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2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.1. O gênero de super-heróis

2.1.1. As origens secretas de um gênero

Em Hollywood Genres, Thomas Schatz (1981, p. 16) considera que os gêneros são produto do refinamento de certas formas de histórias que compartilham de qualidades sociais e estéticas, a ponto de constituírem fórmulas. Para que se chegue a esse ponto, é preciso que haja

repetição dessas qualidades, possibilitando o estabelecimento de relações de familiaridade

entre as fórmulas apresentadas e, assim, o agrupamento das obras.

Para que tal repetição resulte de fato na observância de caracteres semelhantes, a periodicidade em que essas qualidades se apresentam se mostra como fator determinante para que um gênero seja reconhecido. Por exemplo, as discussões sobre a existência de um gênero cinematográfico para os super-heróis se dão mais fortemente após o estabelecimento da constante produção de filmes baseados nesses personagens a partir da virada do século 21, mas os super-heróis estão no cinema desde pelo menos a década de 1940. Do mesmo modo, como vimos, existem vários personagens dos pulps que apresentam características mais ou menos enquadradas na definição de super-herói, mas o gênero só foi instituído nos quadrinhos a partir de 1938, com a primeira história do Superman, que abriu as portas para uma avalanche de outros títulos. É claro que os quadrinistas Joe Shuster e Jerry Siegel não criaram o Superman pensando em inaugurar um gênero com ele; a sua produção estava em consonância com as tendências de produção de HQs fortemente influenciadas pelas histórias de ficção científica e aventura populares no rádio e na literatura popular da época. A delimitação do início de um gênero é uma mera arbitrariedade que só é possível se estabelecer de modo retroativo, quando determinado fenômeno possa ser considerado como fundante de uma tendência.

Sobre isso, Jacques Aumont e Michel Marie apontam que “(...) os gêneros só têm existência se forem reconhecidos como tais pela crítica e pelo público; eles são, portanto, plenamente históricos” (2007, p.142). Ou seja: o desenvolvimento de uma classificação de gênero diz respeito às características em comum observadas nas obras, mas diz respeito principalmente às relações que se estabelece com elas. Em outras palavras, é a relação do público e da crítica com as obras, em determinados contextos, que vai legitimar as fórmulas em comum entre elas, confrontando-as e encontrando seus diálogos. Nessa interação, os criadores – e a indústria – voltam o olhar para a relação que público e crítica criam com as obras, direcionando suas produções comercialmente para o atendimento das expectativas criadas com base no que se entende por traços reconhecíveis de determinado gênero.

Um gênero é uma realidade social empírica: não só uma categoria crítica para organizar obras, mas também uma tradição e passatempo sustentado por uma audiência em sintonia com tais obras. Na verdade, um gênero é algo na ordem de um livre pacto social, um conjunto de conceitos e práticas que grupos de pessoas usam para ajudá-los a classificar e dar sentido às coisas. Portanto, tem uma qualidade vívida. Se hoje podemos estudar o super-herói como gênero em termos bastante específicos, é porque ele desempenha papéis importantes - popular, estético, intelectual e psicológico - na vida de muitas pessoas. Atualmente, o gênero está enraizado, tendo alcançado um alto grau de especificidade e autoconsciência. Constitui um pequeno universo conceitual. (HATFIELD; HEER; WORCESTER, 2013, p. 73. Tradução nossa)24

A partir dos critérios para o reconhecimento de gêneros propostos por Schatz (1981), Coogan (2006, p. 25-29) observa como o gênero de super-heróis está plenamente estabelecido nos quadrinhos: ele tem uma nomenclatura reconhecida, suas fórmulas estão enraizadas a ponto de possibilitarem paródias e sátiras bem-sucedidas e, principalmente, tem suas fórmulas repetidas em diferentes obras – o que proporciona o reconhecimento de familiaridade entre elas e elege as chamadas convenções de gênero.

Por ter sido o responsável pela avassaladora popularização das HQs nos Estados Unidos da década de 1940 (ONG apud HATFIELD, HEER, WORCESTER, 2013, p. 34) e tido como o primeiro gênero originalmente estabelecido nas páginas dos quadrinhos, o gênero de super-heróis acabou erroneamente sendo muitas vezes considerado como sinônimo de histórias em quadrinhos. Por outro lado, de acordo com Henry Jenkins (apud HYMAN, 2017, p. 62), essa posição na indústria de HQs dos EUA faz com que o gênero de super-heróis consiga absorver elementos de muitos outros gêneros e retrabalhá-los. São muitas as aproximações das histórias de super-heróis com os westerns, por exemplo, ao representar os protagonistas como vigilantes eventualmente fora da lei, mas a serviço de uma causa nobre para defender seu povo; ou ainda com a ficção científica, com as recorrentes temáticas interplanetárias e as explicações fantasiosas, mas derivadas de teorias científicas, para as origens dos superpoderes. Tais aproximações, exploradas em graus diferentes no decorrer das décadas, revelam uma estratégia de sobrevivência do ponto de vista mercadológico, afinal é interessante que os produtos mais vendáveis se adaptem às tendências de cada época para se manterem em alta.

24 A genre is an empirical social reality: not only a critical category for organizing works, but also a tradition and pastime upheld by an audience attuned to such works. Indeed a genre is something on the order of a loose social compact, a set of concepts and practices that groups of people use to help them sort through and make sense of things. It therefore has a lived-in quality. If today we can study the superhero as genre in quite specific terms, that is because it plays important roles—communal, aesthetic, intellectual, and psychological—in the lives of many people. By now the genre is entrenched, having achieved a high degree of specificity and self-awareness. It constitutes a little conceptual universe.

Além dessa posição hegemônica nos quadrinhos, o trânsito dos super-heróis por todos os gêneros é possibilitado pelo fato de que, diferente das histórias de horror, comédia ou romance, suas histórias não são sobre um tema, mas sobre um personagem. Como vimos no capítulo anterior, é a presença do super-herói que leva ao reconhecimento de suas histórias, embora haja certas estruturas e temas recorrentes, como as apresentadas por Reynolds (1994).

Alguém, em algum lugar, descobriu que, como os chimpanzés, os super-heróis tornam tudo mais divertido. Chá da tarde chato? Adicione alguns chimpanzés e vira uma comédia caótica inesquecível. Mistério de assassinato convencional? Adicione super- heróis e um novo gênero surpreendente e provocante ganha vida. Suspense criminal urbano? Já vimos tudo antes... até que o Batman se envolveu. Os super-heróis podem incrementar qualquer prato. (MORRINSON, Grant; 2011, p. XVI. Tradução Nossa)25 Assim, até mesmo histórias de um mesmo super-herói podem se apropriar de diversos gêneros. Por exemplo, Batman teve suas primeiras aventuras publicadas a partir de 1939 pela atual DC Comics inicialmente encarnando um tom detetivesco de combate ao crime. Com o passar do tempo (e por questões de censura às HQs de super-heróis), o mesmo Batman ganhou histórias cômicas e infantilizadas durante a década de 1950 e, mais tarde, outras ainda mais densas nos anos 1980. Seriam todas essas histórias pertencentes ao gênero de super-heróis ou histórias de diferentes gêneros com um personagem super-herói? As discussões sobre essa delicada posição do personagem super-heroico como suficiente ou não para definir o gênero se mostram ainda mais evidentes na análise de HQs como Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons (1986), por exemplo. A série faz duras críticas ao gênero de super-heróis em uma trama protagonizada ela mesma por super-heróis. Algo semelhante começa a ganhar forma no cinema com filmes como Logan (James Mangold, 2017), que flerta com os gêneros road movie e drama para contar a história de um super-herói decadente. Nessas produções revisionistas, a metatextualidade ganha espaço como comentário crítico do gênero e levanta questões sobre a permanência ou não dessas abordagens-limite no próprio gênero que critica.

Por essas razões, se nos quadrinhos os super-heróis pareciam tão difundidos nas publicações a ponto de serem confundidos com o próprio meio que os popularizou, no cinema essa amplitude e a proximidade das histórias com outros gêneros fizeram os filmes de super- heróis serem frequentemente identificados como um subgênero de ação ou aventura. Afinal, como argumenta o teórico de cinema estadunidense Rick Altman (1999, p. 35) no livro

25 Someone, somewhere figured out that, like chimpanzees, superheroes make everything more entertaining.

Boring tea party? Add a few chimps and it’s unforgettable comedy mayhem. Conventional murder mystery? Add superheroes and a startling and provocative new genre springs to life. Urban crime thriller? Seen it all before… until Batman gets involved. Superheroes can spice up any dish.

Film/Genre, a existência de um gênero em um meio de comunicação não garante que ele seja

transportado para outros; ele precisa ser recriado. Assim, não basta o lugar privilegiado no meio dos quadrinhos para que os super-heróis sejam simplesmente transpostos das páginas para as telas. Ao enveredar na dinâmica própria do audiovisual, os super-heróis precisaram começar de novo como gênero para serem reconhecidos como tal no cinema.