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2OBJETIVOSEMÉTODODEPESQUISA

desse estudo, foram recuperados aspectos históricos que entrelaçam as políticas públicas de saúde e as políticas econômicas, que, a meu ver, são indissociáveis. Também foram descritos momentos de rupturas que resultaram em graves crises econômicas e sociais, que, se por um lado serviram de argumentos para recuos nas políticas de desenvolvimento, por outro fizeram emergir lutas sociais e conquistas em defesa da sociedade.

Os ideais da universalidade e da integralidade propagados pelo SUS permanecem desafiados, devido ao paradoxo de limitar a ação do Estado quando a sociedade necessita cada vez mais de ações coletivas e amplas que somente o Estado é capaz de executar. Por isso, a escolha por uma abordagem macropolítica da pesquisa com centralidade ao Estado é a justificativa da pesquisa e na relevância foi destacada a adoção da Teoria Marxista da Dependência como referencial, até então, inédito no campo da saúde coletiva.

O estudo sobre os desafios presentes no desenvolvimento da política pública de saúde, ao assumir essa abordagem teórica, inicia um caminho ainda não percorrido, o que Alberto M. Bento e Maria Regina D. Ferreira (1982) indicam como pesquisa do tipo exploratória. Esses autores consideram que as pesquisas sociais consistem em ação de leitura e interpretação da realidade e podem oferecer contribuições a partir de quatro categorias de informações, remetendo a um sistema de degraus cumulativos com informações sugestivas, preditivas, decisivas e sistêmicas, apontando que as pesquisas exploratórias são as que contribuem para o primeiro degrau desse sistema, gerando informações sugestivas que darão maior familiaridade e uma nova compreensão sobre o fenômeno. Os autores reforçam que as pesquisas exploratórias têm por objetivo sugerir perguntas e não indicar conclusões, formulando hipóteses, ao invés de começar por elas.

Para eles, a principal contribuição desse tipo de pesquisa é identificar a natureza dos problemas com maior precisão (BENTO e FERREIRA, 1982, p.10) e, a partir disso, novos degraus podem ser escalados. Donaldo de Souza Dias e Mônica Ferreira da Silva (2009) salientam que para consistência das pesquisas exploratórias é essencial uma compilação com textos dos principais autores, identificando as contribuições mais relevantes e as lacunas que não foram exploradas. A priori, o resultado não será necessariamente um conjunto de conclusões, mas informações sugestivas que busquem melhor entendimento e que indiquem aspectos relevantes, caminhos e hipóteses para estudos futuros.

Antônio Carlos Gil (2008) chama atenção sobre não existir uma fórmula a ser seguida nas pesquisas sociais, ressaltando que o desenvolvimento dependerá da capacidade,

do estilo e dos cuidados que o pesquisador deve adotar para chegar a resultados válidos. Sobre a natureza dos resultados, ele alerta que os achados devem ser considerados sempre como uma visão parcial e transitória da realidade, dado que o pesquisador não consegue olhar os fenômenos sociais, complexos como são, sob todos os ângulos. Jaime Osório (2004) e Cecília Minayo (2007) seguem a mesma perspectiva e afirmam que as pesquisas sociais não estão obrigadas a apresentar respostas definitivas, pois diferente das leis imutáveis da natureza, os fenômenos sociais se modificam conforme a dinâmica histórica da sociedade.

Isto não quer dizer que pesquisas desta natureza estejam isentas dos rigores científicos, ao contrário, a validação de suas conclusões deve ser precedida da seleção e da análise cuidadosa das fontes de informação, de modo a evitar que o esforço da pesquisa resulte em especulações ou apenas confirme conclusões que seriam alcançadas pelo senso comum. Sobre as fontes utilizadas nesse estudo, foram todas referenciadas ao longo do texto e na lista das referências, mas há um conjunto de informações disponibilizadas que são fruto da minha vivência profissional na Fundação Oswaldo Cruz, atuando em cargos gerenciais que possibilitaram o contato direto com questões, decisões, desenvolvimento de políticas e suas consequências.

Voltando a questão dos resultados, Osório (2004) aponta que o estudo de fenômenos sociais implica conhecer trajetórias e por isso reforça a importância de recuperar contextos históricos de modo que aspectos relevantes para a pesquisa não permaneçam encobertos, assim como é fundamental fazer as conexões internas, como nos ensinou Marx ao refutar conhecimentos que se descolam da realidade e que utilizam construções teóricas que não distinguem aparência e essência.

A partir dessas orientações sobre o método, foi desenvolvida a seguinte pergunta para guiar a pesquisa: “como o capitalismo dependente se expressa no interior do sistema público de saúde brasileiro?” e a pesquisa do tipo exploratória permitirá ampliar o conhecimento a respeito de fenômenos ou teorias com pouca informação acumulada e organizada sobre o setor de saúde, como é o caso do uso da TMD no campo da saúde coletiva.

Este referencial teórico permitiu, inclusive, pensar em uma hipótese plausível, assim como foi feito o esforço de apresentar alguns resultados, ainda que preliminares. Portanto, a caraterística exploratória está relacionada ao campo em que o referencial está sendo aplicado e visa contribuir para o imenso acervo de conhecimento da área da saúde coletiva a partir dessa nova abordagem.

A adoção da TMD como referencial teórico é uma iniciativa pioneira no setor de saúde, se tratando de uma construção intelectual genuinamente desenvolvida por autores latino-americanos que conseguiram captar e demonstrar que a condição estrutural de capitalismo dependente é geradora de contradições internas que dificultam o avanço das políticas industriais, comerciais e tecnológicas (ICT). A TMD tem potencial para ir além das explicações naturalizadas como falhas de mercado, das soluções que reforçam mecanismos de mercado no interior da política pública de saúde e das discussões fragmentadas sobre financiamento, dependência de insumos, dificuldade de integração em rede, dificuldade de provisão de pessoal, como se cada um desses problemas fosse uma questão isolada e não intrínseca a capacidade concreta do Estado consolidar uma política que já ultrapassou seus trinta anos. O propósito com o uso da TMD é ampliar as possibilidades de aplicação desse referencial crítica, contribuindo com perspectivas que permitam discutir o desenvolvimento de políticas públicas intensivas em ciência e tecnologia do setor de saúde sob a ótica da dependência estrutural.

Foi priorizado o referencial teórico de Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, intelectuais que desenvolveram conceitos e categorias que explicam a subordinação e dominação decorrentes da divisão internacional de trabalho estabelecida pelos países centrais. Esses brasileiros provaram o fel dessa terra no período da ditatura militar, foram exilados e silenciados por seus ideais, mas conseguiram, mesmo sob as piores condições possíveis, estabelecer as conexões necessárias para que hoje seja possível refletir sobre o capitalismo dependente e suas consequências para América Latina.

O primeiro capítulo apresenta também a produção de Mathias Luce (2018), autor que tem se dedicado a recuperar a TMD, atualizando as análises para o contexto atual de hegemonia do capital financeiro e das grandes corporações transnacionais, contribuindo para difusão e aperfeiçoamento das linhas centrais dessa importante referência crítica ao capitalismo que se desenvolveu na América Latina. Para além dessas referências, foi elaborado o levantamento bibliográfico a fim de recuperar produções acadêmicas e bibliográficas que utilizaram a TMD em pesquisas relativas as políticas sociais. O levantamento foi realizado entre os meses de abril e junho de 2020 nas bases de dados do Portal de Periódicos da Capes e no Google Acadêmico, tendo essa última plataforma apresentado maior capacidade de recuperação na busca livre.

O recorte temporal foi de 10 anos (2010 a 2020) e foi utilizado inicialmente o termo

“teoria marxista da dependência”. Foram recuperados 47 registros no Portal da Capes e 1.160 no Google Acadêmico. Em seguida a pesquisa foi refinada adotando-se “teoria marxista da dependência” AND “política social”, reduzindo a amostra para 3 publicações no portal da Capes e 234 no Google Acadêmico. Quando adicionada a palavra “saúde”, ambas as plataformas recuperam apenas uma publicação relativa ao estudo sobre a reforma psiquiátrica à luz da TMD, demonstrando que a produção acadêmica na área da saúde tem um amplo espaço para explorar esse referencial e assim alcançar novas perspectivas sobre o desenvolvimento das políticas sociais no Brasil.

Por outro lado, a recuperação de uma grande produção utilizando a TMD como base teórica em estudos de economia política revela a potência da teoria, especialmente após o ano de 2016, quando se avolumou um número maior de achados.

Do ponto de vista da operacionalização da pesquisa, os objetivos estão conectados e considerados nos capítulos três, quatro e cinco. No capítulo três foi descrita a trajetória da saúde universal no sistema capitalista sob o ponto de vista da luta de classes e da conquista de direitos durante a Revolução Russa de 1917, passando pela experiência de Dawson em 1920 até o relatório de Beveridge (1944) e seus desdobramentos após a segunda guerra mundial.

Recuperar esse histórico é importante porque o SUS segue a linhagem do modelo de Semashko e de Beveridge, que eliminaram a distinção por classe social para o acesso aos bens e serviços de saúde, assim como o modelo de financiamento coletivo e de política de Estado, portanto essas duas referências são fundamentais para interpretação do Sistema Único de Saúde definido no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, mesmo que, no caso brasileiro, a Constituição Federal tenha admito a exploração privada do setor em seu art. 199.

A partir do capítulo quatro, foram apresentadas linhas do tempo integrando os marcos do processo de desenvolvimento da política de saúde pública, do desenvolvimento de políticas de ciência e tecnologia para o setor de saúde e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento de políticas de interesse do setor privado de saúde. Para composição das linhas do tempo foram realizadas pesquisas documentais em arquivos públicos, base de dados, e documentos institucionais.

Os critérios para inclusão ou exclusão dos dados que compuseram as linhas foram exatamente o impacto que a ação do Estado provocou na política pública da saúde, contextualizando tais ações com os deslocamentos provocados no setor de ciência e

tecnologia, e no setor privado de saúde, como foi o caso da política relativa a AIDS que impactou na política de produção interna, na interpelação dos direitos de propriedade intelectual e na produção e circulação de medicamentos genéricos no Brasil. O encadeamento desses fatos tem o objetivo de possibilitar uma análise integrada, visando romper as barreiras que Osório (2004) chama de conhecimento de superfície, em que relações de um mesmo processo estão escondidas ou até mesmo distorcidas.

A partir dessa integração, alguns fatos foram selecionados para traçar relações que demarcam a disputa entre projetos políticos de 1970 até os dias atuais, identificando ações do Estado que asseguraram os interesses da burguesia interna e estrangeira, cumprindo o primeiro objetivo específico da pesquisa, no capítulo quatro.

Sobre a classe burguesa, esta tese adota o conceito de burguesia interna proposto por Poulantzas, segundo o qual as classes burguesas nacional e interna apresentam comportamento distinto em relação ao capital estrangeiro e as classes populares. Segundo Danilo Enrico Martuscelli (2010), Poulantzas conceitua burguesia nacional como uma fração de classe cujas atividades têm predomínio comercial e exportador, possui base de acumulação própria, tem atitudes e comportamentos de defesa da ampliação do mercado interno, tem boa aceitação de políticas de redistribuição de renda, direitos sociais e trabalhistas para desenvolver o próprio mercado nacional de massas. Esse comportamento facilita a adesão à ideologia nacionalista, possibilitando que essa fração participe, junto com setores das classes populares, de frentes nacionais ou anti-imperialistas.

A burguesia interna tem uma relação de dependência financeira e tecnológica em relação ao centro hegemônico e a fragilidade político ideológica em relação ao capital estrangeiro acaba impedindo essa classe de exercer hegemonia política no bloco no poder, e portanto, está limitada a renegociar a hegemonia exercida pela burguesia compradora (associada) com a qual coexiste no bloco no poder. O resultado é a coexistência subordinada em relação à burguesia compradora (associada). Martuscelli (2010) destaca que a burguesia interna está ligada aos setores da atividade produtiva, fortalecendo sua posição favorável ao desenvolvimento industrial, e dificilmente assume uma posição anti-imperialista. Tem dificuldades para formar alianças com amplos setores das classes populares, sendo improvável que se configure como uma burguesia nacional, cuja característica clássica é o de oposição ao imperialismo dominante.

No capítulo quarto capítulo também se discute as categorias da transferência de valor, a cisão no ciclo do capital e a superexploração do trabalho no setor de saúde, cumprindo o segundo objetivo específico. O propósito do capítulo foi o de identificar outras formas de transferência de valor do Brasil para os países que integram a economia central, para além do déficit na balança comercial comumente citado nos estudos sobre os CEIS.

Sobre a superexploração do trabalho, o propósito foi discutir alternativas de composição contratual para os trabalhadores no SUS e assim colaborar para os defensores do emprego público e da prestação de serviços estatal.

O terceiro objetivo específico está pautado na afirmação do Estado como empreendedor e executor de projetos de interesse público como é o caso do SUS. Para cumprir esse objetivo foi feito um breve estudo sobre a teoria do valor na perspectiva de Mariana Mazzucato (2020), buscando relacionar o Estado dentro da esfera das atividades produtivas, adotando corrente contra hegemônica aos estudos estruturalistas, neoclássicos e/ou marginalistas.

Por fim, a indicação pelo nome completo de alguns autores apresenta dois propósitos, o primeiro é ampliar a identificação da produção acadêmica das mulheres, muitas vezes colocadas em segundo plano de autoria ou invisibilizadas pelo sobrenome, que quase, sempre induz ao pensamento de produção masculina. O segundo propósito é facilitar a recuperação da publicação quando se trata de sobrenomes comuns no Brasil, como é dos Santos, Silva, Souza, Pereira, Almeida, entre outros.

Esta pesquisa envolveu somente dados de domínio público, sem qualquer envolvimento ou identificação de participantes, dispensando assim a aprovação por parte do Comitê de Ética em Pesquisa.

3ACESSOASAÚDENOSPAÍSESCAPITALISTAS

As oportunidades de desenvolvimento social e econômico entre as nações são determinadas pela posição que o país ocupa historicamente no sistema capitalista e pela capacidade de crescimento econômico que resulta de políticas industriais, comerciais e tecnológicas (ICT), como descreve Ha-Joon Chang (2004). Nos países do centro hegemônico, os excedentes gerados na ICT são reempregados no desenvolvimento de setores econômicos de forma a organizar o mercado interno e a garantir uma relação equilibrada entre oferta e consumo. A depender da política vigente no país, parte dos excedentes são também investidos em políticas sociais para o bem-estar coletivo.

Os países que, historicamente, ocupam o centro hegemônico são os mesmos que tiraram as maiores vantagens durante o processo de acumulação primitiva do capital, como Marx apontou no capítulo XXIV (Livro 2) de “O Capital”. Esse processo liderado pelo Estado e pelas burguesias, produziu uma quantidade de bens sem precedentes e expandiu o progresso tecnológico, mas gerou contradições, porque formou novas elites econômicas, ao mesmo tempo em que as condições de vida do proletariado não se modificaram significativamente, motivando revoltas e revoluções das novas classes sociais em busca de direitos que não foram concedidos naturalmente à medida que o capitalismo avançou.

As revoluções burguesas que ocorreram durante os séculos XVII e XVIII conquistaram a primeira geração de direitos civis – os direitos de liberdade e de propriedade.

No século XIX, parte da sociedade, principalmente a classe trabalhadora, começou a conquistar direitos políticos, com destaque para o movimento cartista inglês (1830-1840), que passou reivindicar o sufrágio universal e secreto, assim como como o feminismo passou a reivindicar direitos políticos para as mulheres na virada do século XIX para o século XX, surgindo assim a segunda geração de direitos - os direitos políticos (MARSHALL, 1967;

BOBBIO, 2004).

A consciência crescente sobre os direitos de cidadania e os ideais da igualdade contribuíram para que emergissem movimentos socialistas na Europa que denunciavam as condições de trabalho cada vez piores, as jornadas extenuantes, as remunerações insuficientes para as necessidades básicas de alimentação, saúde, educação e habitação, além do desamparo quanto aos aspectos naturais da vida como a gravidez, o adoecimento, o envelhecimento e a morte. Foi nesse contexto que os direitos sociais vieram a se viabilizar na segunda metade do século XX no Ocidente, depois do início ainda não baseada em direitos que ocorreu no final

do século XIX na Alemanha de Bismarck, iniciando a noção de Welfare State18 no século XX (MARSHALL, 1967).

Esses movimentos, no entanto, não foram estancados. Primeiro porque os seguros obrigatórios como no modelo bismarckiano19 mantinham, e mantém até hoje, a segmentação do direito por contribuição, ou seja, por classe social; segundo porque em alguns países do ocidente ocorreram movimentos revolucionários que pretenderam realizar mudanças mais amplas na sociedade, mas não é característica do capitalismo a concessão de políticas com direitos amplos, então rupturas políticas deveriam acontecer e aconteceram mesmo.