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Investimentos em políticas sociais e no sistema nacional de inovação

4.3 Ampliação da acumulação privada no âmbito do SUS

4.3.2 Investimentos em políticas sociais e no sistema nacional de inovação

Lula, desde o período eleitoral, se colocava contrário ao projeto estadunidense de formação de uma área de Livre Comércio das Américas (ALCA), apontando para o fortalecimento do eixo SUL-SUL e por ações no continente africano. No entanto, uma especulação fortuita do economista Jim O´Neill publicada no Goldman Sachs, em 2001, sobre mudanças geopolíticas jogou luz sobre quatro países gigantes, indicando que Brasil, Rússia, Índia e China se tornariam fundamentais para política e para econômica mundial, prenunciando assim o BRIC - (KISS, 2018, p. 167). O Brasil, sob comando de Lula, voltou-se a ideia do devoltou-senvolvimento desvoltou-se bloco que, posteriormente, incluiria a África do Sul, concretizando o BRICS.

Em primeiro lugar, o governo de Lula investiu na estruturação do Sistema Nacional de Inovação, fundamental para o setor saúde pelo alto dinamismo científico e tecnológico do setor, constituindo marcos legais e mecanismos de fomento e articulação entre os agentes públicos e privados dedicados a pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico.

Fonte: elaboração própria

A Política Industrial e Tecnológica e de Comércio Exterior (2003) apontava para dois eixos centrais, a organização do mercado interno com incentivos para produção de semicondutores, softwares, fármacos e bens de capital e ampliação do Brasil no comércio exterior e depois foi desdobrada na Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS) e na Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde, com a condução sob a responsabilidade da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE).

No caso dos fármacos, Kiss (2018) salienta que vários atores se organizaram para influenciar na formulação da política, dando ênfase ao Fórum de Competitividade da Cadeia Produtiva Farmacêutica como ator relevante para garantia do ambiente político-institucional que viabilizasse a concertação entre os interesses do setor público e do setor privado. A ampliação da assistência farmacêutica convergia interesses entre o governo e a burguesia interna e estrangeira e teria sido “a principal agenda de convergência entre o governo e o setor privado” (KISS, 2018, p. 172).

Parte dessas regulações para o campo da ciência e tecnologia derivaram da 1ª Conferência de Ciência e Tecnologia em Saúde realizada em 1994, que encaminhou pela necessidade uma política de C&T e uma agenda específica para saúde, propondo a criação de uma secretaria de ciência e tecnologia no Ministério da Saúde concretizada somente no

Figura 15 - Marcos legais para o sistema de inovação

2003 Politica Industrial e tecnológica

e de Comércio

exterior

2004 Política Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação em

Saúde

2007 Programa Mais Saúde priorizou o

CEI

2008 Política de Desenvolvi mento Produtivo

(PDP) CEIS como

área portadora de

futuro

2011 Plano Brasil

Maior Investimen

tos especificos

no CEIS

2012 Lei 12.715 Inovações na

política de inovação nacional

governo de Lula, em 2003 que tratou de criar um ambiente regulatório propício a inovação.

Foi promulgada a Lei nº. 10.973 de 2004 (conhecida como Lei de Inovação) que criou os incentivos para pesquisa científica e tecnológica ligada ao setor produtivo e a Lei nº.

11.196 de 2005 (conhecida como Lei do Bem), que criou deduções e compensações fiscais para pesquisa, visou destravar burocracias e incentivar o desenvolvimento tecnológico para o setor privado.

Em segundo lugar, a nomeação de personagens ligados ao movimento da Reforma Sanitária em postos importantes do Ministério da Saúde, assim como a própria reorganização do Ministério, mais alinhada com os desafios do SUS, foram considerados sinais de que a agenda do final dos anos de 1980, e que havia sido abandonada no final dos anos de 1990, voltaria a predominar, como ressalta Maria Inês Souza Bravo (2006).

Entretanto, a autora demonstra que algumas mudanças poderiam ter ganho maior escala, citando, por exemplo, que a 12ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) poderia ter voltado a discutir a concepção ampla do sistema de seguridade social brasileiro.

Além disso, ela registra continuidades da política de saúde dos anos de 1990, criticando a ênfase na focalização em detrimento de ações de abrangência universal, além da precarização e terceirização dos vínculos trabalhistas no setor da saúde. Como exemplo de focalização, Bravo destaca que o Programa Saúde da Família, que havia sido implantado em 1994, permanecia sem a alteração significativa, especialmente quanto a atenção básica, mantida sem a organicidade necessária e servindo como extensão de cobertura para as populações carentes (BRAVO, 2004 e 2006).

A focalização é uma crítica válida e é possível que o modelo de planejamento58 adotado pelas escolas de gestão pública e pelo governo federal desde a década de 1990 tenha contribuído para políticas com recortes focais. Mas as políticas públicas precisam ser consideradas de modo amplo, especialmente no caso da saúde, cuja perspectiva central adotada desde Alma Ata aponta para uma visão ampliada de saúde, considerando as

58 Na década de 1990 o modelo de Planejamento Estratégico Situacional (PES) de Carlos Matus se tornou hegemônico na Administração Pública. Nesse modelo, a ‘situação’ é entendida como um conjunto de problemas identificados, descritos e analisados, cujas propostas de mudança serão base para planos de curto e médio prazo.

Nesse período houve a disputa entre o modelo de Matus e de Mário Testa, este último entendia o planejamento estratégico a partir de três momentos: o diagnóstico situacional, o poder (técnico, administrativo e político) e o postulado de coerência (propósitos do Estado, métodos empregados e organizações executoras).

condições de vida como determinantes para o processo de saúde ou de adoecimento. Portanto, políticas contra a pobreza e investimentos em educação, ciência, emprego, moradia e renda, também devem se devem ser consideradas.

Nesta direção, Telma Maria Gonçalves Menicucci (2011) salienta que a ênfase em políticas focais se justifica porque os problemas não são iguais e que na perspectiva da equidade, o atendimento das necessidades específicas de grupos específicos não colide com a universalização de direitos, muito ao contrário. Assim, políticas para mulheres, ações para a Saúde do trabalhador, prevenção de DTS/AIDS são medidas que visam atacar problemas que envolvem grupos com características particulares, materializando o direito individual e coletivo.

Na linha de atacar os problemas específicos, em 2003 foi editada a Portaria nº 2.048 do Ministério da Saúde, tratando da área de Urgência e Emergência como um componente fundamental da assistência à saúde, nacionalizando o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) por meio da Portaria nº 1.864 de 2003, ampliando a experiência de Municípios de São Paulo e Porto Alegre, para todo o Brasil. O SAMU faz parte da Política Nacional de Atenção às Urgências e inclui as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e a Rede de Urgência e Emergência.

Em sua tese de doutorado, Kiss (2018) também comenta que as ações no setor farmacêutico no primeiro mandato de Lula foram continuidades de medidas iniciadas pelo governo anterior e que estavam concentradas, ou seja, focalizadas na agenda regulatória de preços, na expansão dos medicamentos genéricos e no fortalecimento da ANVISA, no entanto, a autora destaca o protagonismo do BNDES nos programas de incentivo à produção industrial farmacêutica.

Já Menicucci (2011) argumenta que o governo Lula foi mais inovador que o anterior quanto ao processo de implantação dos princípios do SUS, salientando que, apesar de a saúde não ter figurado de forma destacada no plano de governo, durante o primeiro mandato foram feitas mudanças setoriais importantes, como a política de saúde bucal59, o SAMU e a ampliação do acesso a medicamentos e, mesmo nos aspectos que denotam continuidade de

59 O ‘Programa Brasil Sorridente’ foi considerado a primeira política abrangente de cuidados odontológicos:

‘entre 2002 e 2006 as equipes de saúde bucal passam de 4.260 para 14.244, atendendo a 69.700.000 pessoas’

(Menicucci, 2011, p. 525)

políticas anteriores, o aprofundamento e a amplitude do investimentos remodelaram programas estratégicos, como o Saúde da Família (PSF) que teve um aumento de 57% do número de equipes de saúde, da atenção básica cujo piso de R$ 10,00 que vigorava desde 1988 foi aumentado para R$ 15,00 per capita e o impulso na Reforma Psiquiátrica, com expansão dos Centros de Atenção Psicossocial, indicando que essas foram medidas fundamentais para a integralidade da assistência (MENICUCCI, 2011, p. 525).

O acesso aos medicamentos permaneceu como um dos desafios do governo Lula. A relevância dos medicamentos nos cuidados de saúde sempre impõe dificuldades aos governantes, que precisam regular o acesso, a disponibilidade, o preço, a segurança e o uso racional. Do ponto de vista mercadológico, há ainda dificuldades adicionais, porque a indústria de medicamentos é forte, lucrativa e oligopolizada. Para além desses aspectos, o fato de a saúde ter se tornado direito fundamental e dever do Estado no Brasil alimenta um mercado que utiliza medidas judiciais para obrigar o Estado a pagar por tratamentos, mesmo que não estejam incorporados ao SUS.

Frente a esses desafios, programas de produção pública e controle de preços foram estratégias adotadas no Brasil. No governo de FHC, a produção pública ganhou impulso sobretudo durante a epidemia do HIV, como já mencionado. Já o controle de preços foi um cabo de guerra permanente até o final do mandato. Com o aumento dos insumos importados e a extinção da política de compras centralizadas da CEME, criou-se um ambiente de insatisfação por parte da burguesia do setor, mesmo após aumentos concedidos acima do nível da inflação e da ampliação do mercado interno com a política dos genéricos.

Essa insatisfação foi captada pelo governo Lula que definiu três componentes para ampliar o acesso aos medicamentos: usar o poder de compra do Estado novamente, fortalecer os Laboratórios públicos oficiais e criar o Programa Farmácia Popular, tendo o BNDES como protagonista no fomento para a indústria farmacêutica.

Por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde e do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma) segmentou-se o investimento em três componentes: I. produção, II. fortalecer empresas de controle nacional, III. pesquisa, desenvolvimento e inovação. Durante os três anos de vigência (2003-2007) foram consumidos mais de R$ 1 bilhão. No entanto, a maior parte dos recursos foi dedicada as grandes empresas, o que resultou em maior concentração do setor (RODRIGUES, COSTA e KISS, 2018).

De todo modo, houve apoio também para as pequenas e médias empresas no âmbito da PITCE com linhas de investimentos em inovação pelo BNDES e pela Finep que incluiu linhas de capital de giro pelo BNDES e pela Caixa Econômica Federal.

Também houve tentativa de facilitar a abertura de novos empreendimentos, com o Projeto de Lei nº. 6.529 de 2006. Esse projeto visava a simplificação e integração do processo de registro e legalização de empresários e de pessoas jurídicas e pretendia criar a Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – REDESIM. Essa medida favoreceria a criação de negócios, destravando burocracia. Os empreendimentos de base tecnológica se beneficiariam ainda da Lei de inovações com investimentos, subsídios e preferência de compras do governo. No entanto, o projeto foi arquivado.

O Programa Farmácia Popular do Brasil foi criado pela Lei nº. 10.858 de 2004 para disponibilização exclusiva por uma rede própria de farmácias formadas e geridas pela Fiocruz em cooperação com os Estados e os Municípios visando contribuir com a assistência farmacêutica fornecendo um elenco de medicamentos essenciais subsidiados com recursos públicos do Ministério da Saúde.

Em 2005, Humberto Costa (PT) foi substituído no Ministério da Saúde por Saraiva Felipe (MDB) no contexto de crise política devido a ameaça de impeachment do presidente Lula no episódio do “mensalão” que forçou a ampliação da base do governo (FELIPE, 2021, p. 226).

Saraiva Felipe fez um mandato de continuidade, com ênfase na criação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2006 e nos processos de monitoramento e avaliação, necessários para melhorar continuamente os serviços prestados e para justificar o investimento financeiro. Fez mudanças importantes na Estratégia Saúde da Família, ampliando recursos para as equipes e tornando a distribuição mais equitativa entre as regiões brasileiras.

Modernizou o fluxo de financiamento para as ações de saúde, substituindo as mais de cem “caixinhas” utilizadas pelo Fundo Nacional de Saúde para realizar o repasse de recursos para Estados e Municípios, por cinco blocos de financiamento: (I) Atenção à Saúde de Média e Alta Complexidade; (II) Atenção Básica em Saúde; (III) Vigilância em Saúde; (IV) Medicamentos e Insumos; (V) Desenvolvimento Institucional (FELIPE, 2021, p. 246).

Sobre o Programa Farmácia Popular, Saraiva Felipe decidiu aplicar o Decreto nº 5.090 /2004 que admitia a disponibilização de medicamentos também pela rede privada de farmácias e drogarias. Conforme expôs em sua tese de doutorado, por considerar que os estabelecimentos geridos pela Fundação Oswaldo Cruz ficavam longe do local de moradia dos usuários e que o custo do deslocamento, muitas vezes, superava o preço do medicamento, achou mais prático que a rede privada, já estabelecida, fornecesse os itens.

No entanto, no estudo realizado por Rondineli Mendes da Silva e Rosangela Caetano (2015), foi identificado que o número de pessoas atendidas pelo Programa Farmácia Popular do Brasil foi de 11.730.103 milhões por meio de 558 farmácias da rede própria, distribuídas em 441 municípios brasileiros, em 2012, enquanto na rede privada – “Aqui Tem Farmácia Popular” – os números são de 25.122 farmácias, cobrindo 3.730 municípios, atendendo 12.953.105 usuários (2015, pp. 6 e 8). É curioso observar que ampliação do programa para a rede privada não significou aumento relevante do público atendido, considerado o número de estabelecimentos privados envolvidos.

O estudo aponta ainda outro dado importante, indicando que o Programa Farmácia Popular contribui para minimizar falhas na provisão pública de medicamentos, mesmo com um elenco de medicamentos delimitado, mas não é só isto, é um programa que reproduz a lógica da universalidade do acesso, na medida que não exige receituário da rede pública, permitindo que não usuários do SUS se beneficiem dessa política. Silva e Caetano (2015) citam que 46% das pessoas que adquiriram medicamentos na rede própria apresentaram receituário do SUS (2015, p. 2951), sendo possível concluir que mais da metade do público atendido possui recursos para compra de serviços de saúde, mas depende do SUS para garantir seu tratamento.

Para Kiss (2018) o governo Lula buscou conciliar os interesses da burguesia interna com a necessidade de maior acesso aos medicamentos por parte da população e privilegiou o setor privado, optando por “universalizar o acesso a medicamentos essenciais por meio do setor privado” (2018, p. 199). A autora reconhece na relação entre Lula e o empresariado brasileiro uma aliança para construção do Estado desenvolvimentista, mas pondera que teria sido necessária a construção de uma burocracia estatal forte e autônoma para identificar e gerir interesses corporativos e interesses coletivos.

Aponta elementos que teriam fragmentado a política de ampliação de acesso aos medicamentos, destacando que a ampla aliança feita pelo Partido dos Trabalhadores pode ter sido prejudicial à política devido à intensa disputa pelos cargos.

Entretanto, podemos notar que a pasta do Ministério da Saúde no primeiro e no segundo mandato do Presidente Lula foi estável e contou com nomeações técnicas e alinhadas aos ideais da saúde coletiva. No primeiro mandato, a pasta teve como titular Humberto Costa, substituído posteriormente por Saraiva Felipe. Depois, foi o próprio Saraiva Felipe que tomou a decisão de sair do Ministério da Saúde para disputar o quarto mandato como deputado federal por Minas Gerais, tendo sido dele a sugestão de indicar o nome do secretário executivo, José Agenor, como interino até 2007, quando assumiu a pasta José Gomes Temporão, “continuando um ciclo de sanitaristas que participaram, desde antes da Constituição Cidadã, do processo de construção do SUS” (FELIPE, 2021, p. 251).