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A Era de Ouro nos quadrinhos e os primeiros passos no cinema

2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.3. Fases, eras e ciclos

2.3.1. A Era de Ouro nos quadrinhos e os primeiros passos no cinema

Peter Coogan (2006) situa a Era de Ouro dos super-heróis nos quadrinhos entre a publicação de Action Comics #01, em 1938, e Plastic Man #64, em 1956. O autor defende que a Era de Ouro é equivalente à fase experimental dos gêneros seguindo os critérios de Schatz (1981): Superman é o responsável por apresentar as convenções que seriam futuramente internalizadas pelo gênero e Plastic Man é um dos primeiros títulos que comprovam o enraizamento dessas convenções, ao parodiá-las.

Os super-heróis da Era de Ouro são marcados principalmente por sua conduta moral em favor do Estado, o que se explica pelo contexto em que esses personagens surgiram. Nos Estados Unidos da década de 1930, o New Deal marcou uma ruptura com a ideologia individualista do século 19 em prol da responsabilidade coletiva da nação estadunidense pós- crise. Não havia mais espaço para os vigilantes dúbios dos pulps em um contexto em que a tônica principal era injetar esperança (ou certo escapismo) na população. A Era de Ouro abarca ainda o período da Segunda Guerra Mundial, quando os super-heróis atingem o máximo de sua idealização moral ao encarnar o espírito nacionalista estadunidense enfrentando vilões nazistas

e servindo de propaganda patriótica. Além do Superman, surgiram nesse período Batman (1939), Flash (1940), Mulher-Maravilha (1941) e outros medalhões da DC Comics. A atual Marvel Comics à época ainda era a Timely, empresa do visionário Martin Goodman, que perseguiu o sucesso dos super-heróis.

Os álbuns de HQs com histórias inéditas estavam em alta após a publicação de compilações de tiras de jornais e, com o crescimento do ramo voltado para as histórias de super- heróis, vários jovens em busca de emprego se tornaram quadrinistas. Eles passaram a se organizar em syndicates, espécies de agências de artistas que distribuíam o material produzido para jornais e revistas, após eles venderem os direitos de publicação e tradução das histórias. Foi nessa nascente produção industrial que a Timely Comics adquiriu os personagens Tocha Humana e Namor. Ambos estrearam em 31 de agosto de 1939 na revista Marvel Comics, que viria a ser o nome da editora posteriormente. Menos de 24 horas depois, a Alemanha nazista invadiu a Polônia, iniciando a Segunda Guerra Mundial (HOWE, 2013, p. 23).

Em 1941, a Timely publicou a primeira HQ do Capitão América, como vimos, fortemente influenciada pelo contexto da Guerra. O franzino Steve Rogers, criado por Joe Simon e Jack Kirby, era uma representação romântica dos jovens soldados. Ele é submetido a experimentos científicos com para se transformar no herói da nação contra os nazistas. Superman, Batman, Namor e Tocha Humana também tiveram histórias ambientadas no conflito, mas o apelo iconográfico do Capitão América o destacava como uma versão quadrinística do Tio Sam.

Entre o escapismo e a idealização nacionalista, os super-heróis ganharam suas primeiras versões para o cinema. Na época, a literatura e os quadrinhos forneciam boa parte das histórias traduzidas para o audiovisual, como apontam Ian Gordon, Mathew P. Mcallister e Mark Jancovich (2010, p. 110). Personagens como Fantasma (1936) e Dick Tracy (1937) ganharam séries em live-action divididas em capítulos de aproximadamente 30 minutos que eram exibidos semanalmente nos cinemas dos Estados Unidos, cada um devidamente encerrado por um cliffhanger que garantisse o retorno do público na semana seguinte. Nesse mesmo formato, muitos super-heróis que explodiam em vendas nos quadrinhos ganharam suas primeiras produções em audiovisual, tais como o Capitão Marvel (atual Shazam)40 em As

Aventuras do Capitão Marvel (Adventures of Captain Marvel, William Witney; John English,

1941), seguido por Batman (1943), Capitão América (1944) e Superman (1948).

40 O Capitão Marvel surgiu em 1939, publicado pela editora Fawcett Comics. Na década de 1970, quando a DC

Comics decidiu adquirir as histórias do personagem, a Timely já havia mudado de nome e registrado as marcas Marvel para si, o que levou o personagem a ser renomeado para Shazam.

Figura 16 – Cap. Marvel, Batman, Cap. América e Superman nos cinemas dos anos 1940.

Fonte: IMDb (2017).41

Essas séries, precursoras dos filmes de super-heróis, podem ser lidas como a Era Antediluviana dos super-heróis no cinema. Na época em que foram produzidas, essas produções se uniam ao grande pacote de histórias aventurescas saídas das páginas de livros e quadrinhos para as telas de cinema, sem ainda grandes diferenciações entre elas. Tampouco observa-se o estabelecimento de um gênero a partir delas, a não ser o dos próprios filmes de ação e aventura. Um hiato de quase 30 anos separa essas séries da primeira grande popularização dos filmes de super-heróis com características reconhecidamente próprias, por questões que escapam às convenções, mas se devem à relação do público com elas a ponto de reconhecerem ali – e especificamente naquele momento – um gênero narrativo. Se elas ainda não estabelecem o gênero em si, certamente são os primeiros passos do que ele viria a ser no futuro.

Mas esse futuro demoraria a chegar, principalmente no que dependesse das muitas críticas que os super-heróis sofreram na década de 1950. Após a Guerra, os quadrinhos de super-heróis foram duramente perseguidos como supostas más influências à juventude e como incentivadores da delinquência juvenil. Em 1955, o psiquiatra infantil Fredric Wertham publica o livro A Sedução dos Inocentes, no qual defende que a idealização dos super-heróis como exemplos a serem seguidos pelas crianças acabava lhes ensinando comportamentos violentos e

egoístas. Em meio a uma forte onda de críticas das parcelas mais conservadoras da sociedade estadunidense, os quadrinhos foram parar literalmente nas fogueiras e a produção de HQs de super-heróis despencou. Diante da crise dos super-heróis, a liderança do mercado de quadrinhos começou a ser sondada pelos títulos de horror de editoras emergentes como Tales from Crypt, da EC Comics.

Foi então que os editores resolveram reagir e fundaram o Código de Ética dos Quadrinhos, baseado no Código Hays de autoregulamentação do cinema, que estava em vigor desde a década de 1930. As regras direcionaram as histórias de super-heróis para temas bastante pueris, a fim de afugentar as críticas, torná-los inofensivos à educação conservadora das crianças e barrar a ameaça das editoras de HQs de horror. Parcerias mirins (sidekicks) e femininas foram adicionadas como tentativa de afastar as temáticas mais controversas, como a violência desmedida e as sugestões homossexuais. De acordo com Sean Howe:

Em setembro [de 1954], quase todos os editores que restaram formaram a Comics Magazine Association of America, que instituiu regras de autorregulamentação baseadas no Código Hays, de Hollywood, mas ainda mais draconianas: de acordo com Código de Ética dos Quadrinhos, as capas não poderiam incluir as palavras horror nem terror e, sob circunstância alguma, zumbis, vampiros, fantasmas nem lobisomens poderiam aparecer em qualquer centímetro dos gibis. Além disso (...), não se podia criar simpatia por criminosos, tampouco desrespeitar a santidade do casamento. ‘O bem deve sempre triunfar sobre o mal’, decretavam as regras. Caso a revistinha não tivesse o selo do Código de Ética, os distribuidores não iam distribuir. (HOWE, 2013, p. 40)

O Código permaneceu ativo até 2011, quando foi oficialmente extinto na DC Comics, uma das últimas editoras a segui-lo, ainda que com paulatinas aberturas em suas restrições. Até que se concretizasse essa revogação, porém, os super-heróis precisaram se reinventar.