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Quadro 1 - Grupos do Fundo Público

Grupo de Gastos Objetivo Fonte de Receita Instituições/ serviços

Administração e segurança

Defesa da propriedade privada e defesa da soberania

Arrecadação de impostos Justiça, Fazenda, forças militares e policiais

Consumo social básico

Atender interesses

coletivos Arrecadação de impostos Educação, saúde, assistência social

Consumo social de luxo

Atender interesses de grupos de poder

Arrecadação de impostos, deduções de impostos

Educação superior, urbanização, segurança, cultura, esporte

Acumulação Estatal Investimento em setores de desenvolvimento

Arrecadações de impostos, venta de títulos e

empréstimos

Instituições de fomento, C&T, universidades, bancos públicos.

Acumulação Privada

Desenvolver setores econômicos, gerar empregos.

Crédito subsidiado, isenções fiscais, subsídios para folha de pagamento, câmbio, entre outros incentivos.

Mercado

Fonte: Adaptado de Bresser-Pereira, 1982.

dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida [...] (MARINI, 2000, p. 4).

Luce (2018) alerta que a TMD não deve ser confundida ou fundida com a teoria do sistema-mundo, ressaltando que, apesar de ambas se caracterizarem como construções críticas, elas não partem dos mesmos pressupostos. Para ele, a TMD parte da teoria de valor de Marx e adota a perspectiva específica sobre a realidade de uma região, enquanto os autores do sistema mundo estão preocupados com os grandes ciclos econômicos.

Apesar de Bresser-Pereira (2010) declarar que considera que a Teoria da Dependência não é uma teoria e sim uma interpretação sociológica e política da América Latina, todos os elementos que compõem um paradigma do conhecimento estão presentes na TMD. Segundo Ludwik Fleck (2010), para se constituir como uma teoria, o conhecimento precisa explicar fenômenos, ser resultado intelectual de uma comunidade de pensamento organizada em determinado campo do conhecimento e estar suficientemente difundida. Essa comunidade deve se caracterizar pelo processo formativo em que a educação é obtida e as experiências práticas moldam ou modificam o conhecimento. A Teoria da Dependência se apresenta válida em todos esses aspectos, não sendo um conhecimento marginal, complementar, ou simplesmente antagônico à Teoria do Desenvolvimento.

De acordo com Theotônio dos Santos (1998), a Teoria da Dependência resultou da crítica ao desenvolvimentismo, apontando os limites da industrialização em economias com o sistema produtivo de bens complexos já dominados por multinacionais e do modelo de substituição de importações defendido pela Cepal. O autor apresentou as correntes com distintas perspectivas elaboradas pelos experts11 a respeito da dependência. Uma primeira categorização separa a comunidade de pensamento dependentista em dois grupos: os estruturalistas: Celso Furtado, Raul Prebisch e Fernando Henrique Cardoso; e neomarxistas:

Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra. O autor apresenta também a categorização feita por André Gunder Frank que distinguiu a comunidade dependentista em modernizantes e/ou estruturalistas: Raul Prebisch e Celso Furtado; estruturalistas e/ou

11 Segundo Fleck, uma vez que a teoria tenha sido formulada por experts, passa a ser difundida pelos exotéricos - pessoas próximas aos formuladores que atuam publicando e disseminando a teoria para os esotéricos. A difusão, de forma mais ampla, fica a cargo dos esotéricos - que são leigos esclarecidos que se encarregam de traduzir conhecimentos complexos para a compressão de um número maior de pessoas.

reformistas: Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto; marxistas/neomarxistas: Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini.

Para esse trabalho interessa a produção dos autores brasileiros que apresentaram uma contribuição relevante e anteciparam as tendências acerca da nova dependência, por meio de sua produção intelectual e militância política, conforme as minibiografias que constam no Apêndice A deste trabalho, em especial a produção de Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini.

Marini, ao analisar os motivos pelos quais o desenvolvimento, pela via da industrialização, não produziu o resultado esperado, argumentou que a integração da América Latina se deu sob condições econômicas, políticas e tecnológicas claramente definidas para não ameaçar os monopólios dominados pelos países centrais. O autor destacou que, no final da década de 1960, a reorganização do mercado mundial sob a hegemonia dos EUA pretendeu integrar sistemas de produção, e não desenvolver regiões. Segundo Marini, uma das razões para integração da América Latina ao centro econômico foi a necessidade de escoar a imensa produção acumulada nos EUA, o que incluía vender máquinas novas, mas também se livrar das máquinas que se tornavam obsoletas rapidamente em razão do progresso técnico nas economias centrais (MARINI, 1974, p. 6).

O que podemos observar a partir da construção de Marini sobre sistemas produtivos é que a integração desses sistemas atendeu principalmente a estratégia monopolista das empresas multinacionais já instaladas em diversos países do mundo. Essas empresas acumulavam muito capital e precisavam direcioná-los para novos investimentos, além de precisarem também escoar suas máquinas que, dada a velocidade do progresso técnico, ficavam obsoletas antes de terem seu investimento amortizado (MARINI, 1974).

O autor explicou que esse modelo desnacionalizou a produção, rompeu com o ciclo produção e consumo e fez o divórcio entre a burguesia e as massas populares, intensificando o processo de superexploração da força de trabalho.

El mecanismo de la asociación de capitales es la forma que consagra esta integración, la cual no solamente desnacionaliza definitivamente la burguesía local, sino que, unida como va a la acentuación del ahorro de mano de obra que caracteriza al sector secundario latinoamericano, consolida la práctica abusiva de precios (que se fijan según el costo de producción de las empresas tecnológicamente más atrasadas) como medio de compensar la reducción concomitante del mercado.

El desarrollo capitalista integrado acrecienta, pues, el divorcio entre la burguesía y las masas populares, intensificando la superexplotación a que éstas están sometidas y negándoles lo que representa su reivindicación más elemental: el derecho al trabajo. (MARINI, 1974, p. 8)

Esse “chute na escada” (CHANG, 2008) brasileira foi muito bem captado quando Marini cravou a ideia da integração de sistemas de produção. Na obra “A dialética da dependência”, Marini esmiuçou o fenômeno e desenvolveu as leis tendenciais que conduzem e mantém o processo do capitalismo dependente na América latina, descrevendo categorias12 que formam um quadro conceitual, ou seja, os argumentos centrais da TMD que são: a transferência de valor, a ruptura do ciclo de capital e a superexploração da força de trabalho.

Sobre a transferência de valor, Marini (2000) explica que existem duas formas de os países realizarem as trocas, uma que atende as leis de mercado e outra que frauda essas mesmas leis.

Teoricamente, o intercâmbio de mercadorias expressa a troca de equivalentes, cujo valor se determina pela quantidade de trabalho socialmente necessário que as mercadorias incorporam. Na prática, observam-se diferentes mecanismos que permitem realizar transferências de valor, passando por cima das leis de troca, e que se expressam na forma como fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias.

Convém distinguir os mecanismos que operam no interior de uma mesma esfera de produção (tratando de produtos manufaturados ou de matérias primas) e os que atuam no marco de distintas esferas que se inter-relacionam. No primeiro caso, as transferências correspondem a aplicações específicas das leis de troca, no segundo adotam mais abertamente o caráter de transgressão delas. (MARINI, 2000, p. 9)

A transferência de valor dos países dependentes para os países centrais ocorre de diversas formas, conforme demonstra a figura a seguir:

12 As categorias de análise são componentes em torno do quais é possível organizar e analisar dados que reforçam ou refutam uma argumentação (adaptado de LUCE, 2018).

Figura 3 - Formas de transferências de valor com intercâmbio desigual

Fonte: Luce, 2018, p.50

As transferências ocorrem no comércio internacional e devem obedecer às leis de troca, no entanto, o desequilíbrio dessas leis são justificados pela eficiência em produtividade nos países centrais. Sobre isso, Mathias Luce (2018) faz duas excelentes perguntas. A primeira delas é se os preços caem nas economias que apresentam maior produtividade e melhor desempenho em mais-valia relativa, uma vez que, juntos, esses dois componentes barateiam os preços de mercado, então por que os preços caem mais nos países de baixa produtividade?

Marini explica que quanto maior for a produtividade, menores serão os custos de produção e menor será o preço diante dos concorrentes, mas isto não quer dizer que os preços de mercado baixarão e sim que se resultará em lucro extraordinário para o capitalista. Ele explica que a concorrência entre os países desenvolvidos se dá sob uma base fixa de preços, portanto, é uma espécie de concorrência artificial, porque o resultado não é a redução de preços para o consumidor e sim maior acumulação privada. De todo modo, Marini observa que a concorrência nesse patamar, ou seja, entre os países industrializados que produzem bens similares, a lei de troca está respeitada. Já essa mesma concorrência levada a países que não produzem as mesmas coisas, ou não produzem com a mesma eficiência, favorece o falseamento das leis de valor, permitindo que ocorram vendas por preço superior ao seu valor, resultando em uma troca desigual. As transferências nessas condições conduzem a intercâmbios desiguais e causam contradições internas e um dos resultados dessas contradições é que a burguesia interna vai compensar suas perdas no comércio internacional, explorando mais os trabalhadores.

A superexploração da força de trabalho é uma categoria de análise identificada no capitalismo subdesenvolvido na América Latina e indica que é um dos elementos para reduzir as perdas externas decorrentes do intercâmbio desigual e se expressa pelo pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor, pelo prolongamento e intensidade da jornada de trabalho.

Marini também esclarece um ponto interessante sobre a crença de que quanto maior produtividade, maior são as remunerações.

Essencialmente, trata-se de dissipar a confusão que se costuma estabelecer entre o conceito de mais-valia relativa e o de produtividade. De fato, se bem constitui a condição por excelência da mais-valia relativa, uma maior capacidade produtiva do trabalho não assegura por si só um aumento da mais-valia relativa. Ao aumentar a produtividade, o trabalhador só cria mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor; é justamente esse fato o que leva o capitalista individual a procurar o aumento de produtividade, já que isso permite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relação ao valor que as condições gerais de produção lhe atribuem, obtendo assim uma mais-valia superior à de seus competidores, ou seja, uma mais-valia extraordinária.

[...]

Se o procedimento técnico que permitiu o aumento de produtividade se generaliza para as demais empresas e, por isso, torna uniforme a taxa de produtividade, isso tampouco acarreta no aumento da taxa de mais- valia: será elevada apenas a massa de produtos, sem fazer variar seu valor, ou, o que é o mesmo, o valor social da unidade de produto será reduzido em termos proporcionais ao aumento da produtividade do trabalho. A consequência seria, então, não o incremento da mais-valia, mas na verdade a sua diminuição.

Isso se deve ao fato de que a determinação da taxa de mais-valia não passa pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de exploração da força de trabalho [...]. (MARINI, 2000, p. 6).

A segunda pergunta é: por que a América Latina se manteve estimulada a exportar produtos dos quais não tinha especialização (produtividade e domínio tecnológico) nos moldes da Divisão Internacional do Trabalho? A resposta a essa questão também está na produção de Marini sobre as funções que a América Latina assumiu, primeiro como fornecedora de produtos básicos, depois como lócus de extração da mais-valia relativa e em alguns casos, da mais-valia extraordinária.

Como vimos, as empresas multinacionais já estavam instaladas na região e a aceleração da industrialização fortaleceu justamente suas bases locais com investimentos, isenções e subsídios oferecidos pelo Estado. Marini descreve que a inserção da América Latina correspondeu a passagem de mais-valia relativa para a mais-valia extraordinária, das periferias para o centro.

Os teóricos da TMD se dedicaram a compreender outras formas de transferência de valor, como as remessas de lucros, royalties e dividendos. Luce (2018) explica que esse

interesse se iniciou em 1970 porque essas eram as principais formas de transferência de valor da América Latina para os países centrais.

Segundo o autor, o serviço da dívida expressa a dependência financeira, enquanto a deterioração dos termos de intercâmbio expressa a dependência comercial. As remessas de lucros, royalties e dividendos expressam a dependência tecnológica e esse é um dos aspectos mais relevantes para o setor de saúde. Por fim, a apropriação de renda diferencial e absoluta13 de monopólios sobre os recursos naturais é citada como uma forma de transferência de valor de regiões abundantes como a América Latina para as economias centrais.

Sobre as formas com que a cisão do ciclo de capital se manifesta nas economias dependentes, Luce reforça que essa é uma das contradições do capitalismo quando a América Latina se industrializa sem o correspondente aumento de renda interna. Neste caso, as esferas de circulação não são similares ao capitalismo clássico porque com trabalhadores com baixa capacidade de consumo, ocorre a terceira categoria que é a cisão entre o que o país produz e o que a massa populacional têm condições de consumir. A cisão entre produção e consumo e produção e circulação, se expressa das seguintes formas:

13 Renda diferencial e renda absoluta decorre de recursos minerais que são obtidas pelo capital quando este utiliza terra agriculturável, mananciais, jazidas minerais.

Figura 4 - Formas de Cisão do Ciclo de Capital

Fonte: Luce, 2018, p.133 (adaptado)

No sistema econômico em que as relações são baseadas no domínio do mercado por potências hegemônicas, os países periféricos transferem os excedentes sob diversas formas, mas a geração desse excedente não deriva da produção de bens em níveis avançados, mas por meio da superexploração da força de trabalho em circunstâncias que são particulares ao sistema capitalista, porém comuns a todos os países subordinados. Uma das características é um mercado com mão-de-obra barata e destituída de direitos laborais, combinado com uma tecnologia capital-intensiva para extração da mais valia relativa com uma brutal exploração da força de trabalho em consequência das compensações por causa do intercâmbio desigual.

Marisa Silva Amaral e Marcelo Dias Carcanholo (2009) apontam que essa dinâmica do intercâmbio desigual não permite a criação de estruturas com capacidade de romper com os mecanismos de transferência de valor. Como vemos, as estruturas acabam funcionando para reforçar esses mecanismos produzindo uma distribuição desigual de riqueza, a cisão do ciclo de produção e consumo e a superexploração dos trabalhadores.

A separação entre a produção e o consumo significa a quebra de um arco essencial na economia, porque as classes mais altas passam a buscar no mercado externo os bens suntuosos, de luxo e mais avançados tecnologicamente. Assim, o mercado interno se torna inexpressivo e as compensações pela concorrência em desvantagem recaem sob o mercado de interno derivando dessa situação a terceira categoria, que é superexploração do trabalhador

ormas de cisão do ciclo de capital

Cisão entre a esfera alta e a esfera baixa do consumo

Integração subordinada dos sistemas de produção sem uma industrialização org nica

Cisão entre esferas do mercado externo e do mercado interno

Não generalização da mais valia relativa para o conjunto dos ramos e setores da produção

ixação da mais valia extraordinária no setor de bens de luxo

para compensar a perda da mais valia. A acumulação capitalista da burguesia interna nesses termos é obtida com a intensificação do trabalho e prolongamento das jornadas para que o trabalhador produza mais valor em um mesmo espaço de tempo, sem que isso resulte aumento de sua remuneração.

O aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva, como um aumento da mais-valia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não do incremento de sua capacidade produtiva. O mesmo se poderia dizer da prolongação da jornada de trabalho, isto é, do aumento da mais-valia absoluta na sua forma clássica; diferentemente do primeiro, trata-se aqui de aumentar simplesmente o tempo de trabalho excedente, que é aquele em que o operário continua produzindo depois de criar um valor equivalente ao dos meios de subsistência para seu próprio consumo. Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal, pelo qual ‘o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital’ [grifos no original], implicando assim em um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente. (MARINI, 1973, p.

10)

A TMD inovou na forma de olhar criticamente para o problema do subdesenvolvimento da América Latina. Não está desvinculada das leis gerais do capitalismo, como sinaliza Luce (2018). A teoria explica as contratendências e o falseamento das leis de equilíbrio de mercado. Uma das bases para o equilíbrio do sistema de mercado é a taxa de lucro para que as vantagens competitivas não corroam um sistema produtivo em relação a outro, e a TMD confirmou que no capitalismo dependente há uma tendência negativa da lei do valor para os países da periferia.

A lei do valor é muito importante para compreensão da TMD e mesmo que não se faça aqui um debate profundo sobre essa lei que originalmente foi formulada por Adam Smith durante a transição para o capitalismo mercantil para o capitalismo industrial, é bem importante compreendê-la, porque não são raras as tentativas de considerar o ‘valor de troca’

para tornar os sistemas de saúde mercadorias consumíveis, ao invés do ‘valor de uso’

defendido nos sistemas universais que consideram o acesso a saúde como direito de cidadania.

Apesar de parecer assunto discrepante da tese, a questão da teoria do valor nos leva a discussão sobre a fronteira de produção, que é um tema importante para o debate sobre o papel do Estado nas sociedades contemporâneas e está melhor discutido no capítulo cinco.