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A inovação brasileira na periferia do sistema capitalista

Estado e alavanca para o desenvolvimento científico e tecnológico, visando superar a dependência e consolidar a base material necessária a sustentação ao SUS. Muitas intervenções foram realizadas e estão apresentadas no capítulo 4, sendo o objetivo aqui traçar um breve panorama sobre os conceitos que envolvem o termo ‘inovação’, sobretudo a partir da perspectiva que tem predominado na área da economia da saúde, desenvolvida no âmbito dos estudos a respeito do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS).

A maior parte dos estudos que envolvem o CEIS adota como referência a teoria do economista Joseph Schumpeter (1883-1950), que defende que o equilíbrio da economia se altera consideravelmente quando alguma inovação modifica as condições existentes. Essas modificações podem ampliar meios de produção, gerando ganhos quantitativos ou crescimento econômico quando mudanças qualitativas são introduzidas por meio de inovações empreendidas pelas empresas (TIGRE, 1952).

Para Schumpeter, a mudança tecnológica constitui o motor do desenvolvimento e seria o elemento capaz de revolucionar a estrutura econômica por meio do processo de criação destruidora, gerando novos hábitos de consumo. Schumpeter estava preocupado em analisar como o capitalismo criava e destruía estruturas e não em analisar a maneira pela qual o capitalismo administrava tais estruturas, como era a preocupação predominante nos economistas de sua época (SCHUMPETER, 1961). O economista traçou o conceito de

“destruição criativa”, que significa que a inovação cria um padrão novo que destrói ou diminui o valor do padrão anterior, gerando um novo produto, serviço ou método inédito, a criação de um novo mercado, a descoberta de uma nova fonte de matéria prima, ou a ruptura de um monopólio. Para ele, o investimento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico são as chaves para os resultados positivos nas economias das nações.

Tão logo está em condições de enfrentar as despesas, a primeira coisa que uma firma moderna faz é fundar um departamento de pesquisas, cujos funcionários sabem que o pão de cada dia depende do êxito que obtiverem na descoberta de novas invenções.

Essa prática, evidentemente, não sugere qualquer aversão ao progresso tecnológico (SCHUMPETER, 1961, p. 125).

Defensor do capitalismo, Schumpeter apontava o progresso como resultado da estratégia permanente de inovar, entendendo que a existência ou o desaparecimento das empresas dependia dessa estratégia, que uma vez cumprida com êxito geraria posições vantajosas para a empresa e benefícios para toda sociedade que passaria a usufruir de bens e serviços, até então não existentes.

Paulo Bastos Tigre (1952) concorda com Schumpeter sobre a inovação surgir como ondas ou ciclos cumulativos, mas entende que a inovação ocorreu principalmente devido a fatores que influenciaram a transição da economia industrial para economia da informação e do conhecimento, como o esgotamento dos recursos naturais que teria aberto caminhos para bens e serviços eco eficientes. Para esses autores interessa apenas as inovações passíveis de serem comercializadas, portanto, toda a história de descobertas e aprimoramentos entre a humanidade e natureza, assim como os modos de vida não capitalistas e seus saberes são descartados de suas análises.

Os conceitos sobre inovação no sistema capitalista foram detalhados por autores conhecidos como “neoschumpeterianos”, como Christopher Freeman (1995), que tratou de categorizar as inovações a fim de constituir elementos para análises qualitativas que visassem medir seus impactos sociais e econômicos. O autor descreve quatro grupos de mudanças de paradigma: mudanças radicais, incrementais, mudanças no sistema tecnológico e mudança no paradigma tecno-econômico. Já Richard R. Nelson e Sidney G. Winter (2005) pensam a inovação como um processo de desequilíbrio que combina diferentes níveis de tecnologias que se modificam ao longo do tempo. Eles consideram que os países menos desenvolvidos participam do progresso tecnológico à medida que as inovações são adotadas pelos países centrais, assumindo uma perspectiva semelhante a Teoria do Desenvolvimento Associado (TDA).

Giovanni Dosi (2005) assumiu a preocupação com as forças que tensionam e movimentam a inovação com um trabalho fundamental escrito nos anos de 1980, portanto na efervescência de mudanças de paradigmas trazidos pela microeletrônica. Formulou os conceitos de paradigma tecnológico e trajetórias tecnológicas, por meio dos quais explica os fatores sociais, econômicos e institucionais em que um novo conhecimento pode ser introduzido no sistema produtivo, possibilitando que surjam as inovações radicais.

No entanto, Dosi não atribui um caráter determinístico para as inovações, como Schumpeter o faz ao definir o investimento em P&D como elemento chave. Além disso, Dosi foi o primeiro a considerar que um novo padrão tecnológico é obtido a partir das características do padrão anterior. Essas novas características vão definir novas trajetórias tecnológicas com outras opções em um universo de alterativa factíveis, porém limitado.

Aponta, também, a inovação como um instrumento de concorrência e um elemento variável para o desenvolvimento econômico e social.

Os conceitos sobre inovação têm sido expandidos, incluindo novos direcionadores e se dissociando dos conceitos lineares e fechados, surgindo proposições como as inovações por co-criação ou inovações abertas, que são aquelas que decorrem do relacionamento entre o criador e o usuário/consumidor e as inovações derivadas de espaços deixados por produtos tecnologicamente superiores, chamadas inovações disruptivas.

Além dessas, há as inovações sociais, que surgem a partir do engajamento de usuários com sua rede de serviços e as tecnologias sociais – que são inovações de baixo custo, adotadas para resolução de problemas coletivos. Nessa perspectiva, as inovações deixam de ser atribuídas somente aos empresários empreendedores e passam também a ser consideradas como possibilidade de movimentos organizados e ações político-sociais.

Uma outra abordagem sobre a inovação são os sistemas em rede. Nessas abordagens não são os produtos, os serviços, o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) ou as patentes que oferecem os dados fundamentais para os estudos, mas as interações, as relações, as ligações existentes entre as instituições envolvidas no desenvolvimento de tecnologias, sendo elemento de análise os sistemas locais de inovação e os sistemas nacionais de inovação.

Segundo essa proposição de Sistema Nacional de Inovação, o progresso técnico resulta de um conjunto complexo entre agentes que produzem, distribuem e aplicam vários tipos de conhecimento.

Bengt-Ake Lundvall (1992) e Christopher Freeman (1995) apontam que o sistema nacional de inovação opera elementos e relações de uma rede de organizações do setor público e privado de uma nação, que interagem para produzir, difundir e usar conhecimentos novos e economicamente úteis.

José Eduardo Cassiolato e Helena M. M. Lastres denominam os sistemas de inovação como um “conjunto de instituições distintas que contribuem para o desenvolvimento da capacidade de inovação e aprendizado de um país, região, setor ou localidade” (2005, p.37). Para os autores, a ideia básica de um sistema de inovação é que o desempenho inovativo depende não apenas do desempenho de empresas e organizações de ensino e pesquisa, mas também de como elas interagem entre si e com vários outros atores, inclusive com as políticas, de modo a afetar o desenvolvimento e o progresso tecnológico.

Henry Etzkowitz e Loet Leydesdorff (2000) assumem uma perspectiva sobre a inovação distinta de Schumpeter. Esses autores desenvolveram o conceito da “tripla hélice”, atribuindo papel destacado para as universidades e para o Estado na geração e disseminação

de mudanças relevantes para sociedade. Na tripla hélice estão a universidade, o Estado e a indústria.

Na direção dessa teoria, porém sem mencioná-la, Eduardo da Motta e Albuquerque e Cassiolato (2002) apontam que o setor de saúde é sensível aos arranjos institucionais e que o papel do setor público é decisivo na moldagem da capacidade desse setor mais do que em qualquer outro. Nesta perspectiva, quando uma política pública assume a dimensão de um sistema universal, como é o caso do SUS, ocorre a alteração dos arranjos institucionais e da agenda do setor, e esta foi uma imensa inovação na política de saúde no Brasil e influencia debates ao redor do mundo.

Esse aspecto é comprovado pelos estudos de Nilson Rosário da Costa, que descreve como o movimento pela Reforma Sanitária conformou uma mudança no equilíbrio de poder e na cultura organizacional instalada no setor de saúde de tal ordem que houve uma alteração completa nos arranjos institucionais e na agenda do setor, principalmente porque as lideranças do movimento ignoraram completamente uma proposta de inovação “dentro dos limites”

(COSTA, 1996, p.6).

O SUS surgiu no âmbito da redemocratização do Brasil, quando a sociedade discutia um novo pacto social. A saúde, ao ser alçada ao conjunto dos direitos fundamentais no art.

196 da Constituição Federal de 1988, definiu uma nova forma de relacionamento entre o Estado e a sociedade e a cidadania ganhou nova conformação no país. Tratava-se da definitiva transição do modelo de “seguro saúde” para um sistema de “seguridade social”, denominado na Europa de Welfare State.

Os princípios sobre os quais se assentou o Sistema Único de Saúde permitem fundamentá-lo como uma mudança de paradigma econômico e social, a partir dos conceitos de Tigre (1952). O autor indica que as inovações alteram o tecido social e econômico no qual estão inseridas e se configuram como mudanças de “influência pervasiva e duradoura” (1952, p. 88), mas que dependem de mutações institucionais para sua concretização.

Esses aspectos se apresentam desde a implantação do SUS, quando observadas que as mudanças determinadas pela sua criação alteraram desde os marcos legais do sistema de direitos no Brasil, até a forma organizativa dos serviços de saúde operarem. Seu modelo de atenção, programas nacionais como Estratégia Saúde da Família, o trabalho de território com os Agentes de Saúde da Família são características muito inovadoras quando se trata de um sistema de saúde público com as dimensões que tem o Brasil.

Além disso, a participação social e o planejamento coletivo, a partir do Conselho Nacional de Saúde, atribuem ao SUS o caráter de construção social organizadora de uma estrutura relevante e que possibilita a prestação de serviços espalhada por todo Brasil, conforme detalhamento no 3.3. desta pesquisa.

Assim, apesar de a teoria Schumpeteriana aportar a inovação como um atributo inerente as empresas empreendedoras, podemos afirmar que burguesia não é a única fonte de mudança, não é a única classe capaz de promover inovações fundamentais para vida em sociedade, ao contrário, um conjunto enorme de inovações derivaram do relacionamento entre homem e natureza ao longo dos séculos, assim como muitas inovações do século XIX e XX decorrem do esforço coletivo, expresso por ações do Estado, como aponta Mariana Mazzucato (2014).

Por último, três questões sobre a inovação no setor de saúde merecem destaque. A primeira é o fato de os objetivos para transformação da ciência e da tecnologia no setor de saúde estarem quase que, exclusivamente, orientadas para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, na chamada “inovação produtiva” (GUIMARÃES et al., 2019, p. 883), limitando a verificação e o investimento em um conjunto de elementos fundamentais para estruturação do SUS, como é o caso do sistema educacional, por exemplo, pois em nenhum lugar do mundo, a ciência e a tecnologia puderam prescindir de um investimento orientado junto a estrutura educacional (SUZIGAN, FURTADO, 2006).

Se por um lado, a morfologia do CEIS auxilia em estudos sob o recorte industrial, por outro, o predomínio das análises sobre o segmento produtivo faz com que outros atributos fundamentais da política pública se tornem invisíveis e além da educação, pode-se citar outros elementos, como a gestão do sistema de saúde, a integração em rede e o mercado de trabalho do setor.

Além disso, o foco no sistema produtivo, com destaque aos modelos concorrenciais e as estratégias competitivas para justificar os investimentos no setor produtivo, quase sempre se descolam do sentido principal que é a sustentação material do SUS, e essa pode ser uma das razões pelas quais até hoje a Atenção Básica – nível de maior contato da população com o SUS – não tenha sido considerada o principal componente a ser atendido por essa base material. Os serviços de referência e a vigilância sanitária também não aparecem. A parte de serviços, na morfologia original, indica somente os prestadores de serviço, quase que fazendo uma redução da política de saúde ao atendimento assistencial hospitalar, perspectiva que a

reforma sanitária brasileira tanto combateu.

Outro aspecto que a atual configuração morfológica do CEIS não considera é a transmutação do capital produtivo para o capital financeiro, elemento que se fazia presente nas análises de Maria Cecília Donnangelo (1979), Hesio de Albuquerque Cordeiro (1980, 1984) e Cid Manso Vianna (2004). Esses autores se dedicaram a debater a influência da dinâmica capitalista sobre as práticas médicas, o empresariado da saúde e o complexo financeiro por traz das transformações dos serviços de saúde e da definição de ‘necessidades de saúde’, às vezes contraditórios e até danosos a saúde das pessoas.

O terceiro aspecto a ser ressaltado é o referencial teórico que tem servido de guia para as análises do CEIS e, consequentemente, para as conclusões que desdobram em políticas e ações de impacto no setor de saúde. Os estudos sobre o CEIS têm se tornado o principal insumo para produção de políticas públicas de desenvolvimento industrial para saúde pública, decorrendo daí a importância do complexo e de sua construção analítica para o futuro do SUS.

Esses estudos se inspiraram na ideia de complexos econômicos, que vigora nas análises dos países desenvolvidos, levando em conta sobretudo a sociedade de conhecimento e os padrões de inovação concorrenciais. Marisa Velloso Fernandes Conde e Tania Cremonini Araújo-Jorge em 2003 escreveram sobre o papel crucial que o conhecimento desempenha na economia dos países avançados, mas problematizam o fato de que esse padrão internacional de competição tenha se tornado o foco principal dos estudos, diagnósticos e prognósticos para o Brasil, país de economia periférica.

As pesquisadoras exortavam a comunidade acadêmica a uma compreensão mais abrangente de inovação, inclusive revalorizando as trajetórias institucionais bem-sucedidas do Estado. Elas sustentam que as capacidades tecnológicas acumuladas nas instituições públicas de pesquisa foram decisivas para os resultados da política de genéricos e para a AIDS, ressaltando que foram “políticas que se apoiaram na preeminência do valor público e na busca de maior equidade distributiva, sem deixar de lado a eficiência econômica” (2003, p 739).

Em texto, ainda a ser publicado, Fatima Andreazzi (2022) reflete criticamente a respeito da construção teórica adotada pelo CEIS, fazendo um percurso sobre concepções que Marx e Schumpeter apresentaram a respeito do desenvolvimento produtivo no sistema capitalista e suas consequências sociais e econômicas. Marx, antes de Schumpeter, apresentou a discussão sobre o papel do desenvolvimento das forças produtivas e

transformação das relações econômico-sociais, situando a inovação como um processo social e coletivo e não empresarial e individual, como faz Schumpeter. A teoria do desenvolvimento das forças produtivas de Marx também comportou o desequilíbrio, indicando que é esse desenvolvimento que provoca mudanças que, mais cedo ou mais tarde, revolucionam toda a estrutura da sociedade.

Andreazzi ressalta que, para Marx, são as classes sociais que fomentam o emprego da ciência e da técnica para ampliar a taxa de mais-valia, enquanto para Schumpeter o empresário inovador investe no progresso científico e depois recebe sua recompensa em forma de lucro, como se esse retorno não derivasse da exploração do trabalho. Para Andreazzi essas são algumas das contradições inconciliáveis na produção dos dois autores e reconhecê-las contribui para a perspectiva do CEIS 4.017 preparando as instituições para os desafios do futuro, que são ainda maiores devido ao fluxo crescente dos intangíveis, como a importância dos serviços de informação já captada pelos autores (figura nº 9), assim como outros componentes que extraem valor dos países periféricos para o centro econômico, que vem aumentando a dependência ao invés de reduzi-la como é o propósito dos investimentos no CEIS.

Para começar, é fundamental considerar que não haverá círculo virtuoso entre a inovação e o desenvolvimento econômico articulando a lógica social e a lógica econômica, apenas internalizando a produção de “partes dos componentes” que tornam a balança de pagamento negativa no setor de saúde, porque, como é notório, os objetivos da Big Pharma não estão voltados a resolução dos problemas de saúde da população. Andreazzi aponta que, sem aprofundar o papel do imperialismo, a lógica desse “círculo virtuoso” ampliará as assimetrias.

Nessa reflexão, a autora inclui a crítica a políticas de Estado que geraram empréstimos subsidiados, financiamentos a longo prazo, desregulação do capital estrangeiro e uso de estatais que geraram alavancas de crescimento para uma fração da burguesia, que no momento de desvantagem comercial, vende o controle das empresas nacionais ou se integra a cadeias produtivas das multinacionais, de forma subordinada.

17 A atualização da morfologia do CEIS está apresentada na figura n. 9, p. 111.

Depois, o próprio conceito de Schumpeter sobre empresários empreendedores e sobre a destruição criativa gerar inovações não tem sido verificado nas estratégias globais das grandes corporações. Andreazzi se baseia nos estudos que apontam oligopólios farmacêuticos maximizando o lucro ao reduzir o investimento na busca de medicamentos com novos valores terapêuticos para priorizar pequenas modificações de moléculas existentes, com poucos benefícios adicionais.

Por meio desse expediente, novas patentes são concedidas e isto implica preços mais caros e custos adicionais para países que adotam essas substâncias. Para Marx, os meios empregados para essa destruição incluem o processo de destruição de forças produtivas humanas e materiais e é por meio desse expediente que o capital avança em seus momentos de crises.

Finalmente, cabe reconhecer que, para compreensão dos fenômenos por sua totalidade, o recorte morfológico que o CEIS defende desde os anos 2000, poderia beneficiar os estudos do campo da saúde, ampliando suas lentes de análise para além do setor industrial.

Também seria importante calibrar o discurso sobre a inovação em saúde, passando a enfatizar o SUS como a principal inovação a ser prestigiada e difundida. Seus elementos de sustentação, incluindo o setor produtivo, devem ser debatidos a partir de teorias críticas, porque não há “falhas de mercado a serem corrigidas”, há “uma desvantajosa divisão internacional do trabalho”, a ser superada pelos países da América Latina.

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