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A explosão da Marvel Comics e o hiato nas telonas

2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.3. Fases, eras e ciclos

2.3.2. A explosão da Marvel Comics e o hiato nas telonas

Foi nesse cenário que teve início a Era de Prata dos super-heróis. A palavra de ordem era repensar os personagens, tanto que o marco inicial do período, de acordo com Coogan (2006), é a apresentação do segundo Flash em Showcase #04, de 1956; estendendo-se até o início da década de 1970. Com efeito, se já era possível pensar em reformulações para os super-heróis, é porque suas características já estavam devidamente estabelecidas para os artistas e para o público, a ponto de permitir novos olhares ao que já era conhecido. Por essa razão, essa pode ser lida como a fase clássica dos super-heróis nos quadrinhos.

A Era de Prata é marcada pela revolução dos quadrinhos da Marvel Comics. Enquanto a DC reinventa os personagens que marcaram a Era de Ouro 20 anos antes, a antiga Timely Comics aposta em uma enxurrada de novos super-heróis, criados por um grupo de quadrinistas que se tornariam celebridades entre os fãs, como o antigo faz-tudo e então editor da Marvel, Stan Lee e o artista Jack Kirby, co-criador do Capitão América. Diferente dos heróis titânicos da principal concorrente, os títulos da Marvel investiam cada vez mais na identificação direta com o público. Moradores da conhecida Nova York, os super-heróis lançados pela Marvel privilegiavam sua humanidade e seus defeitos: “Heróis com pés de barro, muitos eram marcados pela solidão e pelas dúvidas sobre o que faziam. Até os mais confiantes carregavam o fardo de saber que não se encaixavam nesse mundo” (HOWE, 2013, p. 11).

Tal característica se mostra evidente na primeira superequipe da Marvel, Quarteto

Fantástico, lançada em agosto de 1961. Howe (2013, p. 9) conta que o título foi criado como

resposta à Liga da Justiça (1960) da DC, que liderava as vendas ao reformular o conceito de equipe de super-heróis inaugurado em 1940 com a Sociedade da Justiça. Mas o time da Marvel não contava com nenhum super-herói famoso da Era de Ouro, como o seu concorrente.

Em meio à Guerra Fria, a ciência e os efeitos da Era Nuclear se fizeram presentes na origem dos novos super-heróis da Era de Prata. Os membros do Quarteto Fantástico – Reed Richards, seu amigo Benjamin Grimm, sua noiva Susan Storm e seu cunhado Johnny Storm – ganham seus superpoderes após um incidente em uma estação de lançamento de foguetes que os transforma, respectivamente, em Sr. Fantástico, com o corpo completamente elástico; Coisa, um homenzarrão cuja pele é uma espessa carapaça de pedras; Garota Invisível, com a habilidade de se tornar translúcida; e um novo Tocha Humana, com o poder de transformar seu corpo inteiro em chamas.

O sucesso da primeira família de super-heróis deu o tom para as próximas criações da Marvel, que se encarregou de lançar vários novos personagens todos os meses, ficando conhecida pela autointitulada alcunha de “Casa das Ideias”. Em apenas três anos, a Marvel colocou nas bancas muitos dos super-heróis que se tornariam seus principais títulos até hoje.

Stan Lee e Jack Kirby revisitaram a premissa de O Médico e o Monstro ao contar a história do Dr. Bruce Banner, cientista que trabalha em testes para criar uma bomba de raios Gama para os EUA quando um acidente causado por um espião comunista o expõe à radiação e o transforma em um grande monstro furioso sempre que Banner fica bravo. Assim, em 1962, nascia o Incrível Hulk. Completamente descontrolado, Hulk não pratica atos de grande heroísmo: a dinâmica de suas histórias é baseada no dualismo entre o pacífico Banner e o seu

alter ego violento, perseguido pelo implacável General Thunderbolt Ross, que também é o pai do interesse amoroso de Banner, a jovem Betty. O único amigo de Banner é o garoto Rick Jones, salvo pelo cientista na ocasião do acidente e que serve de conexão com o público juvenil. No mesmo ano, Lee e Kirby introduziram novos super-heróis em coletâneas que haviam publicado histórias de monstros e terror pela Timely dos anos 1950. No título Journey

Into Mystery, eles criaram Thor, a versão do Universo Marvel para o deus do trovão da

mitologia nórdica. Seguindo a fórmula do super-herói com fragilidades humanas, Thor tinha uma identidade secreta, o médico manco Donald Blake, que se tornava a divindade asgardiana sempre que batia sua bengala no chão, transformando-a no martelo mitológico mjölnir.

Já na revista Tales to Astonish, foi apresentado o Homem-Formiga, mais um cientista envolvido com experimentos anticomunistas. Diferente dos anteriores, os projetos do Dr. Hank Pym dão certo e ele cria um soro capaz de encolhê-lo até o tamanho das formigas, que passam a ser controladas por ele.

Na revista Amazing Comics, condenada ao cancelamento pelas baixíssimas vendas, surgiu o Homem-Aranha. O desenhista Steve Ditko foi o parceiro de Stan Lee dessa vez, co- criando o primeiro super-herói adolescente da Marvel: o jovem nerd e sem dinheiro Peter Parker, que adquire habilidades de escalar paredes após ser picado por uma aranha radioativa. O retrato do público leitor de quadrinhos no melodrama juvenil de Parker rendeu uma relação de identificação quase que instantânea, e o Homem-Aranha se tornou um dos personagens mais populares dos quadrinhos desde então.

Na revista Tales of Suspense, um super-herói completamente oposto ao Homem- Aranha fez sua estreia a oito mãos por Stan Lee, seu sobrinho Larry Lieber, Jack Kirby e o desenhista Don Heck: o Homem de Ferro é a identidade secreta de Tony Stark, criada quando o industrial mulherengo é sequestrado por um inimigo (claro, comunista). Trata-se de um aparato tecnológico forjado para manter o debilitado coração de Stark batendo, além de ser uma armadura tecnológica que permite sua fuga e o transforma em super-herói. Somado aos problemas cardíacos, Stark carregaria futuramente, também, o drama do alcoolismo.

A arrogância também era a marca de um outro super-herói, o Dr. Estranho, esse criado por Steve Ditko nas páginas da revista Strange Tales: o hábil cirurgião Stephen Strange encontra a cura para a perda dos movimentos de suas mãos transformando-se em um mago místico.

Stan Lee e Jack Kirby experimentaram uma nova origem para os super-heróis em

e ameaças vermelhas, dessa vez eram as tensões do racismo e outras formas de discriminação que se manifestaram na origem de jovens super-heróis que simplesmente nasceram com superpoderes, divididos entre os que defendem uma convivência pacífica com os humanos e os que pregam a superioridade da raça mutante, o homo superior, através da força.

Nessa época, os bons resultados dos novos personagens fizeram a Marvel apostar cada vez mais nos crossovers de seu universo compartilhado, conta Howe (2013). Diretamente da Era de Ouro, Namor, o Príncipe Submarino, já havia reaparecido nas histórias do Quarteto Fantástico, apaixonado pela Garota Invisível; o Homem-Aranha tentou uma vaga no Quarteto e enfrentou o principal vilão da família, o Dr. Destino; Tocha Humana palestrou na escola em que Peter Parker estuda; Dr. Estranho foi medicado pelo médico Donald Blake/Thor; o Homem- Formiga fez uma participação em uma história do Quarteto Fantástico acompanhado de uma nova super-heroína, a Vespa:

(...) uma nota de rodapé explicava tudo: ‘Conheça Vespa, a nova parceira de aventuras do Homem-Formiga, a partir da edição 44 de Tales of Atonish!’ Era promoção cruzada, muito astuta, mas o mais importante era o efeito narrativo que viria a se tornar marco da Marvel Comics: a ideia de que esses personagens dividiam o mesmo mundo, que as ações de um tinham repercussão nas dos outros e que o gibi era um fio da megatrama Marvel. Tudo serviu de preparação para Os Vingadores (...). (HOWE, 2013, p. 56)

No mesmo mês em que criaram X-Men e enquanto a vindoura primeira edição de

Demolidor não ficava pronta para ser impressa, Lee e Kirby improvisaram um grande crossover

entre Thor, Homem de Ferro, Homem-Formiga e Vespa na revista Os Vingadores, em setembro de 1963. Quando Os Vingadores #01 foi publicada, como era costume nas revistas da Marvel à época, a própria editora não poupou autoelogios à formação da equipe de super-heróis. Os recordatórios,42 que por vezes davam voz a Stan Lee dentro de algumas histórias, trataram de atribuir aos Vingadores o título de “maiores super-heróis da Terra”.

O sucesso da primeira aventura dos Vingadores contra o deus da trapaça, Loki, transformou a equipe em um título trimestral que encerrava em si toda a estratégia do universo compartilhado Marvel nos quadrinhos. Na segunda edição, Hank Pym não encolhia, mas crescia e se transformava no Gigante; na terceira, o Homem de Ferro apareceu com uma nova armadura; na quarta, o Capitão América da década de 1940 era descoberto congelado e retornava à vida 20 anos depois de sua estreia nos quadrinhos, assumindo então a liderança dos

42 Os recordatórios são as caixas de texto que trazem informações textuais além das falas dos balões de fala nos

quadrinhos. Podem indicar o pensamento dos personagens ou, mais comumente no século 20, a voz de um narrador. De acordo com o pesquisador brasileiro Nobu Chinen (2015, p. 18), “[o recordatório] é muito usado para conversar com o leitor, uma espécie de provocação, pois não há intenção de que isso interfira na trama”.

Vingadores diante de uma nova ameaça de Namor. Para entender completamente de onde vinham essas novas situações na revista da equipe, o leitor precisava acompanhar também os títulos solo dos personagens, cujas continuidades eram levadas adiante ao mesmo tempo em que se cruzavam. Dessa forma, Os Vingadores se transformaram em uma verdadeira cooperativa de super-heróis com o passar do tempo, ganhando novas formações com a entrada e a saída de membros durante várias sagas que acompanharam a complexificação dos títulos da Marvel Comics.

Figura 17 – Títulos da Marvel Comics na Era de Prata: integrados a um mesmo universo.

Fonte: Guia dos Quadrinhos (2018).43

Enquanto isso, no audiovisual, os super-heróis permaneceram sem muito destaque nas telas de cinema. Na década de 1960, foi a televisão que recebeu as principais versões em

live-action dos heróis remodelados da Era de Prata. Com o crescimento avassalador dos

personagens humanizados da Marvel nos quadrinhos, a DC resolveu apostar em uma versão mais leve do Batman na TV. O resultado foi a cômica série protagonizada por Adam West em 1966, que reproduzia histórias do Homem-Morcego em uma estética peculiar, marcada pela inserção de onomatopeias, enquadramentos inclinados e exageros inspirados nos desenhos das páginas dos quadrinhos. Já a Marvel investiu nas séries de animações do selo TV Marvel

Superheroes, que levava para a televisão os desenhos das HQs com pequenos movimentos e

efeitos sonoros. Por sua qualidade duvidosa até mesmo para a tecnologia da época, essas séries ficaram conhecidas no Brasil como “os desenhos desanimados da Marvel”.

Entre os últimos novos personagens desse período na Marvel Comics está o primeiro super-herói negro da editora, Pantera Negra, apresentado em 1966 em uma história do Quarteto Fantástico. A criação do Pantera Negra é um reflexo do momento inédito que os super- heróis da Marvel experimentaram ao final da Era de Prata/fase clássica: os comentários históricos estavam cada vez mais presentes nos títulos, embora muitas implícitos como subtextos das aventuras. Em uma década marcada pela luta pelos direitos civis nos EUA e por conflitos como a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã, os super-heróis se conectaram com o público não mais pela projeção do super-homem ideal, mas pela identificação da humanidade apesar dos superpoderes. Essa tônica ganharia contornos mais firmes na década de 1970, quando os super-heróis passariam a enfrentar problemas de gente de verdade.