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Implementação do Sistema Único de Saúde no governo neoliberal

4.2 Mecanismos de transferência de valor e o SUS

4.2.1 Implementação do Sistema Único de Saúde no governo neoliberal

Durante o processo de ampliação da cobertura de saúde, a corporação médica estava dividida, havia o grupo progressista com Mário Magalhães, Carlos Gentile de Mello, Mário Victor de Assis Pacheco, Hesio Cordeiro, Eleutério Rodrigues, Sérgio Arouca, entre outros, os movimentos de Renovação Médica (REME) muito fortes e dominantes no meio sindical dos maiores centros do país e a burguesia representada pelos empresários da saúde formando um polo de pressão contra a ideia da saúde universal. Esses atores, ativos durante a Assembleia Constituinte, conseguiram conquistar um único artigo que consolidou a dualidade existente no Brasil – saúde pública e saúde individualizada, porém em novas dimensões.

O artigo 19939 da Constituição Federal de 1988 manteve o setor de saúde como um sistema de mercado a ser explorado, no entanto, determinou os contornos em que essa exploração deveria ocorrer, como se o capitalismo reconhecesse e se intimidasse por limites pré-determinados. A exploração comercial do setor deveria se dar de forma completar ao SUS e, segundo as diretrizes da política pública, sendo determinadas duas vedações, uma que proibia a destinação de recursos do Estado para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos e outra que proibiu a participação, direta ou indireta, de empresas ou capital estrangeiro na assistência à saúde no Brasil, salvo nos casos previstos em lei.

39 Art. 199 da CF 1988. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

Como veremos, ambas as vedações caíram por terra e o limite imposto como atividade complementar, ou seja, em segmentos em que o SUS não participasse, foi completamente ignorado pelo capital e pelo próprio Estado governado por políticos alinhados a medidas determinadas pelo centro hegemônico, sobretudo na metade dos anos de 1990.

Assim, o Brasil viveu o paradoxo de aprovar uma Constituição voltada ao bem-estar social em 1988 e eleger projeto dedicados a reduzir o papel social do Estado com Fernando Collor de Mello em 1989 e Fernando Henrique Cardoso em 1994.

Collor, filho da velha oligarquia brasileira40, concentradora de renda e violenta em sua participação política, cumpriu uma etapa do enquadramento da América Latina ao Consenso de Washington, em especial, para conter os movimentos da esquerda que se projetaram nacionalmente.

Dentre seus primeiros atos, no mês de abril de 1990, Collor implantou um plano econômico que confiscou depósitos bancários, inclusive a caderneta de poupança, por meio da Lei 8.024/90. Em seguida extinguiu instituições do executivo federal com a Lei 8.029/90, congelou preços e salários com a Lei 8.030/90 e instituiu o Programa Nacional de Desestatização com a Lei 8.031/90, criando o espaço normativo para as privatizações no Brasil. Além disso, destruiu a política de proteção à indústria nacional, particularmente o Anexo C da CACEX (mencionado adiante), elaborou e encaminhou, em regime de urgência o projeto de lei que reconheceu patentes de forma mais radical do que o determinado pelo TRIPS.

Além das privatizações, as medidas de abertura comercial que estavam em curso desde a metade de 1980 foram ampliadas por meio da revogação de isenções, redução do Imposto de Importação (II) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) com a Lei 8.032/90, causando impacto significativo em projetos de desenvolvimento dependentes de insumos importados, inclusive com a suspensão de novos projetos no âmbito do BEFIEX41

40 Fernando Collor de Mello nasceu no RJ, filho do político Arnon de Melo – governador e senador por Alagoas e sua família tinha o domínio do sistema de comunicação regional, sendo donos de um jornal, da TV Gazeta, de três emissoras de rádio e de uma gráfica. Seu avô -, Lindolfo Collor, foi deputado federal e integrou o governo provisório de Getúlio Vargas, de quem se afastou para integrar a oposição e a Revolução Constitucionalista de São Paulo. O pai de Collor foi um político agressivo e chegou ao ponto de assassinar um homem inocente com três tiros, dentro do Congresso brasileiro, ao tentar atingir um adversário político.

41 Comissão para Concessão de Incentivos Fiscais e Programas Especiais de Exportação (Befiex) visava estabelecer contratos com empresas instaladas no Brasil para isenção dos impostos sobre os insumos importados.

(BAUMANN, 1990)

No campo da ciência e tecnologia, a capacitação nacional em química fina para substituição de importações, que até então contava com o apoio do governo por meio de medidas protecionistas, investimentos do BNDES, produção pública pela CODETEC, garantia de mercado pela CEME, apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) para projetos de pesquisa, foram modificadas radicalmente, começando pela extinção da Carteira de Comércio Exterior (CACEX).

No anexo C da CACEX estavam inclusos os produtos beneficiados pela Portaria Interministerial nº. 4, que elevava as alíquotas de importação para fármacos e que havia contribuído para organização do mercado interno como já mencionado. Assim, Collor fez a

“gestão da dependência”, atuando para gerar vantagens para burguesias estrangeiras, numa espécie de padrão ou ciclo em que o Estado investe em um setor, em seguida abre esse setor para exploração da burguesia interna que, após se beneficiar, cede o segmento para burguesia estrangeira acumular capital em níveis mais avançados.

Gadelha (1990) aponta que a extinção da CACEX criou obstáculos para o processo em curso pela CEME quanto ao investimento e a estruturação de atividades de internalização da produção farmacêutica de princípios ativos, iniciando o esvaziamento de funções primordiais da empresa pública no ramo farmacêutico, prejudicando a oferta pública e o mercado privado42.

Apesar do governo privatista de Collor, o SUS começou a avançar, porém desconectado de uma base de produção de insumos. Em 1990 uma nova etapa da luta pela saúde pública foi iniciada, tratava-se de elaborar a norma infraconstitucional que determinaria as diretrizes do sistema universal de saúde aprovado na CF/88.

Levcovitz (2019) acredita que se a CF tivesse sido editada na década de 1950, quando o Welfare State era considerado um modelo de política de desenvolvimento e um padrão a ser seguido pelas nações democráticas, não haveria dificuldades para o Brasil

O objetivo era internalizar a produção de manufaturados, ampliando o parque produtivo para abastecer o mercado interno e aumentar a participação no mercado externo.

42 A CEME era responsável por 30% a 40% do valor de vendas da Companhia Brasileia de Antibióticos (CIBRAN), além de contar com financiamentos do BNDES ((GADELHA, 1990, pp. 242, 256).

absorver as atribuições inerentes ao novo modelo de bem-estar social. No entanto, o que a TMD nos aponta é que isto é pouco provável, uma vez que a integração da América Latina no sistema produtivo global visou manter os níveis de acesso aos bens primários para que as economias desenvolvidas se dedicassem as operações mais lucrativas, além de ser um novo mercado para extração de valor e foi justamente por isso que conseguiram estruturar uma poupança interna que os permitiu desenvolver sistemas de seguridade social sofisticados.

Isto fica claro na reflexão que Marini elaborou sobre a totalidade do fenômeno do desenvolvimento e do subdesenvolvimento como componentes de um mesmo processo, destacando que o objetivo da integração capitalista da década de 1950 não foi o desenvolvimento de regiões, mas a busca por taxas de lucro para além das fronteiras dos países centrais, “em função da acumulação de capital em escala mundial, e em particular em função de seu instrumento vital, a taxa geral de lucro, é que podemos entender a formação da economia dependente” (1973, p.24). Assim, a América Latina, mantida como fornecedora de bens primários, permitiu que países centrais se dedicassem as atividades mais complexas, mudando seu padrão de acumulação capitalista para mais valia relativa, e em alguns casos, mais valia extraordinária.

Além disso, Leda Maria Paulani (2006) identifica que a transformação na concorrência capitalista que se estabeleceu ao longo dos anos de 1970 e 1980 se deu acompanhada da transnacionalização dos grandes detentores do capital ancorado em movimentos “por mais liberdade e menos regulação” para se estabelecerem entre estruturais empresariais no plano mundial “com variados graus de profundidade, de terceirizações, franchising, parcerias e acordos de cooperação” (2006, p.18). Então, além da produção estrangeira ter se espalhado nas periferias, desnacionalizando os sistemas de produção local, também se lançou no setor de serviços.

A transnacionalização fez os investimentos migrarem para regiões em determinados nichos econômicos que poderiam ser explorados e foi isso que aconteceu no Brasil após a promulgação da CF de 1988, de forma geral, e, na saúde em específico, tanto assim que Levcovitz relata que as gráficas ainda imprimiam a Constituição Federal quando forças internas e estrangeiras se engajavam na eleição de políticos que poderiam deter a materialização de um “modelo de proteção social concebido como ação do Estado, universal, de diretrizes solidárias e baseado em políticas públicas abrangentes, unificadoras e redistributivas” (2019, p. 32).

A experiência como participante do difícil processo de negociação da política de saúde, aprovada pela CF com o Secretário Executivo, que detinha o controle do orçamento da União, Luiz Romero Farias, irmão do tesoureiro da campanha de Collor - Paulo Cezar Farias43, descrita por Levcovitz, é sintomática sobre os interesses que esse governo representava. Além disso, havia forte oposição da Federação Brasileira de Hospitais44 e da Federação Nacional de Estabelecimentos de Serviços de Saúde45 quanto à descentralização que o SUS propunha.

A transferência do INAMPS do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) para o Ministério da Saúde ocorreu em marco de 1990 (Dec. nº. 99.060), portanto, antes da edição da Lei nº. 8.080 que se deu em setembro de 1990 e isto iniciou uma implantação enviesada do SUS, porque a lógica do INAMPS foi mantida, inclusive, quanto aos formatos e limites de recursos para os entes (SOUZA, 2003).

Quando foi promulgada, a Lei nº.8.080/1990, que definiu o nome do SUS, sua forma de organização, seus objetivos, responsabilidades entre os três entes federativos representou uma importante inovação no sistema jurídico brasileiro, embora não seja estudada com a profundidade que deveria ter nos currículos de graduação em direito, economia e, muitas vezes, nem mesmo nos currículos das graduações que formará os futuros profissionais de saúde.

Dentre as inovações, a Lei nº. 8080/1990 determinou a regionalização como forma organizativa e operativa da política de saúde, o que significa que não são os limites geográficos, mas o território em que a população vive e trabalha que deve ser levado em conta para o planejamento das ações de saúde. Nesse sentido, os planos de saúde dos Estados devem ser integrados de forma ascendente, contemplando as prioridades comuns através de linhas estratégicas direcionadas pelo Conselho Nacional de Saúde.

43 Paulo Cesar Farias foi personagem principal do escândalo de corrupção que culminou no processo de impeachment de Fernando Collor de Mello.

44 Fundada em 1966, portanto, durante o processo de expansão das empresas médicas.

45 Fundada em 1983, portanto, quando as AIS foram ampliadas em todo Brasil.

Figura 12 - Projetos políticos em disputa (1990-2000)

Fonte: elaboração própria

A negociação para promulgação da Lei orgânica do SUS, nº. 8080/1990, também foi difícil, tanto que vinte e cinco artigos foram vetados por Collor de Mello, nos aspectos que diziam respeito ao controle social e ao financiamento da política de saúde. A Lei nº.

8.142/1990, editada em dezembro também de 1990, mostrou a resiliência dos militantes, recuperou o componente da participação comunitária, mas a questão do financiamento permaneceu com várias lacunas.

O Governo de Collor durou dois anos e duzentos e oitenta e nove dias (1990-1992) e as dificuldades no financiamento foram muitas, causadas principalmente pela não implantação do orçamento da seguridade social, que provocava instabilidade nas fontes de receita, com destaque para a baixa participação da União (LEVCOVITZ, LIMA e MACHADO, 2001).

Aliás, a participação da União na realidade foi reduzida de 18,9% em 1989 para 9,1% em 1993 (LEVCOVITZ 1997, apud RODRIGUES, 2014 p. 164), quando o recurso deveria ter crescido para estruturar a nova política pública.