiamento e isto rebatia no modelo de atenção, mantendo a concentração de recursos na assistência hospitalar em detrimento de ações de saúde pública. A previsão de regionalização da atenção à saúde, da hierarquização dos níveis de atenção e da coordenação dos serviços que implicaria na

reformulação das relações com o setor privado não se concretizara, devido às imprecisões da política e a pressão das entidades de representação do setor privado.

Os autores analisam que a posição e a influência da Federação Brasileira de Hospitais, assim como da Associação dos Hospitais do Estado de São Paulo dificultou o processo de desenvolvimento de aspectos centrais do SNS. Havia, segundo eles, muita contrariedade com a “escalada estatal no setor de assistência médica, supostamente reservada à iniciativa privada” (CORDEIRO e QUADRA, 1977, p. 20). Esses grupos conquistaram ainda mais força na vigência do SNS, porque com o aumento da demanda comprometendo a rede de serviços previdenciários prestados pelos INPS, a opção foi ampliar contratos com a rede privada, tornando a política ainda mais dependente de uma fração da burguesia interna focada na assistência hospitalar.

De todo modo, o SNS significou uma ação fundamental para a saúde pública, até mesmo essas disfunções serviram para estruturar melhor as propostas que foram apresentadas na década de 1980. O SNS também foi importante para aproximar atores que se engajaram no movimento político pela Reforma Sanitária Brasileira, conforme ressalta Christiane de Roode Torres: “SNS tensionou o debate na área da saúde, evidenciando as falhas do modelo escolhido e reunindo diferentes grupos em prol de mudanças progressistas...” (2020, p. 230).

O SUDS do final da década de 1980 também representou avanços, como será tratado a partir da linha do tempo – item 4.1.

Em 1977 o governo militar editou a Lei 6.439, instituindo o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), com a finalidade de integrar as funções de concessão e manutenção de benefícios, prestação de serviços e realizar o custeio e a gestão dessas ações.

Essa lei criou também duas autarquias, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS). Essa configuração mantinha a ideia de separação entre saúde pública e saúde previdenciária e mantinha também a concentração dos recursos no Inamps, que se tornou a principal entidade de contratação de serviços médicos.

O Plano de Nacional de Desenvolvimento do governo de Figueiredo (III PND de 1979) repetia o discurso de planos anteriores sobre a melhoria dos serviços públicos de saúde, combate a endemias, fortalecimento de atividades preventivas, entre outras. Reconhecia as funções do Ministério da Saúde na definição e coordenação das políticas da saúde, acenava

para descentralização de atividades para Estados e municípios e prometia esforço de desburocratização e racionalização do sistema de arrecadação da previdência, adotando um discurso social-democrata na VII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1980. No discurso, o general enfatizava a atenção primária em saúde, anunciando o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-saúde) (PAIM, 2008), incentivando a participação comunitária e se comprometendo com o resgate da dívida social (PAIVA e FREITAS, 2021, p. 533).

O Prev-saúde, no entanto, foi um projeto natimorto, como disse Gentille de Mello, pois tantas foram suas versões que a formulação final deixava de cumprir os objetivos que o justificavam. Embora o projeto tenha encontrado acolhida entre os profissionais de saúde, sofreu grande ataque por parte dos representantes da Federação Brasileira de Hospitais, Associação Brasileira de Medicina de Grupos e Associação Médica Brasileira (PAIM, 2008).

A crise financeira da Previdência Social, que a essa altura já se mostrava crônica, fez com que o governo tentasse restringir as pensões dos aposentados, viúvas, e órfãos, encontrando grandes dificuldades por oposição política, dos trabalhadores e empresários e da imprensa. Adiando o quanto pôde, o governo acabou apresentando o plano de reorientação da assistência à saúde no âmbito da previdência social, criando o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP) para realizar mudanças importantes nas políticas de saúde (PAIM, 2008).

O relatório do CONASP foi apresentado à Comissão parlamentar pelo Dr. Aloysio de Salles Fonseca e começava pela seguinte descrição: “O INAMPS que encontrei” (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), onde foi relatado problemas em relação ao orçamento que estava estourado, não só pela redução das verbas, mas também pela própria desorganização e descontrole dos serviços. O relatório anunciava que somente 5% das ações assistenciais eram realizadas pelos hospitais e Postos de Assistência Médica (PAM) próprios, 4% pelos hospitais públicos conveniados e 80% por hospitais privados em que os serviços eram pagos pelo sistema de Guia de Internações Hospitalares (GIH) a partir do critério de unidade de serviço com cobrança ilimitada e sem qualquer controle pelo INAMPS (FONSECA, 1985, p. 8)

Integravam o CONASP especialistas ligados ao movimento sanitário, o que iniciou uma cisão muito oportuna na própria burocracia da previdência. Por meio de análises e fiscalizações rigorosas nas prestações de contas, foi proposto um plano de reversão do modelo

médico-assistencial, regulando melhor os contratos privados, reduzindo a capacidade ociosa no setor público, criando o domicílio sanitário, realizando a revisão dos mecanismos de financiamento do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). Tudo isso encontrou forte oposição da Federação Brasileira de Hospital (FBH) e das empresas de Medicina de Grupo (PAIM, 2008). Dentre essas iniciativas realizadas, o relatório destacou o programa que seria o mais importante dentro do CONASP, denominado Ações Integradas de Saúde (AIS), chamado de “verdadeiro plano nacional de saúde”, começando neste momento uma inovação incremental significativa na política de saúde no Brasil (FONSECA, 1985).

As Ações Integradas de Saúde (AIS) formaram um projeto interministerial que uniu Previdência, Saúde e Educação e visava um novo modelo assistencial contemplando ações curativas, preventivas e educativas ao mesmo tempo. Neste período, foram identificadas diversas organizações públicas que prestavam serviço de qualidade a custos menores que os serviços privados. Assim, passou-se a comprar serviços prestados por estados, municípios, hospitais filantrópicos, públicos e universitários. Para Fonseca (1985), as principais diretrizes que as AIS implementaram, foram:

• Gestão colegiada, descentralizada e participativa, entre as instituições convenentes e as instâncias representativas da população;

• Cobertura assistencial planejada de acordo com as necessidades epidemiológicas, observando-se os princípios da regionalização e hierarquização dos serviços;

• Qualificação técnica pelo controle da qualidade assistencial nível de atendimento;

• Co-partipação financeira das instituições convenentes.

Segundo o autor, até o primeiro trimestre de 1985, as AIS cobriam todo território nacional, atendendo cerca de 70% da população brasileira, de acordo com o censo demográfico de 1970-1980 (FONSECA, 1985, p.29). O novo sistema permitia o controle orçamentário das despesas de forma transparente e simples, separava as despesas hospitalares e as despesas com serviços médicos, estimulava a melhoria dos serviços hospitalares, entre outros. Ao final do relatório, foram demonstrados dados de redução no custo hospitalar e no número de internações e a ampliação da cobertura odontológica, que visava superar a imagem do Brasil como um país de desdentados.

Com as eleições para Governadores em 1982 e a criação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), a correlação de forças foi modificada e com isso foi viabilizado um dos projetos do CONASP com os convênios trilaterais que envolviam o

INAMPS, as secretarias estaduais e as secretarias municipais, fortalecendo a estratégia das AIS (PAIM, 2008).

Essas medidas, no entanto, não foram suficientes para o saneamento da “crise da previdência”, mas abriram espaço para construção de um novo projeto. Com os enfrentamentos produzidos a partir do Prev-saúde, do Plano CONASP, a potente e combativa produção do CEBES e da ABRASCO, os argumentos por uma política de saúde pública universal foram se tornando mais claros e compreensíveis e seus princípios foram considerados válidos por muitas entidades profissionais (PAIM, 2008).

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) foi criado em 1976 e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) em 1979 (PAIM, 2008), tendo origem a partir do movimento popular que se estruturou a partir do movimento de Medicina Comunitária, depois do Movimento Popular pela Saúde – MOPS (GERSCHMAN, 1995) e incluiu estudantes e professores da área da saúde, profissionais progressistas da saúde que iniciaram uma frente pela reforma do sistema de saúde em oposição ao regime militar (ESCOREL,1999).

A defesa das AIS instalou um conflito no governo, que pretendia passar o Inamps para Ministério da Saúde contra vontade de Waldir Pires, que ocupava o Ministério da Previdência. Pires argumentava que o INAMPS era patrimônio dos trabalhadores e, por isso, essa decisão precisava de legitimação popular. Assim, surgiu a ideia de realizar a 8ª Conferência Nacional de Saúde (PAIM, 2008).

Essa conferência foi o passo decisivo que faltava na direção da conquista da saúde universal no Brasil, o que veio a acontecer de forma inovadora na periferia do sistema econômico global com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988.

A história do SUS contou com muitos personagens, mas, sem dúvida, Hesio Cordeiro foi quem tomou medidas contundentes para a construção das bases do Sistema Único de Saúde. Sob sua liderança, o Instituto de Medicina Social (IMS) consolidou as teses que resultaram no documento “A questão democrática na área da Saúde” divulgado pelo CEBES e que veio a se tornar a diretriz política que Sérgio Arouca apresentou no I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados em 1979. Esse documento foi também a base para preparação da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Segundo Noronha, “ali estão as diretrizes conceituais e estratégicas para a reorganização radical da sociedade brasileira e de

seu sistema de saúde em particular” (NORONHA, 2021, p.2). Foi também sob a presidência de Hesio Cordeiro no INAMPS que as primeiras mudanças ocorreram no sentido de universalizar o acesso a saúde no Brasil, retirando-se a exigência de vínculo por contribuição com a previdência para utilizar a rede própria de serviços. Ainda em sua gestão, o INAMPS foi extinto em 1993, rompendo com a dicotomia entre saúde preventiva e saúde pública.