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Do revisionismo e crise nos quadrinhos ao renascimento no cinema

2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.3. Fases, eras e ciclos

2.3.4. Do revisionismo e crise nos quadrinhos ao renascimento no cinema

Diferente da última versão de Schumacher, o Batman de Tim Burton foi fortemente influenciado pela HQ Batman: O Cavaleiro das Trevas, do quadrinista Frank Miller (1986). A série conta uma história ambientada em um futuro no qual Bruce Wayne aposentou sua identidade secreta, mas precisa retornar à ativa mais velho, cansado e brutal. O tom soturno da saga redefiniu a personalidade do super-herói, sintetizando influências dos últimos 45 anos de

publicações, como aponta Geoff Klock (2006, p. 25). Cavaleiro das Trevas é um dos mais expressivos representantes da fase revisionista dos super-heróis nos quadrinhos, a Era de Ferro (COOGAN, 2006, p. 214).

Na equivalência com as fases dos gêneros de Schatz (1981), a Era de Ferro dos super-heróis dos quadrinhos se relaciona com a fase barroca, na qual a autorreflexão é a principal tônica. Firmado e explorado profundamente, o gênero passa então a olhar com lentes de aumento para si próprio, revisando e criticando as convenções enraizadas.

Na fase barroca, um gênero é ‘quebrado’; as convenções que o tem sustentado já não parecem funcionar. Elas não parecem inerentemente satisfatórias para os produtores e consumidores, e se tornam o tema das histórias em vez dos meios para conta-las. (COOGAN, 2006, p. 216. Tradução nossa)46

Nos quadrinhos de super-heróis, essa ruptura de convenções representou também o ingresso de novos artistas na indústria estadunidense, sobretudo de jovens quadrinistas que cresceram lendo as HQs e de artistas britânicos, que traziam novos olhares para os heróis americanos. Nesse contexto revisionista, o tom das histórias se tornou muito mais algo sobre super-heróis do que com super-heróis. Cada vez mais histórias como Cavaleiro das Trevas e

Watchmen ganhavam espaço ao trazer visões mais sombrias para o mundo multicolorido dos

super-heróis. Tornaram-se comuns as referências aos clichês dos quadrinhos de super-heróis em tramas repletas de pessimismo, violência e críticas ao modus operandi dos vigilantes.

Em meio a aberturas cada vez maiores nas regras do Comics Code Authority e à popularização das graphic novels,47 os quadrinhos de super-heróis acompanharam seu público e se voltaram para tramas mais adultas. Embora a temporalidade ainda continuasse mais ou menos congelada, os temas das histórias abordavam a decadência e o que parecia ser o fim dos super-heróis. É nessa fase que a DC Comics publica Crise nas Infinitas Terras e cria o selo

Vertigo, destinado aos títulos adultos da editora.

Na Marvel, a chegada dos jovens quadrinistas representou uma mudança radical que marcou a editora até a década de 1990: Jim Lee, Todd McFarlane e Rob Liefield trouxeram rebeldia, violência e traços estilizados para os personagens da Marvel. O frescor instantâneo e

46 In the baroque stage a genre is “broken”; the conventions that have sustained it no longer seem to work. They

do not seem inherently satisfying to the producers and consumers, and they become the subject of the stories rather than the means to tell the tales.

47 Termo cunhado pelo quadrinista Will Eisner em 1978, mas envolto em muitas imprecisões históricas e

conceituais, graphic novel se refere ao formato de quadrinhos lançado como “livro”, geralmente trazendo histórias fechadas e/ou séries organizadas como um compêndio. Com as graphic novels, os quadrinhos ganharam espaço nas prateleiras de livrarias, frequentemente em edições com capa dura e melhor acabamento. (VERGUEIRO, 2017, p. 29-30)

descompromissado catapultou a Marvel novamente ao topo das vendas de quadrinhos com estratégias de marketing um tanto duvidosas: a glamourização das edições de luxo foi traduzida para as bancas em revistas semanais com capas metalizadas ou trazendo várias artes alternativas, a fim de seduzir os fãs a comprarem mais de uma edição da mesma história (HOWE, 2013, p. 340). Por isso, enquanto a DC/Warner fazia fortuna no cinema com os filmes do Batman, os proprietários da Marvel Comics pareciam satisfeitos com as excelentes vendas dos quadrinhos, a despeito da insistência de Stan Lee em ingressar no mercado cinematográfico.

Em 1991, a New World abriu capital na bolsa de valores e anunciou mais dois filmes que nunca aconteceriam: Justiceiro 2 e Mulher-Hulk. No lugar das fracassadas tentativas de sucesso no cinema, a Marvel se voltou novamente para a TV, com a produção da série animada X-Men, em 1992. O desenho foi produzido em parceria com a empresa de brinquedos Toy Biz, de Avi Arad, que havia produzido uma linha de bonecos dos mutantes e precisava divulga-los, repetindo a estratégia executada em 1984 com a publicação de Guerras Secretas.

Ocorre que Avi Arad tinha excelentes relações em Hollywood e em 1993 a New World incorporou 46% da Toy Biz à Marvel (HOWE, 2013, p. 373-374), tornando-o a ponte perfeita para que finalmente os filmes de seus personagens decolassem e reduzindo Stan Lee meramente ao rosto conhecido da Marvel, sem grande poder de decisão. A Marvel Productions se transformou em Marvel Films e as negociações para licenciar os personagens para grandes estúdios recomeçaram. Dessa vez, porém, a própria Marvel se encarregaria de entregar pacotes de pré-produção já prontos com roteiro e escalação de diretores e elenco para que os estúdios executassem (HOWE, 2013, p. 399). James Cameron seria o diretor do filme do Homem- Aranha; Wesley Snipes viveria o Pantera Negra; o filme do Doutor Estranho finalmente aconteceria; a Fox firmou um acordo para produzir filmes dos X-Men.

Mas o plano falhou novamente e as produções minguaram. O que já estava em produção foi redirecionado para o lançamento direto em home video, como Capitão América –

O Filme (Captain America, Albert Pyun, 1990) ou prontamente descartado devido à péssima

qualidade, como o longa-metragem O Quarteto Fantástico (The Fantastic Four, Oley Sassone, 1994).48 O acordo com a Fox originou Geração X (Generation X, Jack Sholder, 1996) baseado em um subgrupo dos X-Men. O telefilme tinha pretensões de originar uma série em live-action do universo mutante, que, como os demais projetos da Marvel, também não foi para a frente. A fase experimental dos filmes de super-heróis não tinha sido mesmo da Marvel.

48 Sean Howe (2013, p. 374) conta que o próprio Avi Arad se encarregou de comprar os rolos do filme do

Quarteto e destruí-los. Porém, uma cópia se salvou e está disponível no YouTube: <https://www.youtube.com/watch?v=BXVKgrExYxk&t=1s>. Acesso em 28 dez. 2017.

A situação piorou quando a divisão editorial também começou a fracassar. Quadrinistas renomados criticavam publicamente as estratégias de mercado da Marvel, que enriquecera com personagens criados por eles durante anos de trabalhos em regime freelancer e agora enveredava por gananciosas estratégias de distribuição direta, prejudicando o mercado (HOWE, 2013, p. 385-386). Quando as ações começaram a despencar em Wall Street, uma série de demissões em massa abalou profundamente a empresa. Com a exceção de seus principais títulos, X-Men e Homem-Aranha, todas as HQs da Marvel foram terceirizadas para a Image Comics – coletivo formado por Jim Lee, Todd McFarlane, Rob Liefield e outros jovens quadrinistas que à essa altura já haviam se desvinculado da própria Marvel prevendo o mesmo fim que os quadrinistas das Eras de Prata e Bronze haviam experimentado ao terem suas criações apropriadas pela editora.

Sob críticas dos velhos fãs e relativo sucesso com os novos, a Image começou a trabalhar no selo Heróis Renascem, reboots dos personagens Marvel em histórias repletas de sangue, violência, cabelos espetados e músculos desproporcionais desenhados por Liefield, com alguma influência dos filmes de ação e da popularização dos mangás (quadrinhos japoneses).

Mesmo assim, quando a então presidência da empresa emitiu uma série de títulos de alto risco na bolsa de valores, a queda foi inevitável. Em crise, com significativa redução na distribuição de suas revistas em quadrinhos e prestes a cair nas mãos do megaempresário Carl Ichan, a Marvel declarou falência em 1997, mesmo ano em que a DC/Warner viu a franquia cinematográfica do Batman ruir. Dessa forma, chegava ao fim tanto a Era de Ferro dos super- heróis nos quadrinhos quanto a fase experimental dos filmes de super-heróis. Os anos seguintes, marcados pela virada do século, precisavam trazer novidades.

Em 1998, depois de muitas idas e vindas no tribunal de falência, um acordo foi firmado para salvar a Marvel: a empresa fechou a preços mais baixos que o esperado a venda de direitos cinematográficos de seus personagens, realizou altos empréstimos financeiros e se fundiu definitivamente à Toy Biz, transformando-se na Marvel Enterprises (HOWE, 2013, p. 413-414). Nesse mesmo ano, surgiu o primeiro sinal para o que viria a ser o que chamaremos de fase clássica dos filmes de super-heróis: a era dos novos blockbusters. Produzido a passos lentos há mais de uma década, o filme Blade, o Caçador de Vampiros (Blade, Stephen Norrington, 1998), foi lançado pela New Line Cinema. A produção traduzia para as telonas o personagem que não era um super-herói de trajes multicoloridos e nem de longe o título mais conhecido da Marvel. Mesmo assim, o filme arrecadou impressionantes US$ 70 milhões:

“Blade era o patinho feio (...) Foi a primeira vez que ficou claro a Hollywood que a franquia Marvel tinha algo de especial” (ARAD apud HOWE, 2013, p. 414).

De fato, os anos 2000 chegaram para os filmes de super-heróis como a década de 1960 havia chegado para os quadrinhos. Tal qual aconteceu na Era de Prata, quantidade e frequência nunca antes vistas de produções cinematográficas baseadas em super-heróis dos quadrinhos começaram a dominar as salas de cinema do mundo todo – muitas delas, fruto da venda de direitos que a Marvel havia realizado nos últimos anos. Como marcos iniciais desse período, destacamos X-Men: O Filme (X-Men, Bryan Singer, 2000) e Homem-Aranha (Spider-

Man, Sam Raimi, 2002).

Figura 20 – Do dark ao multicolorido, os super-heróis reconquistam Hollywood.

Fonte: IMDb (2017).49

Em meio ao sucesso dos filmes de ficção científica que especulavam sobre o desconhecido novo milênio, os mutantes chegaram finalmente ao cinema com influências recíprocas dessas produções, sobretudo do filme Matrix (The Matrix, Lana Watchowski; Lily Watchowski, 1999). Trajando icônicos uniformes de couro preto no lugar dos costumeiros trajes coloridos, os X-Men infiltraram os super-heróis na estética e nas temáticas vigentes em Hollywood e conquistaram um sucesso arrebatador: com arrecadação de US$ 54 milhões apenas no final de semana de estreia (BURKE, 2015, p. 5), os mutantes arrebentaram as portas da indústria para uma avalanche de produções cinematográficas de super-heróis no século 21.

Entre os motivos que explicam essa nova explosão dos super-heróis no cinema, pesquisadores e produtores frequentemente citam os traumas culturais e o retorno da celebração da figura do herói nacional depois dos ataques ao World Trade Center.50 Nathalie Dupont (2012) aponta que os ataques de 11 de setembro de 2001 reverberaram diretamente nas histórias de super-heróis, repetindo o mesmo papel de idealização do American Way que já haviam desempenhado em outros tempos difíceis, durante a Era de Ouro. Assim, prosseguindo o que foi iniciado com os X-Men de Bryan Singer, o Homem-Aranha de Sam Raimi representou o próximo passo na dominação da indústria hollywoodiana pelos super-heróis. Dessa vez, porém, os pilares de missão, poderes e identidade se manifestam claramente: não há vergonha de se dizer super-herói em um período em que o mundo precisa deles novamente. Interpretado por Tobey Maguire, o jovem Peter Parker volta a conquistar gerações com a fórmula de identificação e projeção do homem comum que também é o herói, o “amigão da vizinhança”.

Parecia impensável havia pouco tempo, mas estava acontecendo: uma convergência de fatores mercadológicos e históricos ofereceu o terreno para que finalmente os personagens Marvel ganhassem versões cinematográficas de sucesso: “Quase da noite para o dia, os super- heróis eram a menina dos olhos do grande público” (HOWE, 2013, p. 436). Uma constância de produções se estabeleceu e muitos dos acordos negociados com grandes estúdios enfim saíram do papel – dessa vez, porém, com participação limitada da Marvel na produção e nos lucros dos filmes. Nesse período, foram lançados: Demolidor: O Homem Sem Medo (Daredevil, Mark Steven Johnson, 2003, pela Fox), Hulk (Hulk, Ang Lee, 2003, pela Universal), O Justiceiro (The Punisher, Jonathan Hensleigh, 2004, pela Columbia), Quarteto Fantástico (Fantastic

Four, Tim Story, 2005, pela Fox) e Motoqueiro Fantasma (Ghost Rider, Mark Steven Johnson,

2007, pela Columbia/Sony). Além dos novos títulos, os estúdios agarraram seus preciosos personagens adquiridos da Marvel realizando continuações e derivados. Antes que o primeiro filme de Blade completasse seus 10 anos, estrearam no cinema os sequels: Blade II e Blade

Trinity (2002 e 2004, respectivamente), X-Men 2 e X-Men – O Confronto Final (em 2003 e

2006), Homem-Aranha 2 e Homem-Aranha 3 (2004 e 2007), Elektra (filme derivado de

Demolidor, em 2005), e Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado (2007).

50 Essa é a versão mais difundida entre produtores e pesquisadores, embora haja também o contra-argumento de

que os filmes de super-heróis do século 21 se desenvolvem em um contexto cada vez mais globalizado, visando atingir públicos de países diversos como blockbusters mundiais, questionando o quão importante o nacionalismo tenha sido na nova ascenção dos super-heróis ao sucesso no cinema. Liam Burke (2015) discorre sobre o assunto nos primeiros capítulos de The Comic Book Film Adaptation.