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Redução do papel do Estado e ampliação da privatização dos serviços

4.3 Ampliação da acumulação privada no âmbito do SUS

4.3.1 Redução do papel do Estado e ampliação da privatização dos serviços

O Ministério da Saúde ganhou novas funções alocativas após a criação do SUS e isto foi acompanhado de perto pelos empresários da saúde, que, como Ialê Braga (2012) demonstrou em sua tese de doutorado, começaram a agir de forma organizada, tendo a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços como principal representante da fração que explorava serviços privados de saúde.

Em um dos trechos das entrevistas feitas pela pesquisadora, o interesse nos níveis mais lucrativos do sistema de saúde fica muito claro a partir dos anos 2000.

... quando eu assumi a presidência da CMB em 2005, nós tivemos um contato muito grande com o José Carlos Abrahão, que é um grande líder, que eu gosto honestamente, um cara de cabeça, e também no meio de um processo de renovação da própria CNSa (...)... Com o José Carlos, eu e [Carlos] Eduardo [Ferreira], da FBH, nós debatemos espaços, porque havia uma profusão de ideias das confederações, até essa primeira parte de 2000, na qual não se entendia claramente o papel de uma e de outra, umas perpassavam as outras e até competiam entre si.

Então a gente falou assim: “a gente tem que estar tratando entre nós dos nossos temas em comum. E dos temas diferentes, especificamente, cada uma. Mas, principalmente, buscar articular com o governo, com as entidades, com as entidades de classe”. (...) José Carlos começou a construir isso, mas a gente sentou na mesa, os três da FBH, CMB e CNSa, tanto que passamos a informar um ao outro, nós íamos a todos os eventos comuns. José Carlos foi a todos da Confederação das Misericórdias, eu fui a todos da CNSa e todos da FBH (...) e os três estavam sempre juntos. Não havia um evento de uma ou de outra, era o evento das três, e a gente tinha as especificidades, nos comunicávamos. Acho que a gente teve um crescimento do movimento da saúde brasileira, principalmente na média e alta complexidade do setor hospitalar, muito grande nesse período, até saúde suplementar, acho que a gente começou até a trabalhar bem nisso (BRAGA, 2012, p. 95).

O setor privado nunca se restringiu ao setor suplementar de saúde, desenvolvendo mecanismos de exploração privada no interior da própria política pública por meio da transferência de atividades do Estado por terceirizações e/ou publicização. Em maio de 1998, foi editada a Lei nº 9.637, definindo entidades como organizações sociais (OS) e criando o Programa Nacional de Publicização. Em março de 1999, foi editada a Lei nº 9.790, qualificando pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos como organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Segundo dados do IPEA, entre 1981 e 1990 o número de OS subiu de 88.147 para 478.841 (2018, p.141), devendo ser notado que algumas não foram criadas, apenas tiveram seus estatutos sociais alterados.

Analisando a trajetória das políticas do Estado em relação ao desenvolvimento do sistema universal, podemos concluir que até a segunda parte da década de 1980 predominou a força da agenda da Reforma Sanitária, culminando na criação do Sistema Único de Saúde, no

entanto, essa força não foi suficiente para ampliar a rede pública na projeção requerida pelo SUS, principalmente porque a partir de 1995 prevaleceu o ideal de Estado Mínimo, cuja transferência de atividades para iniciativa privada foi a principal estratégia.

A solução para os gestores se adequarem a Lei de Responsabilidade Fiscal que limita os gastos com pessoal e a emenda à constituição que determinava a aplicação de recursos no SUS foi a formalização de contratos com as Organizações sociais privadas.

Assim, com um sistema universal em um país das dimensões populacionais como o Brasil, o SUS foi percebido como um grande espaço para circulação de bens e serviços privados. Até 2016 foram contabilizadas pelo IPEA 820.186 organizações da sociedade civil, e dentre essas, 6.841 administram hospitais e unidades de saúde pelo Brasil. Embora seja um quantitativo pequeno em relação ao universo total, é no campo da saúde que está o maior volume financeiro e a maior quantidade de empregos formais, totalizando 112.048 postos de trabalho, dentre os quais médicos, enfermeiros, técnicos e agentes comunitários de saúde (IPEA, 2018, pp. 27 e 72).

Se o movimento pela Reforma Sanitária agiu de forma organizada para estabelecer um sistema de saúde universal no Brasil, o empresariado da saúde também se organizou e tem conseguido pautar o Congresso e o Judiciário a seu favor.

No caso da atuação das Organizações Sociais no setor de saúde, o Supremo Tribunal Federal rejeitou o pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 1.923 requerida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em 2015, concluindo que a prática de transferência dos serviços do Estado para esses entes privados não fere a CF, desde que cumpridos determinados princípios, como o da seleção objetiva e impessoal, procedimentos públicos para seleção de pessoal e transparência na prestação de contas.

Para além do espaço de exploração privada concedida pela CF em 1988, o próprio SUS está se constituído em uma esfera de circulação do capital. Há dominação de entidades privadas nos níveis secundários e terciários, com 72,4% dos leitos de propriedade privada e praticamente toda rede de exames privatizada, correspondendo a 90% dos Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT), conforme aponta Victor Vilela Dourado (2013, p. 11).

Também em 2000, foi aprovada a Lei Complementar nº 101, mais conhecida como a Lei de Responsabilidade Fiscal que, dentre outras coisas, limitou no art. 19, fixando o teto de gastos com pessoal em até 50% da receita corrente liquida para União e 60% da receita

corrente liquida para Estados e Municípios, criando dificuldades para os entes federados que haviam assumido maiores responsabilidades na produção de serviços com a criação do SUS e descentralização das ações de saúde. Esse foi um complicador a mais para o SUS, porque o orçamento da Seguridade Social, criado pela Lei nº 8.212 de 1991 com a finalidade de garantir recursos estáveis para saúde, previdência e assistência social, não havia sido implantado nas dimensões definidas pela CF de 1988.

Como justificativa, a “cultura da crise” foi lançada várias vezes sobre o sistema de seguridade social brasileiro e nunca sobre o sistema financeiro. Sabendo que o sistema de saúde é um dos componentes de maior despesa, as receitas foram contingenciadas, primeiro como Fundo Social de Emergência em 1994, depois como Fundo de Estabilização Fiscal em 1997, e finalmente como Desvinculação de Receitas da União (DRU) de até 20% nos anos 2000.

Ainda em 2000, foi realizada a alteração do art. 198 da Constituição federal pela Emenda Constitucional nº 29. A emenda fixou tetos mínimos de investimento no SUS e que deveriam ser alcançados, gradualmente, por meio da aplicação da receita dos impostos e de outras transferências, sendo 12% para Estados, 15% para Municípios. No caso da União foi definido que deveria ser aplicado o valor executado no exercício orçamentário57 anterior, acrescido do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O objetivo era evitar os problemas da década de 1990 quando não havia parâmetros para regulamentar as transferências para o custeio e para os investimentos no SUS.

Segundo o levantamento realizado entre 2000 e 2010, a EC nº 29/2000 possibilitou o crescimento de 112% dos recursos aplicados pelas três esferas de governo no período, considerando o gasto consolidado e 89% considerando o gasto per capita (PIOLA, FRANÇA, NUNES, 2016, p. 419).

Contudo, o aumento na aplicação de recursos, não reduziu a assimetria de gastos entre as regiões, conforme indicam os autores, permanecendo um gasto muito desigual com saúde no Brasil e que apresenta como consequência desigualdade de acesso aos bens e serviços. De todo modo, a fixação de tetos mínimos foi oportuna e a redistribuição da maior parte dos recursos que está concentrada no âmbito federal, foi regulamentada posteriormente

57 O exercício orçamentário do Estado é anual e contabiliza os valores empenhados de janeiro até o último dia do mês de dezembro.

pela Lei Complementar nº 141 de 2012.

O contexto internacional estava em processo de mudanças importantes, tanto do ponto de vista global, como regional. Os países asiáticos tomavam a dianteira nos processos de desenvolvimento tecnológico, tendo a China se tornado o maior destino dos investimentos externos diretos em 2002 (KISS, 2018, p. 166). Regionalmente, havia chegado ao poder Hugo Chávez na Venezuela (1998), Evo Molares na Bolívia (2002), Nestor Kirchner na Argentina (2002), Rafael Correa no Equador (2007) e Pepe Mujica no Uruguai (2010), formando um bloco político coeso em relação aos valores da soberania e do desenvolvimento com inclusão social.

Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva ganhou a eleição. Pela primeira vez na história brasileira, um operário sindicalista, um filho do povo, nordestino, conhecedor da fome e da seca, governaria o Brasil. A esperança havia vencido o medo.

Figura 14 - Projetos políticos em disputa (2000-2010)

Fonte: elaboração própria

Lula, desde o período eleitoral, se colocava contrário ao projeto estadunidense de formação de uma área de Livre Comércio das Américas (ALCA), apontando para o fortalecimento do eixo SUL-SUL e por ações no continente africano. No entanto, uma especulação fortuita do economista Jim O´Neill publicada no Goldman Sachs, em 2001, sobre mudanças geopolíticas jogou luz sobre quatro países gigantes, indicando que Brasil, Rússia, Índia e China se tornariam fundamentais para política e para econômica mundial, prenunciando assim o BRIC - (KISS, 2018, p. 167). O Brasil, sob comando de Lula, voltou-se a ideia do devoltou-senvolvimento desvoltou-se bloco que, posteriormente, incluiria a África do Sul, concretizando o BRICS.