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Expansão do SUS e ampliação da privatização

4.3 Ampliação da acumulação privada no âmbito do SUS

4.3.4 Expansão do SUS e ampliação da privatização

larga escala no Brasil, como os quimioterápicos para câncer de mama, medicamento para malária, testes diagnósticos de Hanseníase, entre outros. Apesar de não figurar como um dos atores relevantes para o Sistema de Inovação do setor de saúde, a CONITEC é uma instância fundamental e o aperfeiçoamento das práticas de avaliação de tecnologia contribui, não apenas, para racionalizar os custos do SUS ao prevenir a entrada de item sem efetividade comprovada, como garante a atualização dos procedimentos e o acesso a tecnologias para o uso coletivo. Os pareceres são encaminhados para a SCTIE, a quem cabe a decisão final e sendo o resultado positivo à incorporação, o SUS deve disponibilizar em até 180 dias.

A criação da CONITEC e a regulação de sua composição e funcionamento por meio do Decreto n° 7.646 de 2011 foi fundamental para apoiar as decisões sobre disponibilidade de novas tecnologias, especialmente diante do subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) em paradoxo às demandas crescentes de incorporação de tecnologias, muitas vezes judicializado para assegurar o direito de acesso.

Rosângela Caetano et al (2017) entendem que a definição de critérios e fluxos contribuem para racionalidade e para tomada de decisão embasadas, salientando, no entanto, a necessidade de maior transparência, sobretudo na disponibilização dos documentos que dão base as recomendações, além de outros críticas mais atuais64.

Há também um conjunto de críticas sobre a composição da Comissão que tem sua maioria formada pelo por membros indicados pelo Ministério da Saúde (7/13 dos membros), o que pode abrir espaço para cooptação, conflitos de interesse e influência política na medida que o financiador, no caso o próprio Ministério, terá também participação decisiva nas recomendações. Além dessa questão, as alterações recentes – Lei 14.313/2022 e Decreto n.

11.161/2022 ampliaram o raio de ação da CONITEC, inclusive colocando suas decisões acima da ANVISA, como é da autonomia para decidir sobre o uso off label de medicamentos, ou seja, sobre a indicação de uso distinto do que a Agência tenha aprovado.

64Uma das críticas é a composição da composição da Comissão que tem sua maioria formada por membros indicados pelo Ministério da Saúde (7/13 dos membros), o que pode abrir espaço para cooptação, conflitos de interesse e influência política na medida que o financiador, no caso o próprio Ministério, terá também participação decisiva nas recomendações. Além dessa questão, as alterações recentes – Lei 14.313/2022 e Decreto n. 11.161/2022 os poderes da CONITEC, inclusive colocando suas decisões acima da ANVISA, como é da autonomia para decidir sobre o uso off label de medicamentos, ou seja, sobre a indicação de uso distinto do que a Agência tenha aprovado.

Em 2012 a Lei Complementar nº 141 inovou ao definir o que não podem ser classificadas como ações e serviços saúde (art. 4o), criou as unidades orçamentárias (art. 14) e avançou em relação aos mecanismos de transferência e de aplicação dos recursos da esfera federal para estados, Distrito Federal e municípios (art. 17) e da esfera estadual para os municípios (art. 19), com base na redução das disparidades regionais de saúde (Artigos n° 17 e 19).

O governo da Presidente Dilma também investiu em políticas para grupos específicos, destacando-se políticas para mulheres e crianças como a “Rede Cegonha”, instituída pela Portaria de nº 1.459, de 24 em 2011, visando assegurar o planejamento reprodutivo e a linha de cuidados durante a gravidez, o parto e o puerpério. O estudo avaliativo realizado em 2017 sobre o programa identificou a prevalência de boas práticas e diminuição de iniquidades regionais com ampliação do acesso de mulheres pobres, mulheres negras, principalmente no norte e nordeste (LEAL, 2021).

Em relação ao desenvolvimento tecnológico, Dilma deu início ao Plano “Brasil Maior”, com 19 agendas setoriais orientadas pela Política Industrial, Tecnológica de Serviços e de Comércio Exterior (2011-2014). O plano apontava para modernização estrutural do setor industrial com metas destinadas a aumentar a produtividade, garantir investimentos e incluiu medidas de conjuntura como a desoneração tributária e previdenciária sobre a folha de pagamento dos setores de bens consumo importantes para o mercado interno, como calçados, vestuário, móveis. Desta vez o plano incluiu também o setor de serviços, devido a ampliação da importância desse segmento na economia.

No Plano Brasil Maior deu ênfase no CEIS e na estratégia das PDPs para beneficiar a produção nacional, resultou na alteração na Lei de Licitações criando a dispensa de licitação exclusiva para na contratação em que ocorra a transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS (art.73, Lei 12.715/2012). O SUS seguiu tendo sua base organizativa em processo de aperfeiçoamento e sua base material recebendo investimentos. No entanto, os trabalhadores da saúde permaneciam com vínculos cada vez mais precários e essa situação ainda não se modificou.

O CEIS faz o recorte do subsistema de serviços especificamente pela lente da prestação de serviços, de modo que as análises estão relacionadas a propostas de adaptações nos componentes dos sistemas nacionais de saúde, análises das relações público-privado, debate sobre incorporação (ou não) de tecnologias e, claro, os gastos com a assistência.

O acrônimo CEIS poderia perder o I (industrial) e incluir o T (Trabalho), se tornando assim CEST – Complexo Econômico da Saúde e Trabalho, ampliando sua linha de pesquisa para um dos principais recursos do complexo, que são seus trabalhadores. O recorte atual já cumpriu uma importante função, mas se permanecer como está levará futuros pesquisadores a continuar investigar o campo, a integração dos serviços, a transformação digital e outros mecanismos como soluções para ampliar o acesso e reduzir custos, sem levar em conta que o setor de saúde se caracteriza principalmente pelo contato humano, pelo trabalho vivo, sendo um setor em que, diferente de vários outros, o especialista, muitas vezes, é a pessoa que está na ponta, em contato direto com o usuário. Certamente, essa ampliação traria uma perspectiva mais crítica para esse recorte e seria muito proveitoso para a saúde coletiva.

De qualquer modo, é evidente que a aplicação da telemedicina, diagnósticos remotos e cirurgias ambulatoriais, assim como de novos modelos de prestação, como os hospital-dia, assistência domiciliar são importantes e ajudam a dar resposta social as necessidades de saúde, mas nada disso será feito sem “gente disponível e qualificada”.

Entre os anos de 1990 e 2002, a cobertura da Atenção Básica era de 31,87% da população brasileira (CAMPOS, PEREIRA, 2016, p. 2657), mas entre 2003 e 2015 a implantação da Estratégia Saúde da Família alcançou 5.463 municípios com 40.162 equipes de Saúde da Família (ESF) e 266.217 Agentes Comunitários de Saúde (ACS), respondendo pela cobertura de 63,72% da população (MS, 2015, pp. 37, 58).

Mas, mesmo com toda essa capilaridade, a Atenção Básica ainda é pouco considerada quando se trata de integrar políticas, talvez pela falsa compreensão de que é um nível de baixa complexidade – outra negação permanente que surge em discussões sobre o SUS, quando se confunde arquitetura de serviços e uso de tecnologias complexas.

A atenção básica é um nível de serviço altamente complexo porque funciona não só como a porta de entrada, mas também como ação prolongada e de contato mais direto com a população. Fincada nos territórios, deve ser o integrador de toda rede de bens e serviços do SUS. Contudo, voltando a questão do SAMU por exemplo, o estudo produzido por Gisele O’Dwyer et all (2019) revela que apesar da política contribuir para o aperfeiçoamento do sistema universal, algumas fraquezas estruturais comprometem a qualidade do serviço e uma delas é justamente a falta de integração entre o SAMU e a Atenção Básica. Nesse estudo, foi identificada a alta rotatividade dos médicos, baixa disponibilidade de leitos referenciados, número de ambulâncias em número maior ou menor que a capacidade dos municípios e outras

questões mais estruturais, como a dificuldade de comunicação via celular, que ainda hoje é precária em algumas regiões do Brasil.

Apesar desse estudo ser setorial, ou seja, específico sobre uma das políticas em torno do SUS, ele revela problemas gerais e que, em boa parte, derivam da mesma disfunção crônica, que é a baixa participação do nível de Atenção Básica na implantação de programas, uma espécie de negação crônica, permanente, sobre as decisões de Alma Ata que apontam para centralidade da Atenção Básica em sistemas de saúde de acesso universal.

Se o SUS foi capaz de realizar uma mudança radical no paradigma do acesso aos bens e serviços de saúde, é preciso que ocorra também na Atenção Básica mudanças radicais.

O serviço implantado inicialmente a partir de adesão e incentivos precisa assumir características de funções obrigatórias para que seja possível redefinir o papel dos hospitais e dos serviços especializados na dimensão do SUS do presente e do futuro e isto inclui a reversão da lógica em que o acesso dos usuários é controlado pelas possibilidades financeiras e não por uma equipe da Atenção Primária, como aponta Gastão Wagner de Sousa Campos e Nilton Pereira Júnior (2016).

Os autores analisaram o desenvolvimento das políticas de Atenção Primária no Brasil, especialmente a Estratégia Saúde da Família (ESF) e apontaram que, para implementar a Atenção Primária no SUS, foi adotado um método indutivo de criação de demandas, sem um planejamento sistêmico e, por isso, a programação de recursos ocorria conforme a adesão dos municípios interessados, respeitando o caráter federativo do país e o processo de municipalização das ações de saúde. Assim, diferente de outros países65, não houve orientação progressiva da Atenção Primária quanto à equidade entre regiões e as prioridades das populações. O governo federal, ou melhor, os agentes encarregados de implantar o SUS definiram que o Programa de Saúde da Família teria a abordagem de uma “oferta que cada cidade ou estado poderia ou não abraçar” (CAMPOS, PEREIRA JÚNIOR, 2016, p. 2656). O principal indutor era a possibilidade de os municípios captarem recursos federais, resultando no crescimento dos serviços sem priorizar territórios e populações vulneráveis.

As Políticas Nacionais de Atenção Básica (PNAB) visaram corrigir essa rota, a de

65 Na Espanha, Portugal, Canadá e Inglaterra houve o planejamento integrado entre a implementação do sistema nacional e a constituição de uma rede de Atenção Primária e assim foi assegurado o acesso a mais de 80% de suas populações (CAMPOS, PEREIRA, 2016, p. 2657).

2006 alterou o conceito de Programa Saúde da Família para Estratégia Saúde da Família, dando um tom mais permanente a ação de saúde, assim como orientou a qualificação dos serviços com apoio à formação de pessoal por meio da reformulação dos cursos de graduação em saúde, ampliação dos programas de residência médica e multiprofissional, cursos e seminários de educação permanente ofertados aos profissionais dos estados e dos municípios.

A PNAB de 2011 valorizou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) criado em 2008, visando ampliar a perspectiva sobre determinantes sociais da saúde. Nesta PNAB, foi ampliada a proposição de rede considerando as equipes da Estratégia Saúde da Família, mas também as Unidades Básicas tradicionais. Também viabilizou a utilização de até 8 horas semanais da carga horária dos membros das equipes em serviços da rede de urgência, na formação em Saúde da Família, em outras atividades de educação permanente e no apoio matricial. No caso dos médicos, tornou-se possível em equipes com dois médicos cadastrados adotar 30 horas ou 20 horas semanais de trabalho.

O objetivo era também ampliar e chegar em populações específicas como as pessoas vivendo em situação de rua e os povos ribeirinhos da Amazônia Legal e do Pantanal. O argumento sobre o ESF sempre foi que a composição multiprofissional das equipes de saúde da família e dos NASF era fundamental para a integralidade dos cuidados, porém, a operação das equipes sempre foi heterogênea, devido aos municípios serem os responsáveis pelas contratações e, como já mencionado nessa tese, com sérias limitações decorrentes da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desse modo, sempre foi marcante a dificuldade de recrutamento e fixação de pessoal, em particular dos médicos, inclusive pela “oposição corporativa contra grande parte das diretrizes da atenção primária” (CAMPOS, PEREIRA JÚNIOR, 2016, p.

2658), resultando em precariedades nos serviços, como unidades básicas funcionando com baixa resolutividade ou funcionando apenas de forma burocrática.

No Brasil, tem predominado a terceirização por meio das Organizações Sociais (OS) para expansão dos serviços que integram o SUS, aumentando o custo do serviço sem gerar qualquer benefício concreto para os usuários, para os trabalhadores e para os gestores. Ao contrário, os problemas decorrentes desse modelo de gestão são vários. Do ponto de vista do funcionamento do SUS, as terceirizações geram fragmentações e baixa governabilidade para funcionar em rede e mesmo com a instituição do Contrato Organizativo de Ação Pública, pouco se tem avançado na integração das redes temáticas e da integração dos serviços por regiões de saúde; do ponto de vista dos profissionais, gera assimetria salarial entre os

municípios ‘ricos’ e os munícipios ‘pobres’, vínculos instáveis, desgaste e intensificação do trabalho; do ponto de vista do usuário, gera a incerteza quanto à continuidade do acompanhamento e de tratamentos prolongados, assim como limitações de acesso a atendimento especializado, e por fim, para o gestor gera a insegurança das contratações fictícias em que as empresa funcionam como mero pagadores de salários repassados pelo Estado.

Além de todos esses aspectos, há baixa capacidade de coordenação da ESF sobre a rede hospitalar própria, contratada e das universidades, porque prosperam uma infinidade de sistemas de informação que regulam de forma desintegrada a rede hospitalar.

A terceirização de serviços, ao contrário do que certos autores defendem, não está relacionada a restrições financeiras, pois torna o serviço ainda mais caro, além disso, não resolve a questão da fixação de pessoal, ao contrário, impede a constituição de uma carreira que é o que realmente fixa profissionais. Portanto, sem um arcabouço de garantia para os trabalhadores da saúde, qualquer política de ampliação, ou qualquer medida de formação continuada terá resultados muito limitados.

Para tentar mudar esse quadro, duas intervenções foram realizadas pelo governo de Dilma, uma no âmbito dos hospitais universitários com a criação da EBESERH e outra no âmbito da Atenção Básica com a criação do Programa Mais Médicos (PMN).

A Lei Federal 12.550 de 15/12/2011 criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) para administrar hospitais universitários federais e hospitais das três esferas de governo a partir dos seguintes motivos: I - equacionar o problema da precarização da força de trabalho com contratos irregulares, por meio da adoção do regime celetista, o que significa o descompromisso com a realização de concursos públicos através do Regime Jurídico Único, solução existente nos marcos atuais da administração pública e II - autonomia financeira, adoção de normas e procedimentos próprios de compras e contratações.

Como se vê, os objetivos não foram modernizar a estrutura normativa do Estado, ao invés de tornar os instrumentos do concurso público e do orçamento público coerentes com as dinâmicas contemporâneas e com as necessidades de um Estado provedor, passou-se a formular mecanismos para fugir desses instrumentos, inclusive colocando os gestores públicos na condição de burladores de regras. Andreazzi (2013) salienta que na literatura sobre reforma do Estado pode ser identificada a passagem de uma primeira geração baseada na privatização e na descentralização, passando para uma segunda geração, reduzindo o papel

do Estado a financiador e regulador.

Para Andreazzi (2013), o objetivo de acabar com serviços próprios do Estado e terceirizar os setores mais lucrativos é uma das estratégias dos grandes negócios privados de serviços de saúde, como o diagnóstico e tratamento, que, no entanto, precisam dos investimentos públicos para a compra dos equipamentos biomédicos de alto custo. A autora menciona que essa tem sido a prática das Organizações Sociais do Estado de São Paulo albergadas sob o “estatuto não lucrativo, de inúmeras empresas lucrativas como forma de contornar as normas ainda vigentes do SUS quanto à contratação de empresas privadas”

(2013, p. 278).

A reflexão econômica sobre os sentidos e os efeitos dessas reformas do Estado deve ser realizada a partir dos interesses materiais envolvidos e, no caso da saúde, há interesses vorazes das empresas de medicamentos, farmoquímicos, equipamentos médicos que integram oligopólios e, mais recentemente, das seguradoras que tem se envolvido no setor de serviços, que antes estavam sob a dominação do pequeno capital66.

Já o Programa Mais Médicos se configurou como uma intervenção federal nos municípios, por meio de um planejamento nacional de impacto na Atenção Básica do ponto de vista da gestão de pessoal, com o Ministério da Saúde tomando a responsabilidade pela execução direta da maior parte das ações definidas. Dentre essas ações, o MS se encarregou de fazer o maior processo seletivo para contratação de médicos da história do Brasil, alocando mais de 18.000 profissionais na Atenção Básica (CAMPOS, PEREIRA, 2016, p. 2660). A maior parte desses profissionais foi contratada por uma cooperação internacional entre a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o governo brasileiro e o governo Cubano, que forma médicos gratuitamente e vende serviços para países interessados na medicina comunitária praticada naquele país.

Apesar desses médicos terem sido alocados em regiões onde os médicos brasileiros não tiveram interesse em atuar e de a população atendida demonstrar satisfação67 com os

66 Andreazzi cita um caso de dominação do mercado de hemodiálise por poucas empresas multinacionais que também fabricam o equipamento, como a Fresenius. Esta empresa atua fortemente no Brasil, também no setor de terceirização de serviços.

67 94,1% dos usuários entrevistados em 32 municípios avaliaram a consulta como “muito boa” e “boa” e 98,1%

declararam que o médico ouviu com atenção todas as suas queixas. 87% dos entrevistados compreenderam as