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Investimento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a saúde

4.3 Ampliação da acumulação privada no âmbito do SUS

4.3.3 Investimento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a saúde

Aponta elementos que teriam fragmentado a política de ampliação de acesso aos medicamentos, destacando que a ampla aliança feita pelo Partido dos Trabalhadores pode ter sido prejudicial à política devido à intensa disputa pelos cargos.

Entretanto, podemos notar que a pasta do Ministério da Saúde no primeiro e no segundo mandato do Presidente Lula foi estável e contou com nomeações técnicas e alinhadas aos ideais da saúde coletiva. No primeiro mandato, a pasta teve como titular Humberto Costa, substituído posteriormente por Saraiva Felipe. Depois, foi o próprio Saraiva Felipe que tomou a decisão de sair do Ministério da Saúde para disputar o quarto mandato como deputado federal por Minas Gerais, tendo sido dele a sugestão de indicar o nome do secretário executivo, José Agenor, como interino até 2007, quando assumiu a pasta José Gomes Temporão, “continuando um ciclo de sanitaristas que participaram, desde antes da Constituição Cidadã, do processo de construção do SUS” (FELIPE, 2021, p. 251).

Analisando algumas declarações do ex-ministro José Temporão, observa-se que o Ministério da Saúde priorizou a transferência de tecnologia para produção de vacinas e medicamentos de alto custo para os laboratórios públicos, delegando a produção de medicamentos de uso da Atenção Primária para iniciativa privada, numa espécie de divisão do trabalho inversa ao que se costuma observar nas economias periféricas, quando a burguesia assumiu atividades de menor densidade tecnológica e o Estado absorveu os componentes mais complexos.

Vejamos, por exemplo, o caso dos genéricos, Kiss salienta que os laboratórios públicos poderiam ter sido os “reis do xadrez, mas acabaram não sendo valorizados” (2018, p.

147), citando o caso do investimento do BNDES para os genéricos, que em 2001 concedeu R$ 18.8 milhões para a Medley, vendida oito anos depois para a multinacional Sanofi-Aventis (2018, p. 179) por R$ 1,5 bilhões que, com a aquisição, se tornou uma das principais produtoras de genéricos no Brasil. A autora está correta e esse não foi o único movimento da burguesia que se beneficiou de políticas e investimentos públicos para ampliar capital, especialmente a partir de 200960. Kiss também tem razão quanto a reserva de mercado criada para a iniciativa privada produzir medicamentos genéricos, como o caso da Eurofarma que produziria o antibiótico Benzetacil61.

Contudo, houve também significativos investimentos nos laboratórios oficiais para o desenvolvimento tecnológico para programas estratégicos do SUS. Logo no início do segundo mandato do Presidente Lula, José Temporão enfrentou uma disputa relativa a um dos componentes para o tratamento da AIDS. Tratava-se do Efavirenz produzido exclusivamente pela Merck e que desde 1990 dificultava a política de acesso público com preços altos e sucessivas negativas de redução, mesmo sob ameaças de licenciamento compulsório. Em maio de 2007, o presidente Lula assinou o Decreto nº 6.108, concedendo o licenciamento compulsório por interesse público previsto na Lei de Propriedade Intelectual para fins de uso público não-comercial, para atender o Programa Nacional de DST/Aids. Para adotar essa medida, o Ministério da Saúde reuniu os órgãos de controle interno e de defesa jurídica –

60 O laboratório Aché adquiriu a Biosintética, a Biolab comprou 80% de uma farmoquímica nacional – a Sintefina. A Neo Química foi adquirida pela Hypermarcas. As estrangeiras Zambon do Brasil (italiana), a Ferring Farmacêutica (suíça) e Nycomed (dinamarquesa) planejavam reforçar sua posição no mercado brasileiro por meio da aquisição de laboratórios de médio porte. (Vargas et all, 2013, pp. 49 e 50).

61 A partir de 2011 foi noticiado o desabastecimento de Benzetacil em vários no mercado brasileiro.

Controladoria-Geral da União, Advocacia Geral da União, Tribunal de Contas, e outros ministérios – tendo destaque especial o Itamaraty. Em 2008, a Fiocruz passou a produzir o medicamento, garantindo o abastecimento da rede pública e a sustentação material do programa.

Os investimentos direcionados para os laboratórios oficiais modificaram o parque industrial com a criação de novos atores como o IBMP – Instituto de Biologia Molecular do Paraná ampliado em 2009, o Bahiafarma reativado em 2011 e o LIFESA – Laboratório Industrial Farmacêutico da Paraíba reestruturado a partir de 2014, tudo isso com apoio e coordenação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE/MS), respaldada pelo Programa de Modernização Produtiva e Gerencial de Produtores Públicos de Medicamentos e Imunobiológicos de 2008.

O investimento nos laboratórios públicos incluiu não só a ampliação do orçamento das instituições, como aprovação de concurso público e até um fato inédito: pela primeira vez o Estado comprou uma fábrica da iniciativa privada. Tratou-se da Fábrica da Glaxo Smith Kline (GSK), localizada no Estado do Rio de Janeiro, adquirida e incorporada a Farmanguinhos/Fiocruz o que permitiu a ampliação da produção pública de medicamentos para atender programas estratégicos do Ministério da Saúde, como o Programa HIV AIDS e o Programa Farmácia Popular do Brasil.

Esses laboratórios públicos desempenham papel destacado na Política Nacional de Saúde (PNS), na produção de medicamentos para o Sistema Único de Saúde (SUS), no suporte à regulação e no processo de capacitação tecnológica. No segmento de vacinas, atendem plenamente a demanda interna, com destaque para Bio-Manguinhos, Butantan, FAP e Funep que juntos são responsáveis por cerca de 93% do número de doses produzidas (GADELHA, et al, 2012, p. 62, 76), além de terem acumulado progressivamente capacitação tecnológica nas vacinas da terceira geração (hepatite B, gripe, tríplice viral e Haemophilus influenzae tipo B).

A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) criada em 2004 para a obtenção de autossuficiência na produção de hemoderivados é hoje uma das maiores produtoras de albumina para, entre outros usos, pacientes queimados, pacientes com cirrose, uso em cirurgias de grande porte e imunoglobulina para pessoas com baixa defesa imunológica.

O governo brasileiro não se insurgiu de forma ampla contra as patentes, então na linha da conciliação de interesses, o “novo Profarma” incluiu mecanismos para incentivo da burguesia interna, com linhas para exportação, assim como definiu uma linha de investimento para os laboratórios públicos, adotando principalmente a estratégia das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) instrumento concebido em 2008.

Gadelha e Temporão (2018) defendem a aplicação das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) iniciadas, efetivamente, entre 2009 e 2010, como um mecanismo que envolve a utilização das compras de produtos de alto custo e complexidade tecnológica centralizadas no Ministério da Saúde e que eram adquiridos no mercado, predominantemente estrangeiro.

Além de estimular a produção local, as PDPs incluem a transferência da tecnologia garantindo autonomia na produção interna. A produção no Brasil ocorre por meio da parceria entre a detentora da tecnologia e uma instituição pública, com protagonismo da Fiocruz e do Butatan, na forma de encomenda direta entre o SUS e o laboratório público, excluindo assim a necessidade de processo licitatório.

A despeito das críticas que se faça sobre as PDPs, propõe-se que duas delas sejam ponderadas, ao menos pelos defensores das políticas de bem-estar social que precisam refletir sobre a ausência de sentido nas comparações entre os preços finais de um produto originado de uma PDP e o produzido pela líder estrangeira, seja pelo que foi tratado até aqui em relação aos benefícios que gozam as economias centrais, ou pela forte manipulação de mercado também já elencada nesse trabalho ou, ainda, pelo fato de que a transferência tecnológica inclui ativos muitas vezes não quantificáveis nessas comparações, como o novo conhecimento, a nova capacidade instalada e os empregos de qualidade que passam a ser gerados no país. Além disso, a produção pública reduz oligopólios e se configura como um mecanismo de balanceamento e controle de preços.

O outro ponto que deve ser ponderado é que as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo não são a mesma coisa que as Parcerias Público Privado62, pois no primeiro caso o Estado realiza uma intervenção no mercado, passando a produzir o que era produzido, exclusivamente, pela iniciativa privada, enquanto nas PPP são as empresas privadas que

62 A Lei n.º 11.079/04 instituiu normas gerais para licitação e contratação para Parceria Público-Privada.

assumem o lugar do Estado no desenvolvimento ou na gestão de um bem ou serviço público.

Gadelha e Temporão (2018) apontam que tanto a produção da vacina em 1985 para conter uma crise de abastecimento que envolveu a transferência de tecnologia para os produtores locais, como o caso do Efavirenz, são antecedentes do uso desse instrumento. Os autores indicam que os produtos das PDP são predominantemente de alto custo e alta complexidade tecnológica, que todos fazem parte das demandas do SUS indicando que até o ano de 2017 havia 114 PDPs vigentes, envolvendo 50 medicamentos e respectivos princípios ativos, 12 equipamentos e materiais e 5 vacinas para o PNI (2018, p. 1898).

Além disso, o mecanismo de uso do poder de compra do Estado foi utilizado para dar preferência de compra a produção nacional por meio da Lei nº 12.349 de dezembro de 2010, que alterou a Lei de Licitações, garantindo mercado para indústrias nacionais se estruturarem para competição no mercado interno e externo. Para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, poderá ser estabelecido margem de preferência adicional.

Assim, analisando as PDPs a luz da Teoria Marxista da Dependência, podemos acrescentar que esse instrumento pode ser considerado como um mecanismo que visa modificar a situação de dependência tecnológica e dependência econômica do país, podendo funcionar para atenuar a cisão entre as tecnologias disponíveis no setor de saúde e as tecnologias acessadas pela população.

Contudo, há duas críticas que parecem válidas e que dizem respeito ao alinhamento entre a política industrial e a política de saúde. A primeira se refere ao fato de as PDPs retirarem a exclusividade da produção privada, porém não superar a dependência externa de IFA ou outro componente para produção dos insumos de saúde, que precisará ser adquirido mediante contrato de exclusividade com empresas estrangeiras.

A consequência de estabelecer parcerias com vínculos de exclusividade de aquisição por importação contribui para aumentar o déficit da balança comercial, que saiu de US$ 3 para US$ 12 bilhões (GADELHA, TEMPORÃO, 2018). Parte desse déficit se deve a importação de produtos acabados e a importação de insumos farmacêuticos (IFA) que o país não produz.

Além da debilidade na produção do IFA, ocorreu uma mudança importante na pauta de produção brasileira como podemos ver na publicação de Paulo Henrique Almeida Rodrigues, Roberta Costa e Catalina Kiss que identificaram que, entre 1996 e 2014, as

indústrias farmacêuticas e farmoquímicas no Brasil reduziram a produção de insumos para saúde humana e aumentaram a produção para saúde animal priorizando o agronegócio, o que revela o descolamento entre a política de saúde e a política industrial. A consequência foi a ampliação de 488,3% na dependência de IFA (2018, p. 13), sem que as PDP conseguissem alterar esse cenário.

Se a SCTIE é a principal instância a promover a agenda da ciência, tecnologia e inovação em saúde, sendo responsável pelo perfil de atuação do campo, por que não conseguiu, ao longo dos seus quase vinte anos, apontar soluções para superação de velhas necessidades e evitar o desabastecimento de itens essenciais? Talvez o foco excessivamente direcionado para inovação para o caso dos laboratórios públicos, que a princípio estão fora do mercado competitivo, pode ter colaborado para que os esforços de P&D se concentrem em nichos de alto custo, como se as palavras “insumos estratégicos” excluíssem sumariamente um conjunto de itens extremamente necessários para o abastecimento do país, como os antibióticos, os antitérmicos, e até os sedativos. Não há sentido de o país depender do fornecimento de insumo farmacêutico para produzir medicamentos clássicos e sem patentes, como é o caso da produção da hidroxicloroquina fabricada por Farmanguinhos, por meio de contrato de exclusividade para fornecimento de IFA com uma empresa indiana63.

O outro aspecto a ser considerado para uma futura reformulação das regras das PDPs diz respeito a limitar as parcerias somente ao conjunto de itens adquiridos de forma centralizada pelo Ministério da Saúde porque essa é uma regra que não faz nenhum sentido no país em que o sistema de saúde funciona em rede com responsabilidade tripartite. Essa restrição é apontada pelos autores como o motivo pelo qual as PDPs não contemplam os produtos, equipamentos e materiais para a atenção básica, incluindo os medicamentos negligenciados como os utilizados para oncologia infantil.

Ora, se a política industrial deve estar alinhada a política de saúde, e se a atenção primária é o eixo da política, o elemento de alicerce e de interação, qual o sentido de as necessidades desse nível de atenção não serem consideradas em um programa de produção nacional pelos laboratórios públicos, as empresas brasileiras não serem incentivadas a produzir equipamentos e depois a vender as peças sobressalentes, realizar a manutenção,

63 A IPCA Laboratories Limited é o maior fabricante mundial de cloroquina.

criando um amplo mercado aqui no Brasil?

Em 2010 foi realizada uma alteração na Lei nº. 8.666/1993 que trata das compras e contratações no âmbito do governo federal, estabelecendo margens de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais, por meio da Lei 12.349. A nova regra previu também que a preferência de compra levasse em consideração a geração de emprego e renda, os efeitos na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais e, claro, o desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País.

No entanto, não há estudos sobre os impactos dessa regra sob a produção de inovação no Brasil, nem mesmo estudos sobre a preferência para contratação de serviços nacionais e que gerem arrecadação, que afinal é o que sustenta a própria política de saúde.

O governo do Presidente Lula assumiu características desenvolvimentistas, especialmente no segundo mandato. A estratégia principal de utilizar o poder de compra do governo e estabelecer Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, a despeito de críticas, parece acertada pelo grupo do CEIS no Ministério da Saúde, na medida que inverte uma das principais estratégias de dominação que é a não integração de processos produtivos em todas as suas fases, mantendo a etapa de pesquisa e projeto nas economias centrais e a produção e logística nas periferias. No entanto, há questões a serem encaradas antes de assumir a perspectiva marxista e até mesmo a perspectiva estruturalista, comumente citada como referencial no campo de estudo do CEIS.

Primeiro, dentro da perspectiva marxista a principal questão seria tratar das leis tendenciais que constrangem as economias periféricas, de modo que as análises não deveriam apenas pautar-se na balança econômica. A inclusão de análise de balança de pagamentos tecnológicos e do mercado de trabalho da saúde é fundamental para compreender a realidade do setor e transformá-la com políticas potentes que reconfigurem o SUS na dimensão esperada. Depois, a matriz estruturalista aponta intervenções na indústria que alinhem políticas, assim, não basta que o desenvolvimento industrial esteja alinhado a política de saúde, mas deve atingir o centro dessa política e no SUS – a atenção básica é o centro -, portanto, é preciso estar disposto a modificar a cultura organizacional instalada que continua priorizando o segundo e o terceiro nível de atenção e promover uma mudança radical na atenção básica.

Assim, o foco no SUS do futuro deve privilegiar ao invés da inovação per si, as demandas sociais, porque são elas que devem orientar a política pública industrial e não ao contrário, assim como não são os serviços de saúde que tem “uma função no sistema produtivo” como afirma Costa (2013), ao contrário, os serviços de saúde devem ter necessidades consideradas para orientar as prioridades para o sistema produtivo, de modo a garantir a universalidade, a integralidade e a equidade de acesso as tecnologias de saúde.

Figura 16 - Projetos políticos em disputa (2010-2021)

Fonte: elaboração própria